Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Acabara o jantar às seis horas e meia. Era
dia; a mor parte dos convivas descera à chácara. Um destes, o capitão-tenente
Luís Pinto, ficou na sala a conversar com o dono da casa, o Comendador
Valadares, homem gordo e pacato, para quem a digestão era coisa séria, e tanto
ou quanto científica.
— E pretende fazer outra viagem? perguntou o
Comendador continuando a conversa interrompida pela sobremesa.
— Agora, não. Salvo se embarcar por ordem do
governo. Não é provável que precise de outra licença; em todo caso, não iria à
Europa, a não ser por moléstia.
— Mas gostou tanto que...
— Que preciso descansar. Estou com quarenta e
dois anos, senhor Comendador, não é velhice; mas também não é idade de
travessuras; e uma segunda viagem era verdadeira travessura.
O Comendador não aprovou nem contestou a
observação do hóspede; abriu a caixa de rapé. Tomou uma pitada e interrogou o
oficial de marinha a respeito de algumas particularidades da viagem. O oficial
satisfez-lhe a curiosidade narrando-lhe uma página das suas memórias de
turista.
Luís Pinto, que sabemos ser capitão-tenente e
contar quarenta e dois anos, era um homem alto, bem-feito, elegante, daquela
elegância grave, própria de seus anos. Tinha os olhos negros e rasgados, o
olhar inteligente e bom, maneiras distintas e certo ar de superioridade
natural. Era isto o físico. O moral não era diferente. Não tinha más
qualidades, ou se as tinha eram de pequena monta. Viúvo há dez anos, ficara-lhe
do matrimônio uma filha, que mandara educar em um colégio. Essa criança era
todos os seus amores na terra.
Algum tempo antes por motivos de moléstia,
obtivera licença por um ano e empreendera uma viagem à Europa, de onde viera
cerca de quinze dias antes.
A noite caíra de todo; os convivas
recolheram-se à casa, onde uns foram jogar, outros conversar ou ouvir tocar. O
sarau acabaria para o oficial como outro qualquer se não fora a entrada de uma
visita inesperada para todas as pessoas da casa e muito mais para ele.
A visita de que se trata era uma senhora. A
mulher do Comendador apressou-se a recebê-la. D. Madalena Soares entrou na
sala, com um passo de deusa e com ar tranquilo e austero que lhe não ficava
mal. Das pessoas que a não conheciam houve um notável silêncio de curiosidade.
Trajava roupas escuras, de feição com a sua viuvez recente; era formosa, e
contava trinta anos de idade.
Como todas as atenções estiveram voltadas
para a recém-chegada ninguém reparou na impressão que esta produzira em Luís
Pinto. A impressão foi de surpresa e gosto, uma comoção que o fez ficar pregado
alguns instantes na cadeira em que estava sentado. Alguns minutos depois ergueu-se
e dirigiu-se a D. Madalena Soares.
— Estarei tão velho que já me não conheça?
disse ele.
Madalena estremeceu e olhou para ele.
— Ah! exclamou ela.
— Não se viam há muito tempo? perguntou a
mulher do Comendador.
— Um século, respondeu Madalena.
— Seis anos pelo menos, acrescentou Luís
Pinto.
— Talvez mais. Chegou há pouco da Europa,
ouvi dizer.
— Há poucos dias. Seu marido?
— Estou viúva.
— Ah!
Interrompeu-se a conversa neste ponto;
aproveitamos a interrupção para dizer que Madalena, tendo casado com vinte
anos, retirara-se daí a quatro para uma das províncias do Norte, de onde
voltara dez meses antes, depois da morte do marido. Luís Pinto ignorava a morte
deste.
Poucas palavras disseram mais os dois antigos
conhecidos. A conversa tornou-se geral, e a noite passou-se, como se passaram
as outras, sem nenhum incidente novo. Madalena, ao despedir-se, declarou ao
capitão-tenente que a sua residência era na Rua das Mangueiras.
— Irei cumprimentá-la um dia destes.
— Aturar uma velha.
— Oh!
A exclamação de Luís Pinto foi repetida
mentalmente pelos demais circunstantes; e a viúva retirou-se levando a
admiração de todos. Houve um concerto de louvores à graça de suas maneiras, à
beleza de seus olhos. Um só, entre tantos, ficara calado e pensativo: o oficial
de marinha.
Por quê? Vamos sabê-lo.
Luís Pinto saiu da casa do Comendador um
pouco diferente do que lá entrara. Ia absorto e pensativo. O que ele dizia
consigo mesmo era:
— Que é isto? Tantos anos depois! Viúva...
estava longe de supô-lo. Viúva e formosa, tão formosa como era naquele tempo.
O monólogo continuou ainda por algumas horas,
sobre o mesmo tema; as ideias bailaram-lhe no espírito durante o sono. Na manhã
seguinte, a segunda ou terceira pessoa de quem se lembrou foi Madalena.
Dois dias depois cumpriu Luís Pinto a palavra
dada na casa do Comendador, foi à Rua das Mangueiras. Vestiu-se mais apurado
que de costume; contemplou-se repetidas vezes ao espelho, não por vaidade,
aliás justificável, porque ainda era um bonito homem, mas para ver se havia
ainda em suas feições um resto da primeira mocidade.
Madalena recebeu-o com muita afabilidade.
Estava com ela um menino de seis anos, seu filho; e, além dele, havia uma
senhora idosa, tia de seu marido, que a acompanhara até à Corte e ficara a residir
com ela. A conversa versou sobre coisas gerais; mas por mais indiferente ou
insignificante que fosse o assunto, Madalena tinha a arte de o tornar
interessante e elevá-lo. Passaram as horas naturalmente depressa; Luís saiu
satisfeito dessa primeira visita.
A segunda verificou-se dali a cinco ou seis
dias; Madalena, porém, não estava em casa, e este desencontro, aliás fortuito,
pareceu enfadá-lo. Encontrou-a em caminho, na Rua dos Arcos, com o filho pela
mão.
— Venho de sua casa, disse ele.
— Sim? acudiu a viúva. Eu fui visitar umas
amigas de outro tempo.
— De seis anos.
— De dez.
— Ainda se lembra do passado? perguntou Luís
Pinto, dando às palavras uma entoação particular.
— Minha memória não esquece as afeições,
respondeu ela naturalmente.
Luís cumprimentou-a e seguiu. A resposta da
viúva não dizia talvez tudo: ele, contudo, deu-se por satisfeito em ter-lhe
feito a pergunta.
O passado de que ele falava, como já a
leitora terá suposto, era um namoro travado entre os dois antes do casamento de
ambos. Não foi namoro ligeiro e sem raízes, antes passatempo que outra coisa;
foi paixão séria e forte. O pai de Madalena opunha-se ao consórcio e
declarou-se mortal inimigo do moço; empregou contra ele todas as armas de que
podia dispor. Luís Pinto afrontou tudo; para vê-la de longe, colher um sorriso,
amargo embora e desconsolado, atravessava audazmente a chácara em que ela
morava, sem embargo dos espias que o dono da casa ali punha. Ia a todos os
teatros e reuniões onde houvesse esperança de a ver, mantinham correspondência,
sem embargo de todas as precauções paternais. Madalena mostrou-se firme durante
todo esse tempo; e pela sua parte usou de todas as armas que lhe inspirava o
coração: os rogos, as lágrimas, a reclusão, a abstinência de alimentos.
Nessa luta, que se prolongou por dois anos
quase, venceu o pai de Madalena. A moça casou com o noivo que lhe apresentaram,
um sujeito honrado e bom, que naquela ocasião era a mais detestável criatura do
mundo. Luís Pinto suportou o golpe como poderia suportá-lo um coração que
tantas provas dera de si. Casou mais tarde. O tempo distanciou-os; perderam-se
completamente de vista.
Tal era o passado. Não o pode haver mais
pejado de recordações, umas tristes, outras deliciosas; e a melhor maneira de
apagar as tristes, e dar corpo às deliciosas, era reatar o fio quebrado pelas
circunstâncias, continuando, após tanto tempo, o amor interrompido,
desposando-a, enfim, agora que nenhum obstáculo podia haver entre os dois.
Luís foi à casa de Madalena no dia seguinte
ao do encontro. Achou-a a ensinar a lição ao filho, com o livro sobre os seus
joelhos.
— Deixa-me acabar esta página? perguntou ela.
Luís Pinto fez sinal afirmativo; e a mãe
concluiu a lição do filho. Enquanto ela meio inclinada, ia acompanhando as
linhas do livro, o oficial de marinha observava à luz do dia aquelas feições
que tanto amara dez anos antes. Não era a mesma frescura juvenil; mas a beleza,
que não diminuíra, tinha agora uma expressão mais grave. Os olhos eram os
mesmos, dois grandes olhos negros e cintilantes. Eram os mesmos cabelos
castanhos, e bastos, o pescoço de cisne, as mãos de princesa, o talhe esbelto,
a graça e a morbideza dos movimentos. A viúva trajava com simplicidade, sem
atavios nem arrebiques, o que dava-lhe à beleza um realce austero e certa
gravidade adorável. Luís Pinto embebeu-se todo na contemplação do quadro e da
figura. Comparava a donzela frívola e jovial de outro tempo à mãe desvelada e
séria que ali tinha diante de si, e as duas fisionomias confundiam-se na mesma
evocação.
A lição acabara; Madalena dirigiu-se ao
capitão-tenente com a familiaridade de pessoas conhecidas, mas ainda assim com
o acanhamento natural da situação. A conversa foi curta e salteada. Era natural
falarem do passado; contudo, evitavam roçar o pensamento — a frase ao menos —
pelos sucessos que romperam o vínculo de seus destinos.
— Acha-me velho, não é? perguntou o oficial
ao ouvir um reparo de Madalena acerca da mudança que o tempo fizera nele.
— Mais velho, não, respondeu ela sorrindo;
menos moço, talvez. Não admira, também eu perdi o frescor dos primeiros anos.
— A comparação é malfeita; eu entro pela
tarde da vida; a senhora está em pleno meio-dia. Não vê estes cabelos
grisalhos? Verdade é que a vida não me foi de rosas; e os desgostos, mais do
que os anos...
— A cor dos cabelos não prova nada, atalhou a
moça como se quisesse interromper alguma confissão. Meu pai, aos vinte e oito
anos, tinha os cabelos brancos. Caprichos da natureza. Pretende voltar à
Europa?
— Não pretendo; provavelmente não voltarei
mais.
— Aquilo é tão bonito como dizem?
— Conforme os olhos com que se vê. Para mim é
detestável.
— Admira. Sabe que sempre tive grande desejo
de ver a Europa. Para os filhos da América é uma espécie de sonho, uma ambição,
que me parece natural.
— E realizável. Alguns dias de mar somente.
— Já agora é preciso educar meu filho, disse
Madalena afagando a cabeça do menino.
— Que idade tem ele?
— Seis anos.
— Está muito desenvolvido.
— Muito.
Madalena proferiu esta palavra sorrindo e
contemplando amorosamente o rosto do filho. Quando levantou os olhos deu com os
de Luís Pinto, que estavam fitos nela, e logo os desceu, algum tanto comovida.
O silêncio que se seguiu foi curto. Levantou-se o oficial para despedir-se.
— Não sei se a verei ainda muitas vezes,
disse ele.
— Por quê? perguntou Madalena com interesse.
— O oficial de marinha nada pode afiançar a
este respeito. Amanhã mesmo posso embarcar...
— Mas se não embarcar?
— Virei vê-la, se mo permitir.
— Com todo gosto.
Luís Pinto saiu. Madalena ficou algum tempo
calada e pensativa, como evocando o passado, que a presença daquele homem lhe
fazia despertar. Por fim sacudiu a cabeça, como expelindo de si aquelas
memórias tão doces e ao mesmo tempo tão amargas, e beijou com ardor a testa do
filho.
Durante uma semana não se avistaram os nossos
dois ex-namorados. Ao cabo desse tempo acharam-se ambos em casa do Comendador,
onde havia reunião. Luís Pinto esperava esse dia para examinar a impressão que
teria produzido na viúva aquela ausência um tanto longa para quem tivesse
debaixo das cinzas uma faísca do extinto fogo; mas a curiosidade de Madalena
era igual à dele e o olhar de ambos foi uma interrogação sem resposta.
Ao oficial pareceu melhor sondar-lhe mais
diretamente o coração. Acabada uma valsa, dirigiram-se para uma saleta menos
frequentada.
— Quer descansar um pouco?
— Dois minutos apenas.
Sentaram-se no sofá, que ficava perto de uma
janela. Luís Pinto quis fechar a janela.
— Não, disse Madalena, não me faz mal;
sento-me aqui deste lado, e gozo ao mesmo tempo a vista da lua, que está
deliciosa.
— Deliciosa! respondeu o oficial
maquinalmente.
— Mas o senhor parece que preferia dançar...
— Eu?
— Vejo que gosta de dançar.
— Conforme a ocasião.
— Eu gosto, confesso; meu estado não me
permite fazer o que eu fazia outrora. Mas danço alguma coisa. Pareço-lhe
ridícula, não é?
Luís Pinto protestou contra semelhante ideia.
A viúva continuou a falar da dança, da noite e da reunião. De quando em quando
caíam os dois em silêncio mais ou menos prolongado, o que deu ideia a Luís
Pinto de fazer a seguinte observação entre risonho e sério:
— Calamo-nos às vezes como se fôramos dois
namorados.
— É verdade, respondeu Madalena, sorrindo.
— Quem sabe? murmurou o oficial a medo.
A viúva sorriu só, mas não respondeu.
Levantou-se; o oficial deu-lhe o braço. Passearam algum tempo, mais tempo do
que lhes pareceu a eles, porque a conversa interessava-os realmente, até que
ela se retirou para casa. Caminhando, Luís Pinto fez a reflexão seguinte:
— Por que hei de estar com meias palavras?
Não é melhor decidir tudo, cortar por uma dificuldade que aliás não existe?
Ambos somos livres; tivemos um passado... Sim, é necessário dizer-lhe tudo.
A resolução era mais de assentar que de
executar. Luís Pinto tentou três vezes falar francamente no assunto, mas em
todas as três vezes não passou do introito. Não em comoção, era frouxidão.
Talvez o coração não ajudasse a língua como convinha. Pela sua parte, a viúva
compreendera a intenção do oficial de marinha, mas não lhe estava bem ir-lhe ao
encontro. Auxiliá-la, sim; mas também ela sentia a língua frouxa.
Um dia, porém, depois de um jantar em casa de
terceiro, Luís Pinto achou uma porta aberta e meteu-se por ela. Achavam-se um
pouco separados da outra gente, posto que na mesma sala. Não há nada como um
bom jantar para dar animação a um homem, e fazê-lo expansivo, quaisquer que
sejam as circunstâncias ou a irresolução própria. Ora, Luís Pinto jantara
largamente, apesar de namorado, donde se pode concluir que amar é uma coisa, e
comer é outra, e que não sendo a mesma coisa o coração e o estômago, ambos
podem funcionar simultaneamente.
Não ouso dizer o estado de Madalena. De
ordinário, as heroínas de romance comem pouco ou não comem nada. Ninguém
admite, em mulheres, ternura e arroz de forno. Heloísa, e mais existiu, nunca
soube de certo o que era recheio de peru, ou mesmo trouxas d’ovos. Por isso,
não afirmo, se Madalena também havia jantado bem; limito-me a dizer que não
havia jantado mal.
Estavam os dois como disse a falar de coisas
estranhas ao coração quando Luís Pinto arriscou a pergunta seguinte:
— Nunca pensou em casar outra vez?
Madalena estremeceu um pouco.
— Nunca! disse ela daí a alguns instantes.
— Nem casará?
Silêncio.
— Não sei. Tudo depende...
Novo silêncio.
— Depende? repetiu o oficial.
— Depende das circunstâncias.
— Quais serão essas circunstâncias? perguntou
Luís Pinto sorrindo.
Madalena sorriu igualmente.
— Ora! disse ela, são as circunstâncias que
produzem todos os casamentos.
Luís Pinto calou-se. Minutos depois:
— Lembra-me agora que a senhora podia estar
casada.
— Como?
A pergunta pareceu perturbar o moço, que não
lhe respondeu logo. A viúva repetiu a pergunta.
— Melhor é não falar do passado, disse ele
enfim.
Desta vez foi a viúva que não respondeu. Os
dois ficaram calados algum tempo até que ela levantou-se para ir falar à dona
da casa. Daqui a vinte minutos acharam-se outra vez ao pé um do outro.
— Não me responde? perguntou ele.
— A quê?
— Ao que lhe disse há pouco.
— Não me fez nenhuma pergunta.
— É verdade mas fiz uma observação. Concorda
com ela?
A moça calou-se.
— Já sei que não concorda, observou o oficial
de marinha.
— Quem lhe disse isso?
— Ah! concorda?
Madalena fez um gesto de impaciência.
— Não declarei nada, respondeu.
— É verdade, mas concluí.
— Concluiu mal. Não tem nada que concluir,
porque nada disse; limitei-me a calar.
Luís pinto ficou um pouco desconsolado.
A moça consolou-o dizendo:
— É sempre mau falar do passado.
— Talvez, murmurou ele.
— Se foi triste, para que recordá-lo? Se foi
venturoso, para que amargurar mais a hora presente?
— Sim? mas se for possível reproduzi-lo?
— Reproduzi-lo?
— Sim.
— Como?
— Pergunte a si mesma.
— Já perguntei.
— Ah! exclamou Luís Pinto.
A viúva compreendeu que ele lhe supunha uma
preocupação anterior e entendeu que devia dissuadi-lo disso.
— Perguntei agora mesmo...
— E que responde?
— Respondo...
Vieram convidá-la para cantar. Madalena
levantou-se, e Luís Pinto deu a todos os diabos o convite e a música.
Felizmente Madalena cantava como um anjo.
Luís Pinto ficou encantado com ouvi-la.
Nessa noite, porém, foi-lhe impossível
encontrar-se mais a sós com ela, ou porque as circunstâncias o não permitiam,
ou porque ela mesma se esquivasse a encontrar-se com ele.
O oficial desesperou.
Teve, porém, uma grande consolação à saída. A
viúva, quando se despediu dele, fitou-o calada durante alguns minutos, e disse
em tom significativo:
— Talvez!
— Ah!
Luís Pinto foi para casa satisfeito. Aquele
talvez era tudo ou quase tudo.
No dia seguinte foi visitar a viúva. A moça
recebeu-o com o mais amorável de seus sorrisos.
— Repete-me a palavra de ontem?
— Qual palavra? perguntou Madalena.
Luís Pinto franziu o sobrolho e não
respondeu. Nessa ocasião entrou na sala o filho da viúva; esta beijou-o com
ternura de mãe.
— Quer que repita a palavra?
— Desejava.
— Pois sim.
— Repete?
— Repito.
— Vamos lá! Pode reproduzir-se o passado?
— Talvez.
— Por que não afirma?
— Nada se pode afirmar.
— Está em nossas mãos.
— O quê?
— Sermos felizes.
— Oh! eu sou muito feliz! disse a viúva
beijando o filho.
— Sermos felizes os três.
— Não é feliz?
— Incompletamente.
Daqui a um pedido de casamento só havia um
passo; e o conto acabaria aí, se pudesse acabar. Mas o conto não acabou, ou não
acabou logo, conforme se verá das poucas linhas que vou ainda escrever.
Luís Pinto não a pediu logo. Havia certeza de
que o casamento era o natural desfecho da situação. O oficial de marinha não se
achou com ânimo de precipitá-lo. Os dias corriam-lhe agora suaves e felizes;
ele ia todos os dias vê-la ou três vezes por semana, pelo menos. Encontravam-se
muitas vezes em reuniões e ali conversavam à larga. O singular era que não
falavam de si como acontece com os demais namorados. Não falavam também do
casamento. Gostavam de falar porque eram ambos amáveis e bons palestradores.
Luís Pinto reconheceu isto mesmo, uma noite em que se retirava para casa.
Dois meses haviam corrido depois do último
colóquio acima narrado, quando Luís Pinto ouviu ao Comendador a pergunta
seguinte:
— Então parece que D. Madalena tem fumaças de
casar?
— De casar? Não admira; está moça e é bonita.
— Isso é verdade.
— Casar com quem?
— Com o Dr. Álvares.
— O Dr. Álvares!
Luís Pinto fez aquela exclamação de um modo
que o Comendador desconfiou alguma coisa a seu respeito.
— Admira-se? perguntou ele.
— Ignorava o que me está dizendo.
O Dr. Álvares, de quem se fala agora no fim,
e cuja presença não é necessária no caso, era um médico do Norte. Luís Pinto
não descobrira, nem a notícia do Comendador podia ser tomada ao pé da letra.
Não havia projeto de casamento; e aparentemente podia dizer-se que nem namoro
havia. Contudo, Luís Pinto procurou observar e nada viu.
— Sabe o que me disseram? perguntou ele daí a
duas semanas a Madalena.
— Que foi?
— Disseram-me que ia casar com o Dr. Álvares.
A moça não respondeu. O silêncio era
constrangido; Luís Pinto desconfiou que a notícia era verdadeira.
Era verdadeira.
Um mês depois daquela conversa, Madalena
anunciou às pessoas de suas relações que ia casar com o Dr. Álvares.
Luís Pinto devia, não digo morrer, mas ficar
abatido e triste. Nem triste, nem abatido. Não ficou coisa nenhuma. Deixou de
assistir ao casamento, por um simples escrúpulo; e teve pena, de não ir comer
os bolinhos das bodas.
Qual é então a moralidade do conto? A
moralidade é que não basta amar muito um dia para amar sempre o mesmo objeto, e
que um homem pode fazer sacrifícios por uma fortuna, que mais tarde verá
ir-se-lhe das mãos sem mágoas nem ressentimento.
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