Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Desde que o Emílio estava doente, todos os
dias, ao anoitecer, se reuniam no seu quarto e assim ficavam algumas horas,
numa intimidade meiga, como se dessa cabeça de precoce, ungida de sossego, dos
seus olhos de adivinho, de um veludo grande e calmo, se exalasse paz, uma paz
clara, em que tudo se perdoasse e se esquecesse.
Tinham já lugares marcados. A
mãe à cabeceira, logo ao pé a tia Olívia, para contar histórias; os outros em
redor, e aos pés da cama, em frente ao doentinho, o busto nobre do tio Eduardo,
já grisalho, a sua máscara fina um pouco vaga, como a de todos os que vivem no
silêncio como outrora se vivia num convento. O pequenino era assim uma
figurinha de mito familiar, e nas suas palavras lentas, de intuição e de
carícia, todos se ouviam como o mar nas conchas. Tinha uma voz de sombra amiga.
Adoravam-no. Mas agora, martirizado de dores, a consumir-se dia a dia, as
mãozitas transparentes, entravam no terror de o ver pior. E se um móvel
estalava, um farrapo de luar batia os vidros, ou ao cair da noite, a sombra
vinha,— tremiam no silêncio, tinham medo, como se disfarçadamente a Morte
entrasse, viesse de mansinho para gelá-lo.
Às vezes, nas pausas de algum
conto ou da conversa, se alguém se voltava, logo os outros inquietos o seguiam;
e era vulgar olharem a porta de soslaio, como se esperassem alguém, uma
visita...
Todos falavam em surdina,
velando a voz um pouco opressa, e assim as coisas mais banais tinham um não sei quê de estranho; as palavras
caíam como folhas secas e nos olhos de todos havia uma expressão de adeus. Nem
todos, nem todos! A mãe radiava fé. Bastava ver-lhe as mãos correndo a dobra do
lençol, de veias altas, intumescidas de ternura, e pousarem numa geada de
beijos nas mãos do seu filhinho, para sentir a emoção louca, religiosa, tendo
ressurreições em cada gesto, sarando num olhar, numa oração. É que essa criança
era a sua própria alma, presa naquele leito como um passarito enfermo, abrindo
para ela olhos enormes, como para decorar bem, antes de partir; e dizendo de
quando em quando: “mamã, minha mamã”, num rumor de asa cansada.
Era muito moreno, tinha a
testa alta, um pouco bombeada, boca de lábios finos, mento curto, bussolado em
covinhas, que a magreza já quase que delira. Mesmo quando tinha saúde, ria
pouco; não sabia brincar e qualquer coisa, o mais simples aspecto, o distraía
como numa visão inconsciente.
Tinha um ar de quem se lembra.
Uma vez foi ao colégio. Voltou com febre, doente, a tremer todo, e quando o pai
o interrogou, só pôde dizer “que não era nada, que não tinha nada”. Mas à
noite, quando a mãe ia a deitá-lo, rompeu a beijar-lhe as mãos, num choro
brusco, e mal pôde pedir entre soluços, de mãos postas, para não voltar... para
não voltar mais ao colégio.
— Sossega, meu filhinho. Quem
te fez mal? Que te fizeram? Não voltas mais, não voltas mais. Que te
fizeram?...
— Vi bater num menino.
E outra vez o choro o sufocou,
em bagas grossas, torcendo o seu corpinho de arbusto à ventania. Nessa noite
teve febre, delirou, e os pais resolveram que tão cedo não voltava. Pediu então
à mãe que o ensinasse. Ao cair das tardes, com a costura no regaço, ela
dava-lhe lição, e em pouco tempo, por entre confidências que eram beijos, ele
aprendeu maravilhado a ler. O seu amor cresceu ainda, como regado de gratidão.
Dizia “mamã” como quem reza.
Adorava-a. Nas tardes de sol,
os irmãos brincavam no quintal; chamavam-no, e como ele era o mais pequeno,
faziam-lhe mimos, numa grande ternura protetora. Ele não ia, desculpava-se.
Preferia ficar junto dela, na varanda de pedra, a vê-la bordar.
— Não queres brincar, Milinho?
Vai, vai brincar com os manos.
Ele erguia os seus olhos de
veludo:
— Deixe-me estar ao pé de si, mamã.
Não há nada tão bom para mim.
Raro saíam. Às vezes, com a
mãe, ia às tardes à Foz para ver o mar. Voltavam ao anoitecer. Falavam pouco.
— Gostas do mar, Milinho?
— Muito, mamã, muito. É a
coisa mais linda que há.
Foi ao voltar de um passeio
assim, numa tarde de novembro, que o pequenino teve tosse e cuspiu sangue.
— Que te dói? Dói-te o peito?
— Pouco, mamã. Não se aflija.
Não há de ser nada.
O médico veio, aconselhou
cautela, receitou. Teve depois com o pai uma conferência larga. E foi então que
o terror abriu sobre ela as asas côncavas, geladas. Não podia dormir.
Levantava-se a cada instante, para ver se estava bem coberto, se tomara o
remédio, para senti-lo. A tosse dele feria-lhe também o peito; transia-a toda,
como um dobre. Vestia-se à toa, sem cuidado. Tudo o mais lhe era indiferente.
Marido, os outros filhos, família, governo da casa, visitas, os outros... que
lhe importavam agora, se o seu filhinho estava mal?
E extenuada, adormecia às
tardes à cabeceira do doentinho, que a olhava a sorrir, muito feliz, como se
fosse um ser de conto preso num lindo encantamento. Pouco a pouco, apesar de
ninguém o achar melhor, foi-se esvaindo o terror dela, e uma grande loucura, a
loucura divina da esperança, galvanizou-a de coragem, deu-lhe fé. Amava-o com
toda a carne e toda a alma.
O casamento tinha sido, para
sua índole delicada de romântica, uma decepção dolorosíssima a que pouco a
pouco se adaptara. Não teve crises, não sofreu violentamente. Foi um espairecer
lento da ilusão; todo o seu sentimento que morria como uma planta à sede; e ela
curvara a cabeça, aceitava a vida que lhe davam, com uma resignação de fraca
que se esquece. Teve dois filhos. Criou-os. E uma paz de maternidade um pouco
animal, foi-a acalmando; o seu passado de sonho estava longe, nas águas mortas
da memória; e ia vivendo assim, anestesiada, sem os sobressaltos de nervos de
outros tempos, uma vida normal e clara, no seu lar, entre os seus. Era uma
renúncia sem tortura, inconsciente.
Passaram alguns anos,
uniformes, que só a doença de um filho ou do marido vinham alvoroçar de longe a
longe, e que por fim se sumiam na memória, na mesma cinza neutra, pardamente.
Vivia como se fosse a própria sombra. Já não esperava ter mais filhos. Quando
soube que ia ser mãe ainda uma vez, teve a emoção maior da sua vida. Certo, ela
foi sempre boa mãe: amava os seus dois filhos muito e muito. Mas agora era
diferente, era outra coisa. O que viria era mais, bem mais que os outros: era o
filho dela e do seu sonho... Ressuscitou em si mesma: renasceu. O seu sangue rezava
nas artérias promessas que antes não lhe ouvira, e começou a parecer-lhe que
esse filho era a compensação que Deus lhe dava, quase um milagre, a flor
inesperada em que o seu sonho redivivo iria abrir.
A sua vida banal,
desencantada, murchando dia a dia, sem interesse, num automatismo frio e
resignado, fora uma provação, tinha passado: e os seus nervos de histérica,
despertos, com todo o amor que a vida sufocara, calcado em resignação, morrendo
à sede, renasciam a vibrar de esperança, davam-lhe uma beatitude transcendente.
O seu filho (estava certa que
era um filho) seria um pequenino abençoado, com um destino que só ela e Deus
sabiam, e no primeiro olhar que ele lhe desse, pressentiria um evangelho novo
como um beijo a correr-lhe toda a alma... Tudo mudou na vida dela, tudo. Mal
falava aos filhos, ao marido, que interpretava a estranheza dos seus modos como
a mudança de caráter, os caprichos que muitas mulheres têm naquele estado. Se a
olhavam insistentemente ou lhe faziam perguntas, alusões, isolava-se, desaparecia
de repente, como alguém que vive para um segredo e receia que os outros lho
desvendem. Parecia mais alta, enlanguescida, com grandes olhos sempre a olhar
para dentro, como tem certas aves e os mármores.
Em solteira, nunca fez
confidências às amigas. Tecia a sua teia no mistério. Todos lhe achavam
qualquer coisa de dormente: não compreendiam bem o seu caráter. Mas como era
modesta e era boa, esquecida de si mesma e sem vaidade, deixavam-na viver no
seu silêncio como um nelumbo de pureza à flor de um lago. Mesmo no seu
isolamento da província, onde vivera com os pais até casar, lia pouco e sempre
os mesmos livros: vidas de santas, lendas de conventos. Exaltava-se com eles,
tinha fé em qualquer coisa que Deus lhe reservava. Durante os serões lentos,
costurando, cismava que nascera para freira. Toda a sua energia, a sua força,
abrasava o seu sonho, era interior: e quando batiam à porta da sua alma, ela
saía distraída, resignada, a obedecer aos seus passivamente. Esperava contudo
um não sei quê. O Destino dissera-lhe um segredo. E sem contar a ninguém o que
pensava, vivia como uma eleita: estava à espera... Os seus vinte anos em flor
eram para ele.
Foi debruçada a esta ogiva de
mistério, que a vieram chamar para a casarem. Depois a decepção, o sofrimento:
mais tarde a renúncia, a anestesia na sonolência banal dos seus cuidados.
Apesar de não casarem por
amor, outra qualquer, no seu lugar, era feliz. Ele era forte, delicado e bom. A
sua vida de engenheiro absorvia-o. Quando viu que aquela rapariga, que conhecera
na província vaga e meiga, continuava nos seus braços abstraída, com um olhar
desencantado e quase triste, compreendeu que fizera mal em ir buscá-la como
quem colhe um lindo fruto: erguendo o braço. Tentou então insinuar-se pouco a
pouco, interessá-la nas suas coisas, diverti-la. Por fim resignou-se, desistiu.
Como não era um sentimental, um romanesco, e a sua profissão o apaixonava,
contentou-se em ter nela uma amizade, um ser de lealdade e de doçura,
desdenhando teatros e convívios pela paz transparente do seu lar, e vivendo
para ele, para os filhos, e para aquela vida inviolada que desfocava os seus
olhos noutros céus... Como porém tudo mudara agora!
Dia a dia, a exaltação dela ia
crescendo. Uma noite mesmo teve febre, e o médico lembrou que para acalmar, era
melhor uma mudança de ares, uma temporada na aldeia ou à beira-mar. Partiu
então para o Minho, para a quinta, e como nem o marido nem os filhos podiam
nesse tempo acompanhá-la, levou consigo apenas as criadas, dizendo que preferia
ficar só na grande paz do campo, a sossegar.
Era na Páscoa. Nessa
ressurreição da primavera, ao abrir a janela do seu quarto, aspirou no perfume
dos lilases a esperança que subia com as seivas, vibrando já nas asas
migradoras e no pólen que dourava o ar.
Enternecia-a tudo: as relvas
novas, ver os rebanhos beberar às tardes quando os montes violáceos se
concentram, os pássaros felizes no pomar, e à hora das regas, ao crepúsculo, a
alegria das águas borbulhantes, quando as estrelas vêm, tudo descansa, pelos
atalhos vão chiando carros, e nos paus, pobres poetas líricos, os sapos piam
comovidamente. Nunca sentira tanto a natureza.
E foi nesta atmosfera de pomar
que ela esperou misticamente a hora suprema, querendo sofrer, feliz, extasiada,
como uma nuvem alta da manhã que o sol rompesse para descer aos homens...
Davam Trindades. A tia Olívia
contara um lindo conto. Ao sair dos palácios de feeria por onde a voz dela o ia
levando, o Emílio ficava a olhar as joias, os anéis, a pedras preciosas
esparsas na sua mesa de doente e luzindo em sortilégio, na penumbra. Eram olhos
de fadas, encantados...
Não tiveram remédio senão
dar-lhos: por quanto tempo, meu Deus, por quanto tempo?... Para o distrair, há
dias, o tio Eduardo tirou os anéis e deu-lhos, e como o viram ficar muito
contente, os outros deram-lhe também os que traziam. Mas quando iam nessa noite
a despedir-se, ele ficou tão triste ao entregá-los, que o tio Eduardo propôs
que lhos deixassem e todos imediatamente consentiram.
— Fica com eles, Milinho,
guarda-os, guarda-os.
— Mas não são meus, não
quero... Assim, não quero...
— São todos teus, são todos
teus, meu filho.
Então em roda todos
confirmaram a mentira de amor que o alegrava.
Daí por diante, sempre àquela
hora, vivia num delírio de grandezas. Mas nesta tarde, ou porque o conto mais o
impressionasse, ou porque estava mais fraco e com mais febre, a excitação do
Emílio era maior. Os seus olhos de mago, muito abertos, dois veludos de febre
ainda mais negros, magoavam-se fitando as pedrarias, esse baile de cores e de
reflexos que pareciam mais vivos na penumbra, e como se a febre dele os
contagiasse, tinham fulgurações de um brilho agudo. Abria, abria os olhos
fascinado.
— Que lindo, mamã, veja que
lindo!
Toda a sua carita consumida
desaparecia no clarão dos olhos, mais pretos que asas de andorinhas, ao
tremerem no ar em despedida. Outro sino mais longe deu Trindades, numa voz de
prata e de fadiga, como se lhe custasse a vibrar até ao quarto. Todos estavam
opressos, sem falar. E ele, erguendo os braços de repente, deixou-os ir caindo
sobre as joias, cobriu-as com as palmas das mãozinhas, puxando-as contra o
peito avaramente:
— São todas minhas, não é? São
todas minhas...
— Todas, Milinho, disse a mãe
transida. Vergou-se então sobre elas com esforço, como se fosse para as beijar,
branco de cera, e repetiu ainda extasiado:
— É lindo, lindo... lindo. Não
dou nenhuma a ninguém. São todas minhas.
Espalhou-as um pouco sobre a
mesa, pôs de parte os anéis, ficou a olhá-los, e sorrindo à ideia que tivera,
disse baixinho:
— Vou pô-los nos meus dedos.
Começou a enfiá-los com cuidado nos dedinhos ossudos, só falanges, mas
deixava-os cair a cada instante, largos demais, em fugas de reflexos. Já ia na
terceira tentativa, num desespero mudo, a arfar cansado, quando o tio Eduardo e
a mãe o ajudaram. Levantaram-lhe as mãos quentes de febre, e enfiaram-lhe os
anéis nos dedos ósseos, que ele ergueu quanto pôde, deslumbrado.
— Mamã! Estavam a dar
Trindades. Vou rezar uma ave-maria, vou rezar.
Na penumbra da alcova, de mãos
postas, escorrendo em reflexos irisados, a sua vozinha disse a ave-maria num
timbre muito fino de carícia, como um adeus que punha os olhos rasos, num
veludo expirante de palavras, desses que tem no outono, a horas mortas, certas
folhas de arbusto a despedir-se. Nem o tio Eduardo se conteve. Brilhavam-lhe já
lágrimas nos olhos. Ninguém tinha coragem para falar.
A lua, que agora vinha muito
cedo, batia na varanda, brancacenta. Ele tirou os anéis devagarzinho, como um
ser de conto, a sorrir sempre, e deitou-se para baixo fatigado.
— Dê-me as suas mãos, mamã,
quero senti-las.
E ficou a beijar-lhas muito
calmo. No enleio de uma emoção religiosa, todos queriam quebrar esse silêncio,
feito de sonho e de apreensões de morte, que avançava talvez na luz do luar.
Foi o tio Eduardo que falou:
— Esteve hoje um dia lindo,
quase quente. Temos à porta a primavera. Dentro em pouco, Milinho, estás mais
forte; já podes dar à tarde o teu passeio.
— Logo que possa, mamã, vou
ver o mar. Consigo, sim?
— Se Deus quiser, meu filho,
havemos de ir. E ainda antes, há de ir para o quintal brincar com os manos.
Sabes que a tua árvore, a magnólia, já está cheia de flores muito brancas?
— Ó mamã, mamã, deixe-ma ver, —
pediu ele erguendo a cabeça de repente.
— Mas vais apanhar frio, meu
filhinho. Amanhã, amanhã, agora não.
Tanto insistiu, que o levaram
ao colo até à janela, embrulhado em cobertores, muito contente, e ficou assim
alguns instantes, a carinha colada contra os vidros, no deslumbramento da
magnólia, da sua árvore, erguendo o tronco negro e lívido de lua, e nos ramos
implorantes e afilados, as flores mais brancas que há na terra.
Deitaram-no. Deviam ser nove
horas, pouco mais. E como sempre, levantaram-se todos para partir. Cada um
então foi dar-lhe um beijo, e ao apertarem-lhe as mãos — adeus Milinho!— ele
olhou-os desta vez mais devagar, com um olhar que nunca mais lhe viram, em
longes de meiguice, de outro mundo, numa névoa de lágrimas contentes. E sorria
ao dizer:
— Adeus, adeus. Tio Eduardo,
tia Olívia, adeus, adeus...
Essa criança assim, a
despedir-se, com uma voz perlada de carícia, encheu-os de aflição e de terror;
e foi mordendo os soluços, sufocados, que saíram da alcova, que partiram,
ouvindo dentro deles o crocito — nunca mais! para sempre! never more!— desse corvo fatídico, de lutos, que Poe revelou em
versos trágicos. Qualquer coisa de lindo ia morrer. Qualquer coisa de lindo ia
morrer...
No entanto na alcova, o
pequenino, alongava os bracitos para a mãe e dizia feliz, como em segredo:
— Que bom, mamã! Que bom estar
só consigo! Sente-se aqui depressa, mais pertinho...
— Aqui me tens, Milinho, aqui
me tens. E beijava-o na testa longamente.
— Como eu gosto de si, minha
mamã! Quem me dera viver sempre ao pé de si!
— Deus há de te sarar. Verás,
verás...
— Bem sei que lhe faz pena,
não se aflija: qualquer dia, mamã, eu vou partir...
— Nem digas isso, meu amor,
nem digas isso.
— Vou-me embora, vou, para
muito longe... Não faço falta a ninguém. Ficam-lhe os manos. Só lhe deixo a si
muitas saudades...
— Se tu gostas de mim, não
digas isso.
Ele tornou mais lento,
resignado:
— Por sua causa, mamã, queria
viver ainda que fosse assim... sempre doente, sem sair do quarto, ao pé de si,
mamã, ao pé de si...
— Agora precisas de dormir, de
descansar. Fecha os olhos, Milinho, dorme, dorme...
— Então dê-me as suas mãos.
Quero dormir com as minhas mãos nas suas.
Dentro em pouco, serenamente,
adormeceu. Ela tirou as mãos devagarzinho, aconchegou-lhe a roupa contra os
ombros, e afastando-lhe dos olhos o cabelo, deu-lhe um beijo na testa, muito
leve.
Já o luar escorria pelos vidros
em lágrimas de opala e de mercúrio. A noite vinha ver o seu filhinho e enchê-la
de esperança e de coragem. Como o pai disse recolher mais tarde (uma entrevista
no clube para negócios) mandou deitar as criadas, ficou só: esperá-lo-ia ali,
junto ao seu filho. Como dormia bem, tão sossegado! Deus era bom, havia de salvá-lo.
E numa exaltação, quase feliz, encostou-se à vidraça a olhar a noite.
A magnólia ao luar estava
divina. Se o pequenino a visse, o pobrezinho! Como ele gostava das árvores, do
mar! Não se lembrava de ter visto um luar assim. Fazia-lhe tão bem: acalmava-a
toda. Via ao longe, no rio, as mastreações, e distinguia as vergas, o velame, a
luz dos estais à popa, nictitando. Vilanova, a casaria, os arvoredos, subiam do
outro lado empoalhados, e a névoa que se erguera pouco a pouco, era já na
colina ao luaceiro uma via-láctea nova, avoejante, salpicada de luzes, muitas
luzes, como se Deus atirasse com amor, às mãos-cheias de estrelas sobre a
terra. Toda a mole granítica da Sé, galvanizada a lua, se animara: corria luar
nas veias dessas pedras, morenas do sol de tantos séculos, e toda a catedral se
eterizava como se as gárgulas aladas das cimalhas acordassem para tentar um voo
último. A casaria mesmo, estava absorta. Que lindo, meu Deus, como era lindo!
Elfos de lua, gnomos, rondas fluidas, andavam no ar com o pólen dos jardins, e
as rosas de toucar por sobre o muro, fechando todo o quintal em trepadeiras,
tinham nuances de síncope, esmaiadas. A paisagem era um sonho deslumbrado, numa
assunção para Deus, erguendo os caules, e os troncos, as torres das igrejas, e
os olhos das janelas: de mãos postas. Deus fundira-se em lua, andava esparso,
como um filtro de sonho, transcendente, propiciando, amando, perdoando.
Bem certo: o seu filhinho
sararia. E nessa maré-cheia de luar, no encantamento sortilégio da noite, a
esperança subia a aluciná-la despertando o sonho místico de outrora. Aquela
figurinha não mentia: os seus olhos de mago eram proféticos. As suas mãos
tocando adivinhavam, como naquela noite, há já três meses, em que uniu, sob a bênção
dos seus olhos, as mãos do tio Eduardo e da tia Olívia, no silêncio que em roda
se fizera. Assim os dois souberam que se amavam, e ficaram a olhar o pequenino
como numa liturgia nupcial... E não tinha sete anos ainda então! Mesmo a sua
conversa perturbava, com inflexões de médium, reticentes, em que palavras de
sempre, as mais comuns, se engastavam em timbres de mistério. Nascera para
amar, o seu filhinho. E tudo, a sua voz de concha meiga, a sua palidez
estiolada, os seus olhos de oráculo — criança, diziam bem um ser predestinado,
um guiador augusto de destinos, em cuja atmosfera de carícia muita dor havia de
acalmar-se, como um perfume de rosa, a certas horas, nos beija com uma boca de
perdão.
Toda a vida do seu filho ia passando.
Descaíam-lhe as pálpebras, ao peso das quimeras debruçadas. E de repente,
estremeceu gelada. Sentiu o luar nas mãos, subiu-lhe aos seios... Se a beleza
da noite, transparente, este aquário em que a lua abria as veias e a vida da
terra ia boiando num abandono de ninfeia aberta, fosse afinal uma cilada dela,
um disfarce da Morte para roubar-lho!?... Meu Deus, meu Deus! Era possível que
ela viesse assim, essa maldita, na feeria argêntea dessa noite, com a foice
escondida em musselinas, silenciário carrasco sem memória, correndo em passos
de êxtase e de opala, e matando com um hálito de gelo, num aflorar de plumas
hesitantes junto do qual um beijo era grosseiro?... Um instante o terror
alucinou-a. Não deixaria a lua entrar na alcova! Ia fechar as portadas, e no
escuro, colando o corpo contra o seu filhinho, estaria mais segura, a
defendê-lo. Num sobressalto, foi até junto dele, ficou queda. Que imensa paz
nessa carinha meiga! Pôs-lhe a polpa dos dedos sobre a testa. Estava muito
suado como sempre. Mas a sua respiração era tão calma, e na concha das
pálpebras descidas havia uma doçura tão profunda, que se sentia bem que o seu
anjinho estava a sonhar com as fadas de algum conto, onde, como ele às vezes
lhe contava, a boa fada tinha a cara dela, e olhava e beijava como ela. Tudo
corria bem. Para que assustar-se? Os seus nervos, afinal, só os seus nervos! E
ao voltar-se de novo para a noite, teve remorsos de ter medo dela, de ter
desconfiado loucamente que esse luar de perdão espargelado fosse um cenário
infame de traição, contra aquela flor — a pobrezinha! que era seu filho e Deus
ia salvar.
Voltou para junto da vidraça,
ainda trêmula, a sossegar nesse esplendor silente. O luar avançava sempre e
sempre. Já lhe dourava agora os olhos rasos, o cabelo, a testa, o corpo todo. E
com uma ideia súbita rezou. Não podia dizer a quem rezava, se rezava a Deus ou
ao luar... Mas Deus era o luar, era o luar... E agora estava certa, estava
certa de que ele vinha para curar o seu filhinho, e envolvê-lo todo para
sará-lo como um beijo de Deus a essa criança.
Pôs-se em bicos de pés o mais
que pôde, e com um gesto feliz, misterioso, corria os cortinados de mansinho,
para que ele chegasse mais depressa junto ao leito, a sorrir e a chorar, toda
contente. Ele vinha, ele entrava sempre e sempre. Estendia-lhe as mãos como a
chamá-lo, as suas mãos de mãe, de veias altas, que um dilúvio de amor
intumescera. Já despertava os móveis, seus amigos, a que ela queria como a
confidentes. E doida de feliz, quase riu alto ao ver-se no espelho enluarado.
Dizia-lhe baixinho: “entra, entra...” Já a cadeira de braços estava empoada e a
trama florida do tapete ressuscitava em gamas sonolentas. Se até vitalizava as
coisas mortas! Era Deus, era Deus este luar... E que sossego agora, que
sossego!... Até a bica do tanque se calara. Havia uma atmosfera de milagre, o
seu sonho de mística era certo. Os seus pressentimentos não mentiram. Era um
destino sagrado, o pequenino. Por isso Deus descera no luar: era ele, era ele,
estava ali... Isto era bem verdade, era a verdade. Mas então o seu filho estava
salvo! E desatou a rir perdidamente, num timbre de histeria muito seco.
De repente lembrou-se: o luar
era Deus: não devia pisá-lo, era um pecado... Fugiu então para zona ainda
escura, olhou o pequenino adormecido. Pareceu-lhe que sorria extasiado. Sentiu
uma alegria semilouca, um excesso de esperança a sufocá-lo. Por fim ajoelhou-se
junto ao leito, chamando-o com as mãos, lavada em lágrimas; mas rindo sempre,
sempre, a segredar-lhe: “Entra, entra, entra...” Ele vinha, ele vinha, muito
fluido, de cada vez mais branco, mais divino. Debruçou-se então, beijou-lhe a
orla. Ergueu-se a radiar, transfigurada, com os olhos histéricos mais vítreos e
um riso em aro, descobrindo os dentes, numa beatitude arrepiada. Foi esperar o luar
do outro lado, as mãos nas grades da cama, à cabeceira. Ele dormia sempre, o
pequenino, uma mão escondida no pescoço, a outra sobre a dobra do lençol.
Curvou-se para ver onde o luar vinha. Mal conteve um grito de ventura. Tocava
os pés da cama: ia subir!... “Sobe, sobe, sobe” ia dizendo. O seu pobre coração
endoidecera: despedaçava-lhe o peito, de feliz. Premiu as fontes com as mãos: “lá
vem, lá vem. Bendito seja Deus, sempre bendito”.
Havia um clarão no couvre-pieds agora. Uma larga lágrima,
redonda, foi lá rolar como uma grande pérola. Nesse instante ouviu como um
gemido. O pequenido mexia-se, acordava. Levou as mãos ao peito, despertou. Mal
se viu o veludo dos seus olhos... Quis erguer a cabeça, descaiu-a. A mãe
vergou-se sobre ele: “meu filhinho”, pôs-lhe as mãos em carícia sobre as fontes
que um suor muito frio perolava, e ia beijá-lo, quando ouviu três vezes, como
um fio de voz, já muito longe: “mamã, mamã, mamã...” E fechou para sempre os
seus olhos febris de grande gênio triste depois dessa palavra suprema que era
toda a sua fé.
O luar chegara enfim à
cabeceira!
Só quando ele esfriou sob os
seus beijos, só quando viu os braços que lhe erguera, para que Deus o visse de
mãos postas, implorando-lhe vida, o pequenino!— recaírem inertes sobre a roupa,
compreendeu o crime, o crime imenso.
— Vinha no luar a Morte... no
luar...
Voltou-se então num desespero
último, para o expulsar, para o pisar sob os seus pés: depois reanimaria o seu
filhinho: dar-lhe-ia a beber todo o seu sangue. Mas ficou paralítica de assombro.
O luar alagara todo o quarto: água lustral de lua, alma de lua, no chão, no ar,
em toda a parte... O seu sangue gelava-se nas veias. Não podia lutar, era
impossível. Ele invadira a alcova, asfixiara-a. Estava tudo perdido, tudo,
tudo... Abriu os braços, hirta, inteiriçada, e caiu ao desamparo, sem sentidos.
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