O poeta moribundo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Luxuoso salão de recepções: por entre
cavaletes com quadros de fina pintura, em que aparecem, de par com
estrangeiros, o gosto de Parreira e a vocação de Presciliano, vasos com flores,
e, no meio das tapeçarias, dos “fauteils” e das luzes, um majestoso piano
Ritter.
Heloísa acabou de executar, com todo o
aplauso do maestro Christovam Detmer, a linda fantasia — “Le poète mourant” — de
Gotschalk.
As últimas notas perderam-se artisticamente:
o maestro cheio de admiração e preso da infinita tristeza, dobrou-se e beijou
os dedos que obedeciam à grande inspiração de Heloísa.
Esta olhou-o e transfigurou-se como uma alma
reflexamente combalida pela dor de uma alma irmã...
***
— Como
esse poeta, Heloísa, que o grande músico fez morrer nas notas bemolizadas do
piano, finou-se hoje o nosso amor... Enquanto executavas e os teus dedos
arrancavam da alma do instrumento piedoso os sons do passional poema lírico, me
concentrei e te afirmo que a visão não desprezou a audição, pois vi e ouvi toda
a cena, desenvolvida entre personagens vivas, que se moviam, se socorriam e
testemunhavam o desfalecimento do artista moribundo. Durante minutos que serão
inigualáveis na minha existência de músico, aqui estive ao teu lado, frio como
uma estátua, hermético como uma esfinge, e não denunciei, pela ruga menor de
meu semblante, a dor imperiosa que me enervava a existência. Vim do gabinete
privado de tua mãe, que se transformou pacificamente no Satã de nossa felicidade.
Falei-lhe ardoroso, como se lhe dissesse uma ária de Beethoven, contei-lhe
minucioso e preciso a longa história de nosso amor. Vejo, agora, que, por
vezes, fui minudente demais, rememorando o platonismo inédito com que te amei a
alma de artista e não o corpo de mulher. Ao depois de ouvi-la, vim inspirar-me
para o sacrifício no teu talento. E saio de tua presença iluminado como o
prescrito que recebeu o bálsamo do conselho cristão para subir em seguida ao
patíbulo. Dá-me, pois, o conforto de tua confidência última: amaste-me alguma
vez?
— Que pergunta,
Christovam.
— Indiscreta?
— Não; ao
contrário. Amesquinhante...
— Estranho-te.
— Não há razão.
Porventura pensarás que te amei e não te amo agora? Acaso a minha mão de mulher
para te ser dada dependerá de alguma coisa irredutível diante de minha vontade
altiva?
— Sinto-me
lisonjeado, de fato, com a tua Constância, Heloísa. A cor dourada dos teus
cabelos que te faz distinta entre as cabeças belas de todas as mulheres, neste
instante, afigura-se-me a grinalda de luz com que se enfeitam as santas nos
seus altares. Mas, um maestro, um homem que sabe música simplesmente, que é apenas
um artista, é pequenino demais para ter uma pretensão de amor. Eu me pareço com
esta figura lendária de Kadjira que destruía as rosas por prazer. No reinado
das fantasias de ouro e de fidalguia com que se entontecem os teus pais em
sonhos egoístas, cheguei, como a perversa princesa turca que despetalava rosas,
derrocando castelos, para me conter na ilusão em que me deleitava somente com a
audiência da negativa inclemente de tua mãe. Confessou-me que maldava de todo o
nosso amor, desde princípio. E por que, se assim era, protegia a ampliação de
um sentimento que deveria ser, como os filhos defeituosos das ciganas que são
atirados às piranhas, destruído no nascedouro? Antes que eu lhe comunicasse,
falou-me em que se correspondias aos meus cálculos de matrimônio, era porque,
doidivana como toda criança, jogavas a pela na orla do precipício, esperando o
aviso amigo para te retirares gloriosamente... Negarás, Heloísa, que tinhas
consciência de minha pretensão? Sofismarás, em favor da excomunhão que me
lançou a tua mãe, e contra a clareza da ordem que me deste a fim de se
oficializarem as relações do afeto, que nos encaminhava de um ilusório paraíso?
Responde com o talento imensurável com que sempre me amaste...
— Falas
desatinadamente, Christovam, numa contingência em que deverias possuir o maior
tino dos homens.
— Tens o
dom solar de iluminar o mundo pelos flancos, se uma nuvem pesada se antepõe à sua
esfera...
— Sinto-me
transfigurada. Amo-te ainda, e não te hei de amar fora do regozijo deles...
— Dos
teus pais?
— Sim.
Acharias estranho se te dissessem que duas sementes postas em tuas mãos
estariam vegetais só ao sopro de um faquir indiano. Por que admitirias que a
minha vontade fosse forte bastante para romper a marcha das intenções dos meus
pais sobre a minha razão de ser mulher? Porventura sem o sopro do faquir as
sementes germinariam e atingiriam as formas de seres definitivos? Não suporás
que, sem aquele sopro, algo se realizasse. Como supores que sem a vontade dos
meus maiores a nossa união se perpetraria ao teu sabor?
— Desconheço-te
já...
— Mas,
porque...
— O
sofisma substitui a tua lógica: o amor cedeu o posto à quizília dos outros...
— Esperarias
o meu consórcio sem o consenso dos que me deram a existência de mulher?
— Nem sei
de mim mesmo que te responda...
— Não
poderias esperar. Se eu fosse livre, se a lagarta para ser papílio não
carecesse de passar por ser crisálida, nem eu te mandaria impetrar a sanção que
nos faltou, nem os que nô-la negaram teriam razões para tal fazer. Aborrece-te
o trovão? amedronta-te o corisco? Queres ver-te livre deles? Crê num Deus e
pede-lhe a extinção... Infelizmente, Christovam, nem o trovão se extinguiria,
nem o teu querer triunfaria... De um lado, Deus seria impotente para te dar o
que pedisses porque não terias o direito de pedir... Só pede quem pode pedir;
se se pede é porque de quem dá depende o pedido; e se o pedido não é dado,
procura a causa na insuficiência e na sem-razão de quem pediu...
— Mas...
— Nada
adianta, Christovam. Corresponde ao meu inquérito e nega-me, se conservares a
razão, que tenho o bom senso desejável às criaturas perfeitas. Queres
responder-me?
— Nada
significará o que te responda.
— É
preciso que sejas categórico.
— Pois
sim: responder-te-ei.
— Poderias
tomar-me como tua esposa sem, obteres a minha vontade?
— Por
certo que não.
— De
minha parte a questão é outra: teria eu o direito de responder por mim num caso
expresso de matrimônio? poderia ser único o meu querer?
— Se
quisesses, sim.
— Não é
assim, não. Por que não me tomarias por mulher sem o meu assentimento? Por
impoderoso diante de minha definição adversa. Porque não me daria eu por esposa
sem o consentimento dos meus pais? Por impoderosa diante da pronuncia deles. Se
tu pudesses alcançar de mim o amor sem vontade, desnecessário seria
impetrares-ma; se eu dispusesse de meu corpo sem a intervenção dos que mo
formaram do nada em matéria e em alma, nem cogitaria de enviar-te a eles...
— É um
dilema sofístico.
— Por que
princípio, não sei.
— Um dia,
quando eu te disse que me abrasava na sede do teu amor, Heloísa, como
correspondeste a esse lapso do meu instinto?
— Do modo
mais franco.
— Sim...
Dando-me apaixonadamente os teus lábios para neles, como eu quisesse, matar a
sede que alegava...
— Dependia
de mim. Dei-te.
— De
outra vez pedi-te um testemunho da correspondência de tua paixão. Negaste-mo?
— Não
poderia negar.
— Exatamente.
Levaste-me, com todo o carinho, a destra ao colo, e, na grandeza das iteradas
pulsações cordiais, afirmaste que eu reconheceria a intensidade do teu
sentimento...
— Dependia
de mim. Pratiquei.
— Por
fim, quando te acenei com o plano de nossa união...
— Como te
respondi, Christovam?
— Com a
primeira negaça.
— Adúlteras
a minha intenção: cumpri o meu dever, enviando-te à mamã, como o caminho propício
para vencer o papá.
— Realmente,
Heloísa. Sou um vencido.
— Garanto-te,
porém, Christovam, que te amo, ainda, como te amei...
— Irresistível
tormento para mim: serei eternamente o artista obrigado a consumar uma grande
obra musical sem a inspiração para a realidade do dever...
— Desistes,
então, do teu amor?
— Razões
me sobejam...
— Que te
disse, afinal, a mamã?
— Isso
mesmo. Falou-me em que queria um marido para a sua filha e lembrou-me que um musicista
não compõe sem ter inspiração...
— Nada
demais, Christovam!
— Talvez
não queiras compreendê-la... Mas é tudo que se pode alegar contra um homem...
***
E,
louco pela música, inconsciente quase, Christovam Detmer assentou-se ao piano e
executou, irreproduzivelmente, a esquisita criação de Gotschalk, ao depois do
que, cerimoniosamente, se despediu de Heloísa...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...