O poderoso Dr. Matamorros
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Naquela noite, cheguei ao meu
palacete, bem tarde. Lembro-me perfeitamente. Minha mulher tinha vindo a dormir
no automóvel Packard, da repartição,
que eu dirigia. O espetáculo
acabava muito depois de meia-noite; fomos ainda tomar chocolate e atravessamos
a “Cidade Nova”, o Mangue, quando já havia passado muito de uma hora. Olhei com
tristeza as casas do Mangue, as da “Cidade Nova” nas ruas transversais; as do
morro da Favela, eu apenas entrevia. Pensei de mim para mim: por que não se
acabava com “aquilo”? Seria necessário aquele repoussoir, para afirmar a beleza dos bairros chamados chics?
Apesar de engenheiro, eu não
tinha atividade ou especialidade técnica ou profissional qualquer; era
“doutor”. Porém, como me havia casado bem e os meus parentes fossem influentes,
na política, eu pleiteara e arranjara ser diretor-geral das Águas Medicinais do
Brasil, de que nada entendia.
Tinha um gordo ordenado, ajuda de
custo para viajar de automóvel oficial (marca imposta pelo ministro) da minha
casa, na Tijuca, para a sede da minha repartição, em uns cubículos da rua 1o de
Março, 2o andar.
No meu cargo não havia nada que
ver com saneamento de cidades, nem com coisas correlatas; mesmo,
verdadeiramente, com águas virtuosas, tinha pouco ou quase nada; mas, naquele
momento, deu-me em pensar nas dores dos outros.
O meu serviço era mandar compilar
relatórios sobre Carlsbad, Tíflis, Ems e outras estações afamadas de águas
medicinais de todo o mundo; e, postos no vernáculo, assiná-los e mandá-los ao
ministro.
Mesmo assim, tinha por meu maior
desejo deixar o cargo, para criar galinhas; mas, via-me obrigado a tentear
nele, até poder ocupar um de mando efetivo, onde viesse a sentir a alegria de
governar, de algum modo, a vida de outros muitos. Era atiçado nisso por minha
mulher que sempre me dizia:
— Encerrabodes, você é um trouxa,
um molenga!
Porque, minha mulher, apesar de
figurar no Gota das seções elegantes e mundanas dos jornais e revistas, gostava
de falar em calão. Ela tinha sido torcedora de football.
Quando lhe ouvia tais palavras,
acudia humilde:
— Por quê, minha filha?
— Você não arranja um cargo de
destaque! Não há meio!
— Não tenho elementos,
Nepomucena.
— Qual! O Chico Neves é filho de
um “bombeiro” e já foi governador do Juruá.
— Se o Albino tivesse vindo
presidente... Então, sim!
— Estás mesmo à espera dele...
Hum!... Se eu não tratar...
Esses diálogos eram constantes
entre nós; mas nunca passavam daí.
Ela mesmo, quando cismava, é que
dava os passos para a minha ascensão; eu, a bem dizer, não fazia nada, nunca!
Dormindo como ela estava no
automóvel, mergulhado na misteriosa grandeza de uma noite negra e estrelada,
muito só no seio do seu silêncio grandioso, pus-me a pensar na sorte daqueles
que residiam naquelas casas pobres. Certamente, imaginei, pagavam aluguéis
exorbitantes! Aquilo era uma injustiça e o fundamento da sociedade (tinha lido
não sei onde) é a justiça. Se eu estivesse no lugar do Matamorros, já tinha
dado um remédio a um tal estado de coisas!
Afinal, o meu Packard quase
presidencial parou em frente ao meu palacete, na Tijuca. Despertei Maria
Nepomucena, a minha mulher, e, em breve, dormíamos na santa paz do Senhor.
Sonhei que era autoridade; que
era o Matamorros; que a Constituição, as leis, os regulamentos, os avisos, as
portarias, os acórdãos, as decisões, os decretos, as ordenações, as cartas
régias, os alvarás, as decretais papalinas, as lupercais, as saturnais e mais
institutos de Justiniano e de sua virtuosa mulher Teodora — todo esse acervo de
disposições legais presentes e passadas me dava poder para fazer o que
prometesse, tanto mais quando se tratasse do benefício geral.
Foi com a macia carícia desse
sonho no meu pensamento que despertei. Também não me havia passado na mente a
impressão das casas pobres, a vencer exorbitantes aluguéis.
Tomei uma simples xícara de café,
adiei o banho morno para mais tarde e pus-me a ler os jornais.
No primeiro que peguei, topei com
este artigo: “Casas populares e o governo civil”. Li-o e encontrei este trecho:
Iam as coisas nesse pé e todos estavam exuberantemente esperançados, quando
o Dr. Matamorros, o nosso ilustre governador civil, esquecido do seu anterior
pronunciamento favorável e público, fulminou o projeto dos vereadores, sobre
casas populares, com seu veto.
O interessado corre ao gabinete do governador, sem compreender a sua
atitude. Este nega que o houvesse feito, mas lhe é mostrado o jornal oficial.
Movimenta-se o gabinete, buscam-se os autógrafos. O caso não pôde ficar suficientemente
esclarecido. O governador ou alguém por ele vetara o projeto, o que certamente
não foi a primeira vez, nem será a última.
Diabo! — exclamei eu. — Que
governador de cidade é este que não sabe o que assina? Livra! E falam dos
jurados!
Continuei a leitura:
Mas o Sr. Matamorros prometeu que, no dia seguinte, retificaria seu ato
sancionando o projeto!
Ao invés, porém, comunicou ao interessado que lhe era impossível cumprir
a promessa da véspera.
Minha mulher, por aí, entrou no
aposento em que estava, e eu, o Dr. Encerrabodes, descansando o jornal,
disse-lhe com ar zombeteiro:
— Queres ver um fiasco que fez o
Matamorros?
— Qual foi? — indagou ela.
— Prometeu aprovar uma coisa, mas
não só não a aprovou como deixou que alguém a reprovasse por ele. Fresca
autoridade!
— Mas mesmo assim é governador...
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