O País das Quimeras
(CONTO FANTÁSTICO)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, e é também por esta circunstância que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou, para falar mais decentemente, os espíritos prudentes e seguros.
Mas, para justificar o provérbio que diz:
debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é absolutamente
mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de ferro, pequena
embora, conta já não poucos e tristes episódios.
Absorto nestas e noutras reflexões estava o
meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem dinheiro e sem bigode, sentado à mesa
carunchosa do trabalho, onde ardia silenciosamente uma vela.
Devo proceder ao retrato físico e moral do
meu amigo Tito.
Tito não é nem alto nem baixo, o que equivale
a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se pode chamar
francamente elegante na minha opinião. Possuindo um semblante angélico, uns
olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do de
Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do
pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações
de quinze e mesmo de vinte anos.
Como as medalhas, e como todas as coisas
deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é o
reverso das medalhas! Podendo ser, do colo para cima, modelo à pintura, Tito é
uma lastimosa pessoa no que toca ao resto. Pés prodigiosamente tortos, pernas
zambras, tais são os contras que a pessoa do meu amigo oferece a quem se extasia
diante dos magníficos prós da cara e da cabeça. Parece que a natureza se
dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo
na miserável e desconsoladora condição do pavão, que se enfeita e contempla
radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas e
para os pés.
No moral Tito apresenta o mesmo aspecto duplo
do físico. Não tem vícios, mas tem fraquezas de caráter que quebram, um tanto
ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É bom e tem a virtude evangélica da
caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da subsistência e dar de
comer ao faminto, com verdadeiro júbilo de consciência e de coração. Não
consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente bicho, ou ao
mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo
contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram uma vez a
ficar quase esmagado, procurando salvar da morte uma galga que dormia na rua, e
sobre a qual ia quase passando um carro. A galga, salva por Tito,
afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o deixou; à hora em que o vemos absorto em
pensamentos vagos está ela estendida sobre a mesa a contemplá-lo grave e
sisuda.
Só há que censurar em Tito as fraquezas de
caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas virtudes. Tito
vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma permuta legítima
de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um filho de Apolo.
As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os seus
versos, o poeta perdia o direito da paternidade sobre essas produções. Só tinha
um freguês; era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que, sabendo da
facilidade com que Tito rimava, apresentou-se um dia no modesto albergue do
poeta e entabulou a negociação por estes termos:
— Meu caro, venho propor-lhe um negócio da
China...
— Pode falar, respondeu Tito.
— Ouvi dizer que você fazia versos... É
verdade?
Tito conteve-se a custo diante da
familiaridade do tratamento, e respondeu:
— É verdade.
— Muito bem. Proponho-lhe o seguinte:
compro-lhe por bom preço todos os seus versos, não os feitos, mas os que fizer
de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à estampa como obra da
minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe, porém, que
prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?
Quando o sujeito acabou de falar, Tito
levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não
saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar o caminho da porta,
dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa estar!”
O meu poeta esqueceu no dia seguinte a
aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades urgentes
apresentaram-se à porta com o olhar suplicante e as mãos ameaçadoras. Ele não
tinha recursos; depois de uma noite atribulada, lembrou-se do sujeito, e tratou
de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o negócio; o
sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a
condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos Polacos. Tito
passou a noite a arregimentar palavras sem ideia, tal era seu estado, e no dia
seguinte levou a obra ao freguês, que a achou boa e dignou-se apertar-lhe a
mão.
Tal é a face moral de Tito. A virtude de ser
pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda assim vemos nós
que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda ao pescoço.
A mesa à qual Tito estava encostado era um
traste velho e de lavor antigo; herdara-a de uma tia que lhe havia morrido
fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum papel, eis os
instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua
mobília. Já falei na vela e na galga.
À hora em que Tito se engolfava em reflexões
e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência, e os relâmpagos que de
instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte pejado de nuvens
negras e túmidas. Tito nada via, porque estava com a cabeça encostada nos
braços, e estes sobre a mesa; e é provável que não ouvisse, porque se
entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos de viajar.
Mas qual o motivo destes pensamentos em que
se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à legítima curiosidade dos
leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos, poetas e não poetas,
sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte senhoril, uma
visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído por
tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da sepultura.
O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama, e foi curado
(da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo
das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu mais um
título à reputação de feiticeira, que os seus milagrosos curativos lhe haviam
granjeado.
Passado o período agudo da doença, ficou-lhe
este resto de amor, que, apesar da calma e da placidez, nada perde da sua
intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então começou a
defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que
dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como aquele Sr.
d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se pareceu, não na sensaboria
dos versos, mas no infortúnio amoroso.
O amor contrariado, quando não leva a um
desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira. Era nesta
alternativa que se debatia o espírito do meu poeta. Depois de haver gasto em
vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus
pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar
disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e deixar musas e amores, para
cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor que a dama de quem lhe
falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo contrário, um modelo
da mais seráfica pureza e do mais perfeito recato de costumes; recebera a
educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias, homem de incrível boa
fé, que, neste século desabusado, ainda acreditava em duas coisas: nos
programas políticos e nas cebolas do Egito.
Desenganado de uma vez nas suas pretensões,
Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do militar; e a
resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um punhal frio e
penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como ara de Vesta,
trazia-lhe as fatais palavras ao meio das suas horas mais alegres ou menos
tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia durar e que a
tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr
um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é transitória,
e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.
Quando, depois de voltar a si, Tito conseguiu
encadear duas ideias e tirar delas uma consequência, dois projetos se lhe
apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de pusilânime; um
concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa dos corações não
compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente deixar este mundo; o
outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar ou por terra, a fim
de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava o primeiro por
achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe melhor, mais
consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos de
conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria por
mar? Qualquer destes dois meios tinha seus inconvenientes. Estava o poeta
nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem
seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas
encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a
muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó pasmo!
mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial,
vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de
névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e
insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos loiros do mais leve e delicado
cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó
Afrodite! eis que uma criatura assim invade o aposento do poeta e, estendendo a
mão, ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.
Tito estava assombrado. Maquinalmente voltou
ao seu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta sentou-se defronte dele e
começou a brincar com a galga que dava mostras de não usado contentamento.
Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a peregrina singular criatura
cravando os seus olhos nos do poeta, perguntou-lhe com uma doçura de voz nunca
ouvida:
— Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor
mal parado? Sofres com a injustiça dos homens? Dói-te a desgraça alheia, ou é a
própria que te sombreia a fronte?
Esta indagação era feita de um modo tão
insinuante que Tito, sem inquirir o motivo da curiosidade, respondeu
imediatamente:
— Penso na injustiça de Deus.
— É contraditória a expressão; Deus é a
justiça.
— Não é. Se fosse teria repartido irmãmente a
ternura pelos corações e não consentiria que um ardesse inutilmente pelo outro.
O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a mulher não
pudesse olhar com frieza para o homem, quando o homem levantasse olhos de amor
para ela.
— Não és tu quem fala, poeta. É o teu
amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas de que te servem as musas?
Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração, esquecerás aí a
dor da chaga que o mundo te abriu.
— Coitado de mim, respondeu o poeta, que
tenho a poesia fria, e apagada a inspiração!
— De que precisas tu para dar vida à poesia e
à inspiração?
— Preciso do que me falta... e falta-me tudo.
— Tudo? És exagerado. Tens o selo com que
Deus te distinguiu dos outros homens e isso te basta. Cismavas em deixar esta
terra?
— É verdade.
— Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?
— Para onde?
— Que importa? Queres vir?
— Quero. Assim me distrairei. Partiremos
amanhã. É por mar, ou por terra?
— Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas
hoje, e pelo ar.
Tito levantou-se e recuou. A visão
levantou-se também.
— Tens medo? perguntou ela.
— Medo, não, mas...
— Vamos. Faremos uma deliciosa viagem.
— Vamos.
Não sei se Tito esperava um balão para a
viagem aérea a que o convidava a inesperada visita; mas, o que é certo, é que
os seus olhos se arregalaram prodigiosamente quando viu abrirem-se das espáduas
da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e das quais caía
uma poeira de ouro.
— Vamos, disse a visão.
Tito repetiu maquinalmente:
— Vamos!
E ela tomou-o nos braços, subiu com ele até o
teto, que se rasgou, e passaram ambos, visão e poeta. A tempestade tinha, como
por encanto, cessado; estava o céu limpo, transparente, luminoso,
verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas fulgiam com a sua melhor luz, e um
luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores e a
relva dos campos.
Os dois subiram.
Durou a ascensão algum tempo. Tito não podia
pensar; ia atordoado, e subia sem saber para onde, nem a razão por quê. Sentia
que o vento agitava os cabelos loiros da visão, e que eles lhe batiam docemente
na face, do que resultava uma exalação celeste que embriagava e adormecia. O ar
estava puro e fresco. Tito, que se havia distraído algum tempo da ocupação das
musas no estudo das leis físicas, contava que, naquele subir continuado, breve
chegariam a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano dele! Subiam
sempre, e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais
ele subia melhor respirava.
Isto passou rápido pela mente do poeta. Como
disse, ele não pensava; ia subindo sem olhar para a terra. E para que olharia
para a terra? A visão não podia conduzi-lo senão ao céu.
Em breve começou Tito a ver os planetas
fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus, mais pálida e loira que de
costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com a sua beleza. Tito teve um
olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia, subiam sempre. Os planetas
passavam à ilharga do poeta, como se fossem corcéis desenfreados. Afinal
penetraram em uma região inteiramente diversa das que haviam atravessado
naquela assombrosa viagem. Tito sentiu expandir-se-lhe a alma na nova
atmosfera. Seria aquilo o céu? O poeta não ousava perguntar, e mudo esperava o
termo da viagem. À proporção que penetravam nessa região ia-se a alma do poeta
rompendo em júbilo; daí a algum tempo entravam em um planeta; a fada depôs o
poeta e começaram a fazer o trajeto a pé.
Caminhando, os objetos, até então vistos
através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Tito pôde ver então
que se achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha: o primeiro
aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul ou a poética Nápoles. Mais
entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegaram
à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era,
por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a
chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura
do palácio.
Tito quis sair da ânsia em que estava por
saber em que país acabava de entrar, e aventurou uma pergunta à sua companheira.
— Estamos no país das Quimeras, respondeu
ela.
— No país das Quimeras?
— Das Quimeras. País para onde viaja três
quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da
ciência.
Tito contentou-se com a explicação. Mas refletiu
sobre o caso. Por que motivo iria parar ali? A que era levado? Estava nisto
quando a fada o advertiu de que eram chegados à porta do palácio. No vestíbulo
havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grosso cachimbo de escuma do
mar, e que se embriagavam com outros tantos padixás, na contemplação dos
novelos de fumo azul e branco que lhes saíam da boca. À entrada dos dois houve
continência militar. Subiram pela grande escadaria, e foram ter aos andares
superiores.
— Vamos falar aos soberanos, disse a
companheira do poeta. Atravessaram muitas salas e galerias. Todas as paredes,
como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.
Afinal penetraram na grande sala. O gênio das
bagatelas, de que fala Elpino, estava sentado em um trono de casquinha, tendo
de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano tinha por coifa
um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie de solidéu, maior que os dos
nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de duas largas
fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa idêntica
adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes deste
mundo e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de minuto
a minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.
Quando Tito entrou na grande sala pela mão da
visão, houve um murmúrio entre os fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia
apresentar um filho da terra. Seguiu-se a cerimônia da apresentação, que era
uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas quiméricas, sem excluir a
formalidade do beija-mão. Não se pense que Tito foi o único a beijar a mão ao
gênio soberano; todos os presentes fizeram o mesmo, porque, segundo Tito ouviu
depois, não se dá naquele país o ato mais insignificante sem que esta
formalidade seja preenchida.
Depois da cerimônia da apresentação perguntou
o soberano ao poeta que tratamento tinha na terra, para dar-se-lhe cicerone
correspondente.
— Eu, disse Tito, tenho, se tanto, uma triste
Mercê.
— Só isso? Pois há de ter o desprazer de ser
acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a Excelência, a
Grandeza, e outras mais; mas, quanto à Mercê, essa, tendo habitado algum tempo
este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor despedi-la.
A este tempo a Senhoria e a Excelência, duas
criaturas empertigadas, que se haviam aproximado do poeta, voltaram-lhe as
costas, encolhendo os ombros e deitando-lhe um olhar de través com a maior
expressão de desdém e pouco caso.
Tito quis perguntar à sua companheira o
motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão puxou-lhe pelo
braço, e fez-lhe ver com um gesto que estava desatendendo ao Gênio das
Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os poetas antigos que se
contraíam os de Júpiter Tonante.
Neste momento entrou um bando de moçoilas
frescas, lépidas, bonitas e loiras... oh! mas de um loiro que se não conhece
entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr, com a agilidade de
andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios da
corte foram ao Gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.
Quem eram aquelas raparigas? O meu poeta
estava de boca aberta. Indagou da sua guia, e soube. Eram as Utopias e as Quimeras
que iam da terra, onde haviam passado a noite na companhia de alguns homens e
mulheres de todas as idades e condições.
As Utopias e as Quimeras foram festejadas
pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e bater-lhes na face. Elas alegres e
risonhas receberam os carinhos reais como coisa que lhes era devida; e depois
de dez ou doze mesuras, repetição das anteriores, foram-se da sala, não sem
abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que olhava espantado para elas sem saber
por que se tornara objeto de tanta jovialidade. O seu espanto crescia de ponto
quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de
máscaras: Eu te conheço!
Depois que saíram todas, o Gênio fez um
sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano, a ver o que ia sair-lhe dos
lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso soberano apenas com um
gesto indicou ao cicerone comum o mísero hóspede que daqui tinha ido. Seguiu-se
a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das mesuras,
cortesias e beija-mão do estilo.
Os três, o poeta, a fada condutora e o
cicerone, passaram à sala da rainha. A real senhora era uma pessoa digna de
atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava vestido de gaze
e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de todas as
espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia posturas
finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel da
natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.
Tito não disfarçou a impressão que lhe
causava um todo assim. Voltou-se para a companheira de viagem e perguntou como
se chamava aquela deusa.
— Não a vê? respondeu a fada; não vê as
trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? é a Moda, cercada
de suas trezentas belas, caprichosas
filhas.
A estas palavras Tito lembrou-se do Hissope. Não duvidava já de que estava
no país das Quimeras; mas, raciocinou ele, para que Dinis falasse de algumas
destas coisas, é preciso que cá tivesse vindo e voltasse, como está averiguado.
Portanto, não devo recear de cá ficar morando eternamente. Descansado por este
lado, passou a atentar para os trabalhos das companheiras da rainha; eram umas
novas modas que se estavam arranjando, para vir a este mundo substituir as antigas.
Houve apresentação com o cerimonial do
estilo. Tito estremeceu quando pousou os lábios na mão fina e macia da
soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psyché, onde se mirava de momento em
momento.
Impetraram os três licença para continuar a
visita do palácio e seguiram pelas galerias e salas do alcáçar. Cada sala era
ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas vezes mulheres e
homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam incumbidos pela
lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Tito percorria essas diversas
salas com o olhar espantado, estranhando o que via, aquelas ocupações, aqueles
costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas
ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa. Naturalmente este
lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma iguaria singular para o
almoço do rei. Indagou do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:
— Não, senhor; estes homens estão ocupados em
preparar massa cerebral para um certo número de homens de todas as classes:
estadistas, poetas, namorados, etc.; serve também a mulheres. Esta massa é
especialmente para aqueles que, no seu planeta, vivem com verdadeiras
disposições do nosso país, aos quais fazemos presente deste elemento
constitutivo.
— É massa quimérica?
— Da melhor que se há visto até hoje.
— Pode ver-se?
O cicerone sorriu; chamou o chefe da sala, a
quem pediu um pouco de massa. Este foi com prontidão ao depósito e tirou uma
porção que entregou a Tito. Mal o poeta a tomou das mãos do chefe desfez-se a
massa, como se fora composta de fumo. Tito ficou confuso; mas o chefe,
batendo-lhe no ombro:
— Vá descansado, disse; nós temos à mão
matéria-prima; é da nossa própria atmosfera que nos servimos; e a nossa
atmosfera não se esgota.
Este chefe tinha uma cara insinuante, mas,
como todos os quiméricos, era sujeito a abstrações, de modo que Tito não pôde
arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele, ao dizer as últimas, começou a olhar
para o ar e a contemplar o voo de uma mosca.
Este caso atraiu os companheiros que se
chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.
Os três continuaram caminho.
Mais adiante era uma sala onde muitos
quiméricos, à roda de mesas, discutiam os diferentes modos de inspirar aos
diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e
apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares
de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não se entrar naquela sala em
horas de trabalho; uma guarda estava à porta. A menor distração daquele
congresso seria considerada uma calamidade pública.
Andou o meu poeta de sala em sala, de galeria
em galeria, aqui, visitando um museu, ali, um trabalho ou um jogo; teve tempo
de ver tudo, de tudo examinar, com atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande
galeria que dava para a praça, viu que o povo, reunido embaixo das janelas,
cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar. Crime de morte? perguntou
Tito, que tinha a nossa legislação na cabeça. Não, responderam-lhe, crime de
lesa-cortesia. Era um quimérico que havia cometido o crime de não fazer a tempo
e com graça uma continência; este crime é considerado naquele país como a maior
audácia possível e imaginável. O povo quimérico contemplou a execução como se
assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.
Entretanto era a hora do almoço real. À mesa
do gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros, um médico e a
encantadora fada que havia levado o meu poeta àquelas alturas. A fada, antes de
sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir Tito ao almoço; a resposta
foi afirmativa; Tito tomou assento. O almoço foi o mais sucinto e rápido que é
possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que todos se levantaram, e
abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; Tito foi assistir ao jogo; em roda
da sala havia cadeiras, onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às
costas dessas cadeiras empertigavam-se os fidalgos quiméricos, com os seus
pavões e as suas vestiduras de escarlate. Tito aproveitou a ocasião para saber
como é que o conheciam aquelas assanhadas raparigas. Encostou-se a uma cadeira
e indagou da Utopia que se achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das
formalidades do costume, retirou-se a uma das salas com o poeta, e aí
perguntou-lhe:
— Pois deveras não sabes quem somos? Não nos
conheces?
— Não as conheço, isto é, conheço-as agora, e
isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las conhecido há mais tempo.
— Oh! sempre poeta!
— É que deveras são de uma gentileza sem
rival. Mas onde é que me viram?
— Em tua própria casa.
— Oh!
— Não te lembras? À noite, cansado das lutas
do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te
ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem acompanham-te algumas raparigas...
somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.
Tito compreendeu afinal uma coisa que se lhe
estava a dizer havia tanto tempo. Sorriu-se, e cravando os seus belos e
namorados olhos nos da Utopia, que tinha diante de si, disse:
— Ah! sois vós, é verdade! Consoladora
companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio de vós que
eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem! Conforta-me ver-vos a todas de face e
embaixo de forma palpável.
— E queres saber, tornou a Utopia, quem nos
leva a todas para tua companhia? Olha, vê.
O poeta voltou a cabeça e viu a peregrina
visão, sua companheira de viagem.
— Ah! é ela! disse o poeta.
— É verdade. É a loira Fantasia, a
companheira desvelada dos que pensam e dos que sentem.
A Fantasia e a Utopia entrelaçaram-se as mãos
e olhavam para Tito. Este, como que enlevado, olhava para ambas. Durou isto
alguns segundos; o poeta quis fazer algumas perguntas, mas quando ia falar
reparou que as duas se haviam tornado mais delgadas e vaporosas. Articulou
alguma coisa; porém, vendo que elas iam ficando cada vez mais transparentes, e
distinguindo-lhes já pouco as feições, soltou estas palavras: — Então! que é
isto? por que se desfazem assim? — Mais e mais as sombras desapareciam, o poeta
correu à sala do jogo; espetáculo idêntico o esperava; era pavoroso; todas as
figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa. Atônito e palpitante, Tito
percorreu algumas galerias e afinal saiu à praça; todos os objetos estavam
sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco Tito sentiu que lhe faltava
apoio aos pés e viu que estava solto no espaço.
Nesta situação soltou um grito de dor. Fechou
os olhos e deixou-se ir como se tivesse de encontrar por termo de viagem a
morte.
Era na verdade o mais provável. Passados
alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu que caía perpendicularmente sobre um
ponto negro que lhe parecia do tamanho de um ovo. O corpo rasgava como raio o
espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e cresceu até fazer-se do tamanho de
uma esfera. A queda do poeta tinha alguma coisa de diabólica; ele soltava de
vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe nos olhos, obrigava-o a fechá-los de
instante a instante. Afinal, o ponto negro que havia crescido, continuava a
crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto da terra. É a terra! disse Tito
consigo.
Creio que não haverá expressão humana para
mostrar a alegria que sentiu aquela alma, perdida no espaço, quando reconheceu
que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria. Tito pensou, e pensou
bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para nunca mais
levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou a alma a
Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos milagres! —
caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal
salto.
A primeira impressão, quando se viu em terra,
foi de satisfação; depois tratou de ver em que região do planeta se achava;
podia ter caído na Sibéria ou na China; verificou que se achava a dois passos
de casa. Apressou-se o poeta a voltar aos seus pacíficos lares.
A vela estava gasta; a galga, estendida sob a
mesa, tinha os olhos fitos na porta. Tito entrou e atirou-se sobre a cama, onde
adormeceu, refletindo no que lhe acabava de acontecer.
Desde então Tito possui um olhar de lince, e
diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa quimérica.
Devo declarar que poucos encontra que não façam provisão desta última espécie.
Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número das pouquíssimas
exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados, não posso retirar a minha
confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa viagem, e que pôde olhar
de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.
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