O Peru de Natal
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai
acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade
familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito
abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem
graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta
de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado
no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto
pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de
geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o
puro-sangue dos desmancha-prazeres.
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas
proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela
memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a
obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da
família. Uma vez que eu sugerira a mamãe a ideia dela ir ver uma fita no
cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto
pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre
gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por
espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a
ideia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde
muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde
cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma
reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos,
descoberto por tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as
lições que dei ou recebi, não sei, duma criada de parentes: eu consegui no
reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É
doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente,
o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com
aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos
entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me
apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram
fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem
complexos, de que não posso me queixar um nada.
Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se
imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo.
Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa do
quebra-nozes...) empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e
ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:
— Bom, no Natal, quero comer peru.
Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia
solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar
ninguém por causa do luto.
— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a
gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda
essa parentada do diabo...
— Meu filho, não fale assim...
— Pois falo, pronto!
E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem
infinita, diz-que vinda de bandeirante, que bem me importa! Era mesmo o momento
pra desenvolver minhas teorias de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu
de supetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com
minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo:
vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato
de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a
casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias
antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e
frios finíssimos de bem-feitos, a parentagem devorava tudo e inda levava
embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de
exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com
titia inda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso
mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade
ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.
Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas.
E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha,
com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que
havíamos de ajuntar ameixa-preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na
casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a
receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso
assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E
cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus gostos, já
bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente
francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.
Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam
felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara.
Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é
que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de
mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas
desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:
− É louco mesmo!...
Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do
Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:
assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera
outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha
velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor,
todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De
modos que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe
cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos
lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a
tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.
— Não senhora, corte inteiro! só eu como tudo isso!
Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em
mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro comessem
demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós
redescobrira em cada um o que a cotidianidade abafara por completo, amor,
paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus...
Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre de amor
digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias
amplas.
— Eu que sirvo!
“É louco, mesmo!” pois porque havia de servir, se sempre mamãe
servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra
mim e principiei uma distribuição heroica, enquanto mandava meu mano servir a
cerveja. Tomei conta logo dum pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e
pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou
o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:
— Se lembre de seus manos, Juca!
Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato
dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus
crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou
sublime.
— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!
Foi quando ela não pôde mais com tanta comoção e principiou
chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o
dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem
abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo
muitos desaforos para não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de
família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por
sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara
por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura
cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.
Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava
perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue, boiava fagueira entre os
sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e
redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa-preta e o estorvo
petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto,
uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe
por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.
Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai.
Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara
decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito
hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu
vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.
— Só falta seu pai...
Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto
que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E
nem sei que inspiração genial de repente me tornou hipócrita e político.
Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei
aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:
— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu
de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar conten... (hesitei, mas
resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em
família.
E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele
foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos
comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se
sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão
pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação
agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém,
puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador,
completamente vitorioso.
Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia
escrever “felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma felicidade
maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores
do grande amor familial. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no
recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais
rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma
felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim
grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe
fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos
que uma vez na vida coma peru de verdade!
A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito
amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam
o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à
lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em
culto puro de contemplação.
Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por
duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco
importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes
de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti,
falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de
contar onde que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei
sem piscar. E agora, Rose!...
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