O Rei dos Caiporas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Os acontecimentos humanos são regidos por um destino cego e caprichoso? Há estrelas propícias e estrelas funestas? Tem fundamento a crença popular de que certas criaturas são felizes porque choraram no ventre materno, e outras desgraçadas porque não choraram nem riram?
Questão é esta que não me atrevo a deslindar.
A filosofia diz que os homens dependem de si; o vulgo aponta mil casos em que
todos os esforços de um homem vão esbarrar diante de uma força invisível que o
não deixa dar um passo adiante. A filosofia é uma boa senhora, e o vulgo é um
sujeito prático; seria parcialidade inclinar-me a qualquer deles. Atento-me a
ambos.
O que vou contar alude a esta questão de
fatalidade e destino. O vulgo inventou uma palavra para indicar a fatalidade de
um homem; chama-lhe Caiporismo. Os dicionários ainda não trazem o termo, mas
ele corre já pelas salas e ruas e adquiriu direito de cidade.
João das Mercês era o tipo do homem caipora.
O destino com todas as suas legiões de auxiliares tinha tomado a pessoa de João
das Mercês por alvo de seus tiros. João das Mercês se caísse de costas tinha
toda a certeza de quebrar o nariz.
Choveram-lhe desde o berço as contrariedades.
Entrou no mundo com o pé esquerdo. É mister ler esta expressão com a sua
significação literal e real. A mãe de João das Mercês não resistiu aos
trabalhos cirúrgicos e faleceu horas depois de vir à luz o filho.
Foi-se buscar à pressa uma ama. Encontrou-se
ao cabo de algumas horas uma preta que alimentou o pequeno durante cinco dias,
e morreu de erisipela em um joelho. A segunda ama era uma mulher livre que
tinha a mania de jogar na loteria, e que ao fim de um mês tirou a sorte grande:
saiu da casa para ir abrir uma loja de costuras. A terceira entrou a amar o
irmão mais velho do pequeno, com violência tal, que o pai julgou acertado
mandá-la embora. Veio quarta ama que era dorminhoca e deixava o pequeno berrar
toda a santa noite; a quinta ama era respondona; a sexta dividia os afetos
entre o menino e um permanente; a sétima foi aturada até o fim do tempo da
amamentação, a despeito de uma voz de soprano que irritava os nervos do dono da
casa, cantando modinhas do Norte todo o santíssimo dia.
Parece que esta variedade de leite e de amas
influiu poderosamente em João das Mercês. Logo nos primeiros anos verificou-se
nele uma tendência pronunciada para o sono, influxo da quarta ama. Aos cinco
anos nada o alegrava mais que ver passar a tropa na rua, gosto que lhe ficou
naturalmente do leite que bebeu à namorada do permanente. Aos sete anos cantava
sofrivelmente, aos oito teve uma erisipela, aos doze furtou ao pai cinco
mil-réis para comprar um quarto de loteria; aos quinze começou a namorar uma
prima e aos dezesseis foi posto fora de casa por seus atrevimentos.
Aqui temos nós João das Mercês na rua, com
dezesseis anos, sem vintém na algibeira, nem pouso certo. Felizmente a prima que
ele namorava ainda tinha mãe e pai, que eram muito amigos de João das Mercês e
haviam até brigado com o pai dele a propósito de umas palmatoadas que este
aplicara no filho. João encaminhou-se para lá.
— Meu pai deitou-me fora de casa, disse ele a
D. Angélica; venho ver se me dão pouso e mesa, porque não tenho outro recurso.
— Fica João, respondeu a senhora dona
Angélica; fizeste bem em te lembrares que ainda tens uma tia; aqui não te há de
faltar nada, ao menos enquanto eu e o Gaspar vivermos.
Marianinha apareceu na sala e soube das
desgraças do jovem primo. Ao mesmo tempo teve notícia de que ele ia morar lá.
Marianinha, que era o tipo da inocência, bateu palmas e apertou a mão do primo,
com uma efusão tal que não escapou à perspicácia da senhora dona Angélica.
D. Angélica tinha muitas razões para
patrocinar os amores da filha e do sobrinho. Bem sabia ela que João das Mercês
não tinha herança nem emprego; mas em compensação Marianinha tinha uma perna
mais curta que a outra. Arranjado o rapaz, bem se lhe podia dar a pequena e
tudo ficava em casa.
Gaspar aprovou todas as decisões da mulher,
com tanta maior benevolência, quanto que, se as não aprovasse, seria a mesma
coisa. Durante vinte anos de casamento, não constava que Gaspar tivesse jamais
iniciado alguma coisa em casa, nem sequer desaprovado a mulher. D. Angélica
teve sempre o comando do exército doméstico, e devo acrescentar com a
fidelidade de um romancista sincero que D. Angélica exercia esse comando com
uma severidade digna de um general.
A boa velha era caprichosa; o marido era o
tipo da obediência. Um dia acordou D. Angélica com a ideia de que o esposo
devia usar suíças. Gaspar, que trazia a barba toda, desde que ela achou que era
a única moda respeitável, ia ao barbeiro e punha abaixo metade do pelo. Dois
meses depois, Angélica adotava o sistema dos bigodes, por se ter namorado de um
retrato de Napoleão III. O marido voltava para casa com uma faixa de soldado
francês. Suspeitava-se que o corte das calças inexplicáveis de Gaspar era
produção de D. Angélica.
Aqui temos, em duas palavras, a nova família
de João das Mercês. Sabendo com que amor o tratavam, o nosso João imaginou que
ia levar uma vida regalada. Infelizmente foi ilusão que durou pouco. D.
Angélica disse um dia à mesa que era preciso arranjar algum emprego para o
sobrinho. Gaspar não se fez esperar. Foi dali a um cavalheiro com que andara na
escola e que ocupava então o lugar de ministro da Guerra. Pediu-lhe um emprego.
Gaspar foi notável durante toda a sua vida pelo aferro com que sempre
acompanhara o ministério atual. Obteve o emprego.
João das Mercês obedeceu à intimação da sua
tia e foi ocupar o lugar no Arsenal de Guerra, tendo obtido antes consentimento
do pai.
Marianinha amava o primo, com toda a força de
seus quinze anos. Era uma rapariga assaz bonita, assaz faceira, dotada de um
excelente coração. João das Mercês, que era estouvado e mal educado, não
deixava de ter igualmente um coração digno de apreço. Amavam-se estas duas
criaturas com o aferro de um primeiro amor. D. Angélica alimentava esta chama
que, segundo ela, devia ser legitimada na igreja.
João das Mercês também nutria essas
esperanças; e tratava de as comunicar à prima.
— Quando formos casados, dizia ele, havemos
de ser felizes.
— Casados?
— Sim.
— Quando há de ser?
— Um dia, quando eu tiver mais idade.
— Ah! se fosse já!...
Gaspar ouviu um dia esta conversa, e não se
pôde ter de furor.
— Casar! exclamou ele; pois vocês já falam em
casar? Onde é que se viu isto? Que diria tua mãe, quando souber que já a minha
filha fala em casamento? E tu, meu pirralho, que ideias andas metendo na cabeça
de tua prima? Ora esperem!
Marianinha tremia; João murmurava uma
resposta ao tio, quando este chegando-se à porta gritou para dentro:
— Oh! senhora dona Angélica!
— Que temos? gritou de dentro a esposa de
Gaspar.
— Queira vir até cá, respondeu o marido com
voz macia.
— Não me faltava mais nada! venha cá você.
Gaspar fez um gesto de ameaça aos pequenos e
foi ter com a mulher a que expôs o que acabava de ouvir.
— E que tem você com isso? disse-lhe a
mulher. Se os pequenos gostam um do outro, fazem muito bem; e eu até estimo
isso, porque já andava com ideias de os unir. Você veio atrapalhar tudo; ora
vai, vai tranquilizar os pequenos.
Gaspar engoliu dificilmente a pílula. Atravessou
o corredor como se passasse pelas forcas caudinas; e voltou à sala onde os
namorados tremiam pelo desfecho da cena.
— O amor, meus filhos, disse ele, é uma coisa
santa, se vocês se amam com seriedade, sou o primeiro a aprovar esse sentimento
que nos eleva aos nossos próprios olhos; o que eu combato, e que todos os bons
pais devem combater, é o namoro sem fim, o passatempo indigno de jovens bem
formados. Quando eu e a respeitável D. Angélica (aqui levantou muito a voz) nos
amamos foi...
— Deixe-se de estar contando essas coisas aos
pequenos, clamou de dentro a senhora dona Angélica.
— Foi seriamente, continuou Gaspar em voz
baixa.
Tudo favorecia os amores de João das Mercês;
mas ele não contava com o destino.
André das Mercês, pai do nosso João,
arrependeu-se um dia de ter posto o filho fora de casa, e foi ter com a irmã
para obter a volta de João das Mercês. D. Angélica opôs-se vivamente à saída do
sobrinho. Disse francamente ao irmão que o seu projeto era insensato; que, já
que tinha praticado um erro, devia aguentar com todas as consequências dele.
André era tão esturrado como a irmã;
respondeu-lhe rispidamente; ela insistiu; insistiu; e depois de uma longa
discussão em que ambos mostraram toda a solidez da respectiva língua, saiu
André disposto a proceder violentamente.
Em caminho refletiu que não era conveniente
dar um escândalo, e que podia alcançar tudo por bons modos.
— Talvez ela hoje estivesse de mau humor,
pensou ele.
Encontrou o cunhado e expôs-lhe a questão.
— Meu amigo, disse-lhe Gaspar, eu aprovo o
procedimento de minha mulher, sem deixar de aprovar as suas louváveis intenções...
— Louváveis, tem razão, acudiu André; o que
eu quero é receber meu filho em casa. Assiste-me o direito...
— Não contesto.
— A mana está teimosa; mas se você intervier,
pode ser que eu consiga alguma coisa...
— Acha então que eu...
— Sem dúvida, venha comigo.
— Vamos. Minha mulher atende muito ao que eu
digo. Com duas palavras minhas estou que arranjarei tudo. O caso é que o senhor
não estrague tudo com as suas insistências... Deixe-me falar só.
— Estou por tudo; eu não desejo brigar com
ela.
— Está visto. O que se quer é fazer-lhe ouvir
a razão. Sabe o que são senhoras; caprichosas, intolerantes; mas deixe-me, eu
farei tudo... Espere-me aqui um bocadinho, que eu vou ali à esquina comprar
rapé, que tenho a caixa vazia.
— Eu vou também.
— Não; deixe-me ir só; o homem não gosta de
vender rapé à vista de gente. São três minutos.
Gaspar voltou à esquina e meteu-se em um
corredor. André, depois de passear perto de um quarto de hora, foi à esquina e
perguntou no armarinho pelo cunhado.
— Aqui só veio um preto comprar uma vela de
cera, respondeu o caixeiro.
André ficou furioso, mas compreendeu tudo.
Sabia que a irmã dominava o marido, mas não calculava que chegasse a tanto.
Resolveu, portanto, fazer as coisas por si.
No dia seguinte apareceu em casa de Angélica
(não ouso dizer em casa de Gaspar) e de novo insistiu na entrega do pequeno; a
missão não teve nenhum efeito. André resolveu ir esperar à porta do Arsenal de
Guerra que o pequeno saísse e deitar-lhe a mão em cima.
João das Mercês não escapou ao laço.
Nesse mesmo dia foi morar para casa do pai
com ordem de não sair nem para o emprego nem para casa da tia.
Imaginem o furor de D. Angélica e a dor de
Marianinha. Gaspar fez cem projetos de vingança, sem que a mulher lhe aceitasse
nenhum.
Separado da jovem namorada, João das Mercês
ficou entregue ao mais profundo desespero. Correram os meses sem que se
avistassem os dois. Ao cabo de um ano, André arranjou para o filho um emprego,
e foi a primeira vez que o mísero pôde pisar a rua. Seu primeiro cuidado foi ir
à casa da tia.
Achou-se na sala toda a família e mais um
rapaz de casaca e luvas brancas. Marianinha empalideceu um pouco, mas logo lhe
passou essa manifestação de remorso. Remorso digo, porque o sujeito de luvas
brancas e casaca, como o leitor há de ter percebido, vinha pedir a moça em
casamento.
D. Angélica acabava um discurso acerca dos
deveres do casamento e do amor das mães aos filhos, discurso que Gaspar ouvia
com aprovação de cabeça, e o noivo com abrimentos de boca.
João das Mercês não resistiu à dor. Saiu
furioso acusando os céus e a terra das suas desgraças. Complicaram-se estas com
a morte do pai. João das Mercês ficou no mundo sozinho. Era preciso trabalhar;
o rapaz entrou a trabalhar como um mouro.
Houve entretanto não sei que pretendente ao
lugar dele; parece que o pretendente tinha jus ao lugar, porque um dia de manhã
o chefe da repartição mandou chamar João das Mercês e deu-lhe a triste notícia
de que estava demitido.
Nessa triste posição esteve João das Mercês
uns quinze dias que foi quanto lhe durou o resto do ordenado. Ao fim desse
tempo não tinha que comer. O estômago é engenhoso e tem boa memória. João
lembrou-se que havia, em uma casa de pasto do seu conhecimento, um caixeiro a
quem emprestara dez mil-réis em ocasião em que se achava desempregado. Correu
para lá.
O caixeiro conheceu o credor, e acudiu a
servi-lo. João das Mercês pediu alguma coisa para almoçar, e fingindo ler a
lista declarou ao caixeiro que não tinha dinheiro naquela ocasião.
O caixeiro era bom rapaz e não deixou de o
servir. Foi pelo mesmo teor o jantar e a ceia. No dia seguinte não havendo
outra vela no horizonte culinário, João das Mercês recorreu ainda ao caixeiro,
que não deixou de lhe fiar o comer; mas pensando que a penúria de João das
Mercês era temporária, limitou-se a afiançar ao dono da casa a capacidade do
freguês.
Ao fim de duas semanas, quando João das
Mercês se assentava para comer o seu décimo-quinto almoço, o dono da casa
foi-lhe levar uma conta que fez empalidecer o pobre rapaz.
— Amanhã lhe pago isto, respondeu ele pondo a
conta no bolso, e com tanta confiança que parecia estar à espera de algum
legado. Ignora-se como comeu ele no dia seguinte e nos outros. Um mês depois
achamo-lo empregado em copiar certidões e outros papéis em casa de um tabelião.
Era ativo no trabalho e sério no procedimento; infelizmente o tabelião padecia
de moléstias que o enchiam de mau humor certas manhãs, mormente se comia na
véspera carne cozida. Um dia em que o tabelião entrou no cartório afinadíssimo,
João das Mercês teve a desgraça de copiar mal um papel. O tabelião revoltou-se
contra o escrevente, e mandou fazer outra cópia, a qual, não saindo capaz, levou
o tabelião às nuvens. Por desgraça, João das Mercês abalroou na mesa e
entornou-lhe o tinteiro sobre uma procuração.
Foi demitido.
Tentou João das Mercês entrar no comércio, e
alcançou ser admitido como sócio de indústria em um armarinho. O armarinho era
afreguesado e João das Mercês julgou ter enfim dado o último golpe no
caiporismo. Daí a um ano reconheceu que andava iludido com a aparente vitória.
O caiporismo é a hidra de Lerna.
O sócio disse-lhe um dia de manhã que ia
buscar um primo em Sapopemba e partiu acompanhado de uma pequena mala.
João das Mercês ficou em casa só.
Mas os dias correram sem que o sócio
voltasse; até que João fosse surpreendido com uma letra de quinhentos mil-réis.
Recorreu à burra e não achou vintém. Deu parte à polícia; mas nem por isso
escapou da correição.
Foi solto depois de um laborioso processo em
que ficou provada a sua completa inocência. Os credores tomaram conta dos bens,
e João das Mercês ficou no meio da rua com as algibeiras vazias e nenhuma
esperança de melhora.
Não tinha as algibeiras vazias de todo;
depois de as revolver muito achou seis mil-réis.
— Que tempo me durará isto? perguntou ele a
si mesmo. Nem três dias; é preciso comer e dormir. Acabado este dinheiro estou
como antes. Que farei?
Aqui teve uma dessas inspirações que salvam
impérios.
— Gasto dez tostões em alguma coisa, e com os
cinco mil-réis de resto compro um quarto de loteria.
Já sabemos que ele tinha esta mania que lhe
deixara uma das sete amas.
Assim fez.
Depois de comer tranquilamente um almoço
sucinto e modesto, encaminhou-se para a Rua da Quitanda e comprou o bilhete.
— 1441, disse ele, bom número; tenho fé.
Tinha uma esperança mas não tinha jantar nem
cama. Felizmente a roda corria no dia seguinte. João das Mercês entrou a
passear pelas ruas, disposto a sofrer filosoficamente a fome e o mais na
esperança dos vinte contos.
Casualmente encontrou o tio Gaspar.
— Como estás? perguntou-lhe o tio.
— Bom.
— Já te livraste do processo?
— Já.
— Tão depressa?
— Acha que foi depressa?
— Sim, essas coisas costumam a ser mais
longas. Eu quis fazer alguma coisa por ti; mas tua tia, que é uma senhora de
muito bem pensar, disse: “— Era bom ir socorrer o Joãozinho; mas o crime é tão
feio que não é bom a gente meter-se nisto; que pensas tu, Gaspar?” “— Que hei
de pensar, mulher? Penso que o rapaz é inocente e que foi atraiçoado; mas as
aparências enganam... e nesse caso é minha vontade que não nos metamos nisto”.
— Faz bem.
— Onde estás agora?
— Aqui na rua.
— Mas qual é o teu emprego?
— Passear.
— Que dizes?
— A verdade.
Gaspar, que não era mau homem, ficou
penalizado com a situação do sobrinho. Quis fazer alguma coisa por ele; mas não
ousava.
— Já comeste?
— Hoje comi; amanhã não sei.
— Olha, disse Gaspar com um belo movimento de
generosidade, toma lá; eu fui agora mesmo receber um dinheiro; toma dez
mil-réis.
João das Mercês aceitou os dez mil-réis e
abraçou o tio.
— Bem! disse ele, a sorte começa a ceder. Já
tenho com que dormir hoje e comer amanhã.
Era não contar com o caiporismo e D.
Angélica. Esta senhora pediu ao marido contas do dinheiro que fora cobrar.
Gaspar contou-lhe francamente o estado em que achara João das Mercês e o
procedimento que tivera. D. Angélica irritou-se contra o marido e o sobrinho e
exigiu a imediata entrega do dinheiro. Por honra dela, devo dizer que a sua
intenção era simplesmente mortificar o marido. Mas este, acostumado a
obedecer-lhe, tomou à letra a ordem e saiu desesperado em busca de alguém que
lhe emprestasse dez mil-réis.
Esse alguém foi o sobrinho.
João das Mercês viu de longe o tio e
aproximou-se dele. Achou-o triste e taciturno, perguntou-lhe o que tinha.
— Nada, disse Gaspar.
— Alguma coisa tem meu tio; vamos, diga o que
é.
Gaspar não disse palavra.
Então lembrou-se João das Mercês do domínio
que a tia exercia no ânimo do marido, e calculou que a tristeza de Gaspar se
prendesse ao generoso presente dos dez mil-réis.
— Qual! disse Gaspar, quando João das Mercês
lhe comunicou a suspeita; Angélica não era capaz de semelhante coisa; estima-te
e respeita-te. A verdadeira causa de minha tristeza é que esse dinheiro não era
meu, e eu dei-te os dez mil-réis por engano.
João das Mercês entregou o dinheiro ao tio.
Gaspar sentiu-lhe borbulhar-lhe uma lágrima
nos olhos. Apertou a mão ao sobrinho e foi para casa. Entrava triunfante com os
dez mil-réis, quando D. Angélica, franzindo o sobrolho, perguntou-lhe de onde
os houvera. Gaspar confessou-lhe a verdade.
— Que! exclamou a esposa; pois tu tiveste
ânimo de ir tirar estes pobres dez mil-réis ao rapaz que nem comer tinha?
— Mas tu...
— Eu, o quê? Eu disse aquilo por dizer. Vai,
vai entregar este dinheiro ao pobre rapaz.
— Onde o encontrarei agora?
Gaspar saiu e não achou o sobrinho. Às
ave-marias voltou para casa, mas receando que a mulher lhe revistasse as
algibeiras, coisa que nunca deixava de fazer todas as noites, tratou de gastar
os dez mil-réis como pôde.
João das Mercês passou a noite na rua; no dia
seguinte almoçou com um outro companheiro do cartório; e à hora do costume foi
para a Misericórdia ver correr a roda.
— Tenho um pressentimento, disse ele consigo,
de que hoje venço o destino.
Chegou; dez minutos depois o nº 1441 era
aclamado como tendo obtido os vinte contos de réis.
João das Mercês desmaiou.
Deram-lhe os prontos socorros. Tornou a si,
apalpou as algibeiras; e achou o abençoado bilhete.
Graças a este recurso inesperado foi à antiga
casa de pasto, cuja dívida estava paga, e apresentou o bilhete.
— Tenho aqui a sorte grande; dê-me de jantar
que eu depois de amanhã lhe satisfaço a conta do que for.
Foi prontamente obedecido. Jantou como um
príncipe. No fim pediu ao caixeiro conhecido, sempre sobre a base do bilhete,
alguns charutos que só tinham o defeito de não serem de Havana; no mais não
prestavam para nada.
Mas naquela situação tudo o que se fuma é
bom. Qualquer homem fumará alegremente couro de boi, se tiver a certeza de que
no dia seguinte lhe metem na algibeira vinte contos de réis.
Acabava ele de acender um charuto, quando um
sujeito que lhe ficara fronteiro, e tinha ouvido a conversa com o dono da casa,
lhe disse com familiaridade:
— Com que então tirou a sorte grande?
— É verdade, respondeu João das Mercês, com a
indiscrição de um homem feliz após tantas desgraças. Tirei a sorte grande e
ainda estou admirado disso.
— Por quê? disse o sujeito, levantando-se com
a xícara de café na mão e indo assentar-se à mesa do rapaz.
— Porque fui sempre muito caipora. Nunca
comprei bilhete que me saísse sequer o mesmo dinheiro. Desta vez porém acertei...
— Homem, eu também fui sempre caipora. Joguei
dois anos com o mesmo número e nunca tirei mais de 40$000. Um dia porém, saiu o
diabo detrás da porta e caiu-me a bicha em casa.
— Sim? Quando foi isso?
— Foi há seis meses.
— Um quarto ou bilhete inteiro?
— Meio bilhete. Recebi dez contos.
— Talvez não precisasse deles...
— Quase que lhe posso dizer isso. Graças a
Deus ainda que não viessem os dez contos, tinha com que passar. Acontece-lhe o
mesmo?
— Infelizmente não, disse João das Mercês
seduzido com a maneira e a confiança do interlocutor.
— Mais uma razão para que eu o felicite.
O desconhecido apertou a mão a João das
Mercês e ofereceu-lhe um charuto.
— Estes charutos daqui não prestam, tome
este.
João das Mercês acendeu o charuto depois de
pôr o seu fora, e reclinou-se sobre a mesa a conversar com o desconhecido.
Ao fim de uma hora saíram de braço dado. O
desconhecido disse chamar-se Viana; João das Mercês deu também o seu nome.
Saíram como dois amigos velhos. Passearam todo o tempo; Viana levou a
benevolência ao ponto de o convidar a tomar um sorvete no Carceller.
Perto da noite, disse Viana para João das
Mercês:
— Vou levá-lo até à sua casa.
João das Mercês fez uma careta.
— Isso agora há de ser mais difícil, disse
ele depois de alguns instantes.
— Por quê?
— Porque...
— Seja franco.
— Pois bem, meu caro, eu não tenho casa!
— Não tem casa?
João das Mercês contou fielmente ao amigo a
sua posição. Viana ouviu a narração com visíveis sinais de simpatia.
— Pois se isto o não incomoda nem ofende,
ofereço-lhe por hoje um hospício. Amanhã já não será preciso porque receberá o
dinheiro.
— Aceito.
Dirigiram-se para a Rua da Misericórdia.
Viana morava ali em um primeiro andar mobiliado com algum asseio.
— A casa não está arranjada, disse ele, mas é
porque eu mais me entendo com a desordem que com a ordem.
— Está excelente, disse João das Mercês. Ah!
meu caro senhor Viana, creio que sou agora verdadeiramente feliz. No dia em que
me entra o dinheiro pela porta, entra-me um amigo pelo coração. Pela porta é
metáfora, acrescentou ele rindo.
Viana apertou-lhe a mão comovido.
— Tive um amigo da sua idade; era a mesma
alma franca e aberta aos sentimentos generosos; permita-me a ilusão de que o
encontrei agora...
— Espero que não seja ilusão, exclamou João
das Mercês.
Conversaram até alta noite. À uma hora João
das Mercês disse que estava com sono.
— Eu também, disse Viana. Vamos dormir. Tenho
sempre esta outra cama pronta para o que der e vier. Olhe, gosto de acordar
cedo.
— Homem, nestas alturas não se me dera acordar
mais tarde, respondeu João das Mercês que, como sabemos, adquirira de uma das
suas amas o modo de dormir demais.
— É que eu tenho de sair cedo, para levar um
papel à estrada de ferro. Às nove horas estarei de volta.
— A minha madrugada será às nove horas.
— Veja lá se perdeu o bilhete.
— Nada, cá está no bolso do colete.
Dormiram.
No dia seguinte, seriam onze horas quando
João das Mercês abriu os olhos. Viana ainda não tinha voltado. O rapaz
costumava estar na cama acordado ainda um quarto de hora. Ao fim desse tempo
levantou-se, lavou-se e vestiu-se.
Não tendo relógio não sabia que horas eram. O
sol estava encoberto. João das Mercês chegou à janela a ver se via o dono da
casa.
Não viu ninguém.
Pouco depois deram os sinos meio-dia.
— Meio-dia, disse ele. Onde estará este
homem.
Começou a sentir fome e a arrepelar-se com a
demora, quando instintivamente levou a mão ao bolso do colete.
Não achou o bilhete!...
— Roubado! exclamou ele com desespero.
Chegou à janela, gritou, acudiu gente à porta
que o deram por maluco. Do segundo andar desceram algumas pessoas, e depois de
ouvirem as queixas do mísero rapaz, foram chamar a autoridade.
Quando o rapaz conseguiu achar-se na rua eram
já duas horas. Seu primeiro pensamento foi ir à casa de loteria.
Correu para lá.
Ó desgraça! todos os quartos da sorte grande
estavam pagos. Deu os sinais de Viana e eram os mesmos de um sujeito que lá
fora cobrar um quarto.
Não se pode descrever o desespero de João das
Mercês. Faltava-lhe aquele golpe mais terrível que todos, o de ter a fortuna na
mão e senti-la voar como um pássaro esquivo.
Não hesitou; a ideia de morrer entrou-lhe na
cabeça como uma solução às suas desgraças.
No fundo do bolso ainda achou um cartão de
barca. Dirigiu-se à ponte e tomou passagem para São Domingos.
No meio da viagem, aproveitou o descuido das
pessoas que se achavam perto dele e atirou-se ao mar.
Houve logo a bordo o rebuliço que um caso
destes produz. A barca parou e a bordo se empregaram todos os esforços para
salvar o infeliz.
João das Mercês veio à tona d’água quando lhe
atiraram uma corda; ele repeliu-a com energia.
Seu pensamento era morrer.
Não contava com o caiporismo.
Os esforços empregados em favor de uma
criatura que não queria nada da vida, foram coroados de sucesso, João das
Mercês foi salvo.
Passado esse triste acontecimento, João das
Mercês dispôs a lutar violentamente com a sorte; pareceu-lhe esta sorrir.
Alcançou o rapaz um emprego que lhe dera com que viver pobremente.
Alugou uma casinha na Cidade Nova, e assim passou
alguns meses.
Um dia reparou que havia defronte uma velha
que não deixava de sorrir quando ele entrava ou saía de casa. João das Mercês
cumprimentava-a cortesmente, mas não julgava que o riso fosse com ele.
A casa da velha era a melhor casa da rua, e a
moradora passava por ser rica.
Quando João das Mercês descobriu que o riso
era com ele, começou a prestar maior atenção à vizinha. Esta redobrou de
demonstrações e seria enfadonho contar aqui miudamente os acontecimentos que se
deram depois. Basta saber que João das Mercês entrou a frequentar a casa da
vizinha, e esta declarou-lhe francamente o amor que o moço lhe havia inspirado.
Não devendo esperar que a própria velha
oferecesse aquilo que era um favor para ele, João das Mercês exclamou um dia:
— E se nós nos casássemos?
— Essa é a minha intenção, disse Margarida,
se acha que eu o posso fazer feliz.
— Oh! mais que feliz!
A velha tinha duzentos contos.
Era mais que a sorte grande.
Marcou-se o dia do casamento, correram os
pregões, João das Mercês mandou fazer a roupa nova e convidou Gaspar para ser
padrinho.
— Sem dúvida, meu rapaz, respondeu o tio, mas
quem é a madrinha?
— Eu tinha-me lembrado de minha tia...
— Conta com ela; vou agora mesmo avisá-la.
Margarida não cabia em si de contente; dizia
que apesar da idade que tinha, sentia em si mais amor do que nunca tivera ao
defunto marido.
João das Mercês disse a mesma coisa. Amara
muitas vezes, mas nunca com tanta força.
— Sei o que é, acrescentava ele, é que eu
amei sempre a umas deslambidas sem gravidade nem as graças que só se podem ter
em certa idade.
Margarida não tinha parente nenhum com
exceção de um primo remoto, que fez todos os esforços para impedir o casamento,
e que nada tendo alcançado, resolvera aceitar o convite para ser padrinho, não
podendo brigar com a parenta rica.
Raiou enfim a véspera do casamento.
Por conselho da noiva, João das Mercês tinha
desistido do emprego, aliás com repugnância, porque não queria parecer que ia
viver às sopas da mulher. A coisa era isso mesmo, mas ele não queria a
aparência da coisa.
Terníssimos foram os adeuses dos noivos na
véspera do casamento. João das Mercês já tinha fechado a porta, e Margarida
ainda acenava com o lenço.
Alta noite foi João das Mercês acordado por
violentas pancadas na porta. Levantou-se sobressaltado e foi ver o que era.
Era um escravo de Margarida.
Vinha dizer que a senhora estava mal; e que o
mandava chamar.
A primeira frase de dor do rapaz foi toda
egoísta: Ah! meu caiporismo! Exclamou ele enfiando as calças.
Margarida estava realmente às portas da
morte. Quis ver o noivo; este chegou; ela apertou-lhe a mão com ternura.
Depois chamando o primo declarou que desejava
fazer o seu testamento, mas ainda não tinha acabado de falar que expirou.
João das Mercês teve um ataque.
Quando voltou a si, o pobre rapaz lembrou-se
outra vez de morrer. Mas tantos sucessos lhe tinham embotado a energia.
Nunca raiou dia de felicidade para este
infeliz. Tem sido sucessivamente agente de procurador, copista de advogado,
porteiro de teatro, vendedor de bilhetes de loteria, negociante de charutos,
sempre perseguido pela fatalidade.
Ele mesmo diz com resignação evangélica:
— Sou o rei dos caiporas!
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