O Palácio do Rei Luís
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Bela tarde de outubro, aquela em que eu, já há anos, transpunha, alegre e
descuidado nas minhas habituais caminhadas, as pequenas colinas do Estreito em
direção à Praia de Fora. Depois de cruzar várias trilhas e atalhos, por entre
ervagens espessas e sebes de arbustos floridos, nessa península pitoresca em
que assenta o Desterro pelo norte, descia lentamente a larga rua do Soeiro,
correndo a cem metros do mar, sobre uma espalda curva de outeiro, e seguia,
enlevado e saudoso, as velas brancas de um brigue fugindo airosas além, quando
uma voz, acolhedora e amiga, inesperadamente rompeu, baixando do alto sobre
mim, dentre um maciço de verdura que ficava à direita:
— Olá! por aqui? Há que tempo o não vejo! Surpreendido, estaquei, procurando
descobrir quem me falava numa voz não estranha, mas cuja identidade eu não
podia bem conhecer ao momento. E, sem avistar ninguém, passeava embalde os
olhos curiosos e ávidos pela folhagem densa, nessa parte agreste da rua em que
a vegetação crescia à lei da Natureza e onde se erguia a prumo o corte áspero
do terreno, à maneira de um velho muro todo coberto de musgo e lianas,
entrelaçando-se em delicada urdidura verde.
A voz estalou de novo, forte e meiga:
— Então, goza-se a vida e passeia-se?
E a figura esguia e alta do meu amigo Trompowsky apareceu, num talude ao
lado, caminhando ao meu encontro, atacada num leve e claro costume de verão, o
rosto fino e rosado, os lábios vagamente sorrindo, barbicha loura ao queixo e
uma radiação carinhosa de afeto nos belos olhos glaucos.
Feito o costumado cumprimento e trocadas algumas palavras sobre o sítio que
ele escolhera para passar a calma estival daqueles meses, fomos descendo vagarosamente
para a Chácara Garcia, onde a Praia de Fora começa, alva e recortada,
contornando a água azul com o seu crescente de areias. Palrávamos cordialmente,
de tudo, parando, de momento a momento, para admirar a paisagem e o litoral
esplêndido, quando, de uma vez, avistei, a pequena distância, para o lado de
baixo, por sobre a cerca de espinheiros, recentemente roçada, uma espécie de
alicerce em ruínas, num vasto terrapleno quadrado, aberto sobre um dorso alto
de outeiro, que entrava mar a dentro como um pequeno promontório, cujo extremo
findava num monte de rochas agrupadas em cabeços.
Interessado e curioso, perguntei ao meu amigo, se sabia a origem daquelas
bases de construção, que tinham ficado apenas em início nesse viso de colina
marítima, que era talvez o mais belo ponto paisagista da costa, revelando assim
um fino gosto aristocrático de artista em quem o escolhera para nele levantar o
seu ninho. E, atraído por aquilo, examinava com afã toda a sebe, em busca de
uma passagem que me levasse até lá, enquanto o amável Trompowsky, fixando-me
com um sorriso, ajuntava fleumaticamente a meu lado, procurando acalmar a minha
curiosidade febril:
— Espere, homem, eu lhe explico. Aquilo tem uma história interessante. Não é
preciso romper assim tão loucamente os espinhos! Olhe, ali está um atalho que
lá vai ter direitinho.
E mostrava-me, adiante, uma curva reentrante da cerca, onde havia uma
porteira.
Era já no suave, verdejante pendor arborizado da Chácara Garcia. A rua
perdia-se aí sob as frondes amplas e altas das nogueiras e dos camboins,
estendendo-se sinuosamente para longe, mosqueada aqui e além pela alvura das
casas, surgindo entre moitas tremulantes de bambuais verdíssimos.
Apressando o passo, transpusemos a cancela, e, em pouco, pela fita rubra da
vereda que se torcia em meio a grama, chegamos ao terrapleno que se via do
caminho. Este lugar aprazível, fechado do lado de fora pelo semicírculo de
rochas erguendo-se em recorte cinzento, era totalmente descampado e coberto de
ervas rasteiras, formando justamente a ponta sul do crescente em que se talhava
a baía. Daí o panorama litoral se desenrolava aos meus olhos num relevo
impressionista.
A essa hora, o sol ia caindo lentamente por trás da linha ondulosa dos
cerros das Tijuquinhas. Toda a costa do continente e da ilha desenhava-se
nitidamente, a uma e outra banda do golfo, nas rendas alvas das praias curvas,
na tumidez verde dos outeiros viçosos e no declive majestoso de espaldas
esmeraldinas. As casas da Praia de Fora, pousadas à beira d’água, a frontaria batida do sol, num côncavo de areias límpidas, fulguravam pela vidraçaria radiante num incêndio
purpurino. À direita era a ponta do Recife, Cacupé, Santo Antônio, Sambaqui, o
Rapa e o Arvoredo, com os seus topos solientes de ervagens, perdiam-se além
pelo mar, sob um véu de ouro sutil. À esquerda a brancura dos arraiais e
freguesias marítimas, espiando do alto dos cabos, ou sobre a encosta dos
montes, as velas claras que singram. E no estofo infindo da vaga, malhado de
frisos de espuma, a tumidez graciosa de pequenas ilhas, boiando, como cabazes
floridos, sobre a planura infinita.
Depois de olharmos um instante o ocaso admirável, entrei a examinar
detidamente o vasto terrapleno quadrado, onde se erguiam os alicerces de pedra,
que mostravam, em certos pontos, fendas e desmoronamentos, cobertos já pelas
ervas, dourando sempre as ruínas de uma eterna primavera. E calculava,
admirado, as proporções ciclópicas que não viria a ter o edifício ali
projetado, se fosse levado a efeito — quando o meu amigo, convidando-me
a sentar ao pé dele, sobre umas pedras altas, começou a narrar a história
daquelas ruínas, que, segundo me disse, eram de construção recente, pois vira
ele preparar-se o terreno para os primeiros trabalhos.
O rei da Baviera, Ludovico II, que era um verdadeiro doido (o Trompowsky,
com o seu espírito equilibrado e terra a terra de homem prático, posto que
inteligente, não admitia paixões artísticas, fantasias, idealidades), tivera a
ideia, uma ocasião, de mandar à América, por sua conta, o seu secretário
particular, com o fim único de escolher um sítio para a edificação de um
palácio que ele viria habitar, um dia, quando cansasse de reinar (o Trompowsky
acentuava este cansasse com um riso
irônico e cáustico). O homem recebera para essa comissão instruções especiais,
entre as quais figurava a condição principal da aprazibilidade e encanto do
lugar, seguindo-se, na hipótese da escolha, a remessa para Munique de
fotografias, plantas e quadros. O primeiro país onde aportara fora os Estados
Unidos, seguindo-se a Nova Bretanha ou Canadá, o México, todas as Repúblicas da
América Central e as Antilhas. Depois descera pela Colômbia, Venezuela, as
Guianas até o Oiapoque, atravessando pelo interior para o Equador, o Peru, a
Bolívia, o Chile, a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e o Brasil, que correu
desde o Rio Grande do Sul, cortando pelos Estados do centro, até ao Amazonas,
tomando após o litoral e visitando tudo até Santa Catarina, onde parara alguns
meses em contínuas excursões pelas colônias alemãs, desde Angelina a São Pedro
de Alcântara, no sul, a Joinville, Brusque e Blumenau no norte. Por fim,
chegara ao Desterro... E tinha sido aquele alto de colina, acabando
pitorescamente num cabo sobre o mar azulado, no meio de uma paisagem deliciosa
e das mais originais do mundo, o local escolhido pelo emissário do rei Ludovico
para o seu novo palácio. Tiradas vastas e numerosas fotografias, arranjados
mapas e planos minuciosos de toda a ordem, e remetidos para a Baviera — um ano depois voltavam, com a aprovação soberana,
em cópias nítidas e exatas, às mãos do solícito
mordomo imperial, ao mesmo tempo que chegava uma turma de arquitetos, pintores,
decoradores, estofadores, carpinteiros e pedreiros bávaros para as obras do
grande castelo ideal...
Eu ouvia tudo isto, que me parecia quase inverossímil e fantástico, numa
arrebatação íntima, gozando mais fundamente então, na minha nevrose patológica
de artista, a irresistível simpatia desde muito votada a esse rei encantador,
estranho esteta coroado que o mundo já vira um dia. E as suas grandes coleções
artísticas, de uma riqueza “feita para desorientar a gente”, como disse
Oliveira Martins, composta do célebre lustre que a
fábrica de Meissen levou quatro anos a fazer, de uma toalete de Saxe que jamais
alguém possuíra igual, de um leito todo incrustado de ouro e de uma colcha da
China que era uma maravilha, — bailavam-me na ideia
num torvelinho rutilante de pedrarias e coisas preciosas e raras. Pensava nos
seus palácios da Baviera “que eram de fadas, nos recessos mais agrestes das montanhas, sobre píncaros inacessíveis, ou em
ilhas banhadas pelas águas dos lagos alpestres”. Via, claramente via pela imaginação superexcitada, a sua figura loura e colossal, “de noite, ao
luar, na sua barca, fazendo de Cisne — o cisne da lenda, o Lohengrin da fantasia germânica!” E encantava-me, sobretudo, a paixão extraordinária e mental que ele tivera por Wagner, dando-lhe especialmente
um teatro para as óperas geniais e construindo-lhe outro em Beyruth, sob a
única condição, como diz ainda o egrégio pensador português, de “ir ouvir, sozinho, às
escuras, a Tetralogia épica em
que os seus sonhos tomavam realidade, e em que o mundo lhe parecia um só, o da
cena e o dos homens, o das visões e o dos fatos, interpretados em sinfonias de
uma alucinação atroadora...”
Mas o Trompowsky prosseguia:
Mal as obras começaram, o rei Ludovico, consumido pelas dívidas e dado por
doido pelos médicos, deixara o trono da Baviera, sendo aclamado, em seu lugar
um irmão — outro doido! O emissário, que dirigia os trabalhos, suspendeu tudo, e, reunindo toda a
gente, partiu... Daí a meses chegava ao Brasil a notícia trágica de que o pobre
Ludovico II, uma manhã do ano de 86, por um junho azul e suave, em Munique,
andando a passear pelas margens floridas do Sternberg, atirara-se ao lago onde
perecera afogado.
O Trompowsky calara-se um instante; depois, pousando os olhos no mar, que
se ensombrava já lentamente à última claridade do ocaso, concluiu:
Aqui tem,
meu amigo, a história verdadeira, mas que poucos conhecem, destes alicerces
carcomidos que tanto o impressionaram.
E, levantando-se, desceu para o recorte de rochas onde o cabo findava.
Eu, sentado
ainda sobre aquelas ruínas, embevecido com o que ele narrara, numa impressão
extraordinária, olhando vagamente as primeiras estrelas que radiavam a leste
com uma luz eteral, evocava intimamente, no espírito, o verdadeiro perfil desse
bávaro inefável, que, rei e artista, só vivera para a Fantasia e para a Arte,
figura impressionante e olímpica, que eu vira, uma vez, havia anos, num belo
quadro alemão em Joinville, no grande palacete do príncipe deste nome: um rapaz
de trinta anos, fronte ampla e expressiva, cabelos de ouro anelados e uns olhos
rasgados e vagos, de um azul de faiança, voltados sonambulamente para o céu,
como os de um místico ou de um iluminado.
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