O
Oráculo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Conheci outrora um sujeito que era um exemplo de quanto pode a má fortuna quando se dispõe a perseguir um pobre mortal.
Leonardo (era o nome dele) começara por ser
mestre de meninos, mas tão mal se houve que no fim de um ano perdera o pouco
que possuía e achou-se reduzido a três alunos.
Tentou depois um emprego público, arranjou as
cartas de empenho necessárias, chegou mesmo a dar um voto contra as suas
convicções, mas quando tudo lhe sorria, o ministério, na forma do geral
costume, achou contra si a maioria da véspera e pediu demissão. Subiu um
ministério do seu partido, mas o infeliz tinha-se tornado suspeito ao partido
por causa do voto e teve uma resposta negativa.
Auxiliado por um amigo da família, abriu uma
casa de comércio; mas, tanto a sorte, como a velhacaria de alguns empregados,
deram com a casa em terra, e o nosso negociante levantou as mãos para o céu
quando os credores concordaram em receber uma certa quantia inferior ao débito,
isto em tempo indeterminado.
Dotado de alguma inteligência e levado pela
necessidade mais que pelo gosto, fundou uma gazeta literária; mas os
assinantes, que eram da massa dos que preferem ler sem pagar a impressão, deram
à gazeta de Leonardo uma morte prematura no fim de cinco meses.
Entretanto, subiu de novo o partido a que ele
sacrificara a sua consciência e pelo qual sofrera os ódios de outro. Leonardo
foi a ele e lembrou-lhe o direito que tinha à sua gratidão; mas a gratidão não
é a bossa principal dos partidos, e Leonardo teve de ver-se preterido por
algumas influências eleitorais de quem os novos homens dependiam.
Nesta sucessão de contratempos e azares,
Leonardo não chegara a perder a confiança na Providência. Doam-lhe os golpes sucessivos,
mas uma vez recebidos, ele preparava-se para tentar de novo a fortuna, fundado
neste pensamento que havia lido, não me lembra aonde: “A fortuna é como as
mulheres, vence-a a tenacidade”.
Preparava-se, pois, a tentar novo assalto, e
para isso tinha arranjado uma viagem ao norte, quando viu pela primeira vez
Cecília B... filha do negociante Atanásio B...
Os dotes desta moça consistiam nisto: um
rosto simpático e cem contos limpos, em moeda corrente. Era a menina dos olhos
de Atanásio. Só constava que tivesse amado uma vez, e o objeto do seu amor era
um oficial de marinha de nome Henrique Paes. O pai opôs-se ao casamento por
antipatizar com o genro, mas parece que Cecília não amava muito Henrique, visto
que apenas chorou um dia, acordando no dia seguinte tão fresca e alegre como se
lhe não houvesse empalmado um noivo.
Dizer que Leonardo se apaixonou por Cecília é
mentir à história, e eu prezo, antes de tudo, a verdade dos fatos e dos
sentimentos; mas é por isso mesmo que eu devo dizer que Cecília não deixou de
fazer alguma impressão em Leonardo.
O que causou profunda impressão no ânimo do
nosso mal-aventurado e conquistou desde logo todos os seus afetos, foram os cem
contos que a pequena trazia em dote. Leonardo não hesitou em abençoar o mau
destino que tanto o perseguira para atirar-lhe aos braços uma fortuna daquela
ordem.
Que impressão produziu Leonardo no pai de
Cecília? Boa, excelente, maravilhosa. Quanto à menina, recebeu-o indiferente.
Leonardo confiou em que venceria a indiferença da filha, visto que já possuía a
simpatia do pai.
Em todo o caso desfez a viagem.
A simpatia de Atanásio foi ao ponto de fazer
de Leonardo um comensal indispensável. À espera do mais, o mal-aventurado
Leonardo foi aceitando aqueles adiantamentos.
Dentro de pouco tempo era ele um íntimo da
casa.
Um dia Atanásio mandou chamar Leonardo ao
gabinete e disse-lhe com ar paternal:
— Tem sabido corresponder à minha estima.
Vejo que é um bom moço, e segundo me disse tem sido infeliz.
— É verdade, respondeu Leonardo, sem poder
conter um sorriso de júbilo que lhe assomou aos lábios.
— Pois bem, depois de estudá-lo tenho
resolvido fazê-lo aquilo que o céu não me concedeu: um filho.
— Ah!
— Espere. Já o é pela estima, quero que o
seja pelo auxílio à nossa casa. Tem, desde já, um emprego no meu
estabelecimento.
Leonardo ficou um pouco enfiado; esperava que
o próprio velho fosse oferecer-lhe a filha, e apenas recebia dele um emprego.
Mas depois refletiu; um emprego era aquilo que depois de tanto cuidado vinha
encontrar; não era pouco; e daí podia ser que lhe resultasse mais tarde o
casamento.
Assim, respondeu beijando as mãos do velho:
— Oh! obrigado!
— Aceita, não?
— Oh! sem dúvida!
O velho ia levantar-se quando Leonardo,
tomando subitamente uma resolução, fê-lo conservar-se na cadeira.
— Mas escute...
— O que é?
— Não quero ocultar-lhe uma coisa. Devo-lhe
tantas bondades que não posso deixar de ser inteiramente franco. Eu aceito o
ato de generosidade com uma condição. Amo D. Cecília com todas as forças de
minha alma. Vê-la é aumentar este amor já tão ardente e tão poderoso. Se o
coração de vossa senhoria leva a generosidade ao ponto de me admitir na sua
família, como me admite na sua casa, aceito. De outro modo é sofrer de um modo
que está acima das forças humanas.
Em honra da perspicácia de Leonardo devo
dizer que, se ele ousou arriscar assim o emprego, foi por ter descoberto em
Atanásio uma tendência para dar-lhe todas as felicidades.
Não se enganou. Ouvindo aquelas palavras, o
velho abriu os braços a Leonardo e exclamou:
— Oh! se eu não desejo outra coisa!
— Meu pai! exclamou Leonardo abraçando o pai
de Cecília.
O quadro tornou-se comovente.
— De há muito, disse Atanásio, que eu noto a
impressão produzida por Cecília e pedia no meu íntimo que uma tão feliz união
se pudesse efetuar. Creio que agora nada se oporá. Minha filha é uma menina
sisuda, não deixará de corresponder ao seu afeto. Quer que lhe fale já ou
esperemos?
— Como queira...
— Ou antes, seja franco; possui o amor de
Cecília?
— Não posso dar uma resposta positiva. Creio
que não lhe sou indiferente.
— Eu me incumbo de investigar o que há.
Demais, a minha vontade há de entrar por muito neste negócio; ela é obediente...
— Oh! forçada, não!
— Qual forçada! É sisuda e há de ver que lhe
convém um marido inteligente e laborioso...
— Obrigado!
Separaram-se os dois.
No dia seguinte devia Atanásio instalar o seu
novo empregado.
Nessa mesma noite, porém, o velho tocou no
assunto de casamento à filha. Começou por perguntar-lhe se acaso não tinha
vontade de casar-se. Ela respondeu que não havia pensado nisso; mas disse-o com
um sorriso tal que o pai não hesitou em declarar que tivera um pedido formal da
parte de Leonardo.
Cecília recebeu o pedido sem dizer palavra;
depois, com o mesmo sorriso, disse que ia consultar o oráculo.
O velho não deixou de admirar-se com esta
consulta de oráculo e interrogou a filha sobre a significação das suas
palavras.
— É muito simples, disse ela, vou consultar o
oráculo. Nada faço sem consultar; não dou uma visita, não faço a menor coisa
sem consultá-lo. Este ponto é importante; como vê, não posso deixar de
consultá-lo. Farei o que ele mandar.
— É esquisito! mas que oráculo é esse?
— É segredo.
— Mas posso dar esperanças ao rapaz?
— Conforme; depende do oráculo.
— Ora, tu estás caçoando comigo...
— Não, meu pai, não.
Era necessário conformar-se à vontade de
Cecília, não porque realmente fosse imperiosa, mas porque no modo e no sorriso
com que a moça falou o pai descobriu que ela aceitava o noivo e apenas fazia
aquilo por espírito de casquelhice.
Quando Leonardo soube da resposta de Cecília
não deixou de ficar um tanto atrapalhado. Mas Atanásio tranquilizou-o
comunicando ao pretendente as suas impressões.
No dia seguinte é que Cecília devia dar a
resposta do oráculo. A intenção do velho Atanásio estava decidida; no caso de
ser contrária a resposta do misterioso oráculo, ele persistiria em obrigar a
filha a casar com Leonardo. Em todo o caso far-se-ia o casamento.
Ora, no dia aprazado apresentaram-se em casa
de Atanásio duas sobrinhas dele, casadas ambas, e de muito tempo retiradas da
casa do tio pelo interesse que tinham tomado por Cecília quando esta quis
casar-se com Henrique Paes. A menina reconciliou-se com o pai; mas as duas
sobrinhas, não.
— A que lhes devo esta visita?
— Vimos pedir-lhe desculpa do nosso erro.
— Ah!
— Tinha razão, meu tio; e, demais, parece que
há um novo pretendente.
— Como souberam?
Cecília mandou-nos dizer.
— Vêm então opor-se?
— Não; apoiar.
— Ora, graças a Deus!
— Nosso desejo é que Cecília se case, com
este ou com aquele; é todo o segredo da nossa intervenção em favor do outro.
Feita assim a reconciliação, Atanásio
participou às sobrinhas o que havia e qual a resposta de Cecília. Disse
igualmente que era aquele o dia marcado pela moça para dar a resposta do
oráculo. Riram-se todos da singularidade do oráculo, mas resolveram esperar a
resposta dele.
— Se for contrária, apoiar-me-ão?
— Decerto, responderam as duas sobrinhas.
Os maridos destas chegaram pouco depois.
Enfim apareceu Leonardo de casaca preta e
gravata branca, trajo muito diverso daquele com que os antigos iam buscar as
respostas dos oráculos de Delfos e de Dodona. Mas cada tempo e cada terra com
seu uso.
Durante todo o tempo em que as duas moças, os
maridos e Leonardo estavam de conversa, Cecília demorava-se no seu quarto
consultando, dizia ela, o oráculo.
A conversa versou a respeito do assunto que
reunia a todos.
Enfim, seriam oito horas da noite quando
Cecília apareceu na sala.
Todos foram a ela.
Depois de feitos os primeiros cumprimentos,
Atanásio, meio sério, meio risonho, perguntou à filha:
— Então? que disse o oráculo?
— Ah! meu pai! o oráculo disse que não!
— Então o oráculo, continuou Atanásio, é
contrário ao teu casamento com o Sr. Leonardo?
— É verdade.
— Pois sinto dizer que sou de opinião
contrária ao Sr. oráculo, e como a minha pessoa é conhecida enquanto a do Sr. oráculo
é inteiramente misteriosa, há de fazer-se o que eu quiser, mesmo apesar do Sr. oráculo.
— Ah! não!
— Como, não? Queria ver isso! Se eu aceitei
essa ideia de consultar bruxarias foi para brincar. Nunca me passou pela cabeça
ceder lá às decisões de oráculos misteriosos. Tuas primas são de minha opinião.
E demais, eu quero desde já saber que bruxarias são essas... Meus senhores, vamos
descobrir o tal oráculo.
A este tempo apareceu um vulto na porta e
disse:
— Não precisa!
Todos voltaram-se para ele. O vulto deu
alguns passos e parou no meio da sala. Tinha um papel na mão.
Era o oficial de marinha de que falei acima,
trajando casaca e luva branca.
— Que faz aqui o senhor? perguntou o velho
espumando de raiva.
— Que faço? Sou o oráculo.
— Não aturo caçoadas desta natureza. Com que
direito se acha neste lugar?
Henrique Paes por única resposta deu a
Atanásio o papel que trazia na mão.
— Que é isto?
— É a resposta à sua pergunta.
Atanásio chegou-se para a luz, tirou os
óculos do bolso, pô-los no nariz e leu o
papel.
Durante este tempo, Leonardo tinha a boca
aberta sem compreender nada.
Quando o velho chegou ao meio do escrito que
tinha na mão, voltou-se para Henrique e disse com o maior grau de assombro:
— O senhor é meu genro!
— Com todos os sacramentos da igreja. Não
leu?
— E se isto for falso!
— Alto lá, acudiu um dos sobrinhos, nós fomos
os padrinhos, e estas senhoras as madrinhas do casamento de nossa prima D.
Cecília B... com o Sr. Henrique Paes, o qual se efetuou há um mês no oratório
de minha casa.
— Ah! disse o velho caindo numa cadeira.
— Mais esta! exclamou Leonardo procurando
sair sem ser visto.
EPÍLOGO
Se perdeu a noiva, e tão ridiculamente, nem
por isso Leonardo perdeu o lugar. Declarou ao velho que faria um esforço, mas
que ficava para corresponder à estima que o velho lhe tributava.
Mas estava escrito que a sorte tinha de
perseguir o pobre rapaz.
Daí a quinze dias Atanásio foi acometido de
uma congestão de que morreu.
O testamento, que fora feito um ano antes,
nada deixava a Leonardo.
Quanto à casa, teve de liquidar-se. Leonardo
recebeu a importância de quinze dias de trabalho.
O mal-aventurado deu o dinheiro a um mendigo
e foi atirar-se ao mar, na praia de Icaraí.
Henrique e Cecília vivem como Deus com os
anjos.
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