O Negrinho do Pastoreio
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Naquele
tempo os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem
cercas; somente nas volteadas se apanhava a gadaria xucra e os veados e as
avestruzes corriam sem empecilhos...
Era uma vez
um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias-doblas e
mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito.
Não dava
pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da
sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a
sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os
cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas.
Mas também
quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório;
e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só
dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem
um naco de fumo… e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia
que era o seu próprio couro que ele estava lonqueando...
Só para três
viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino cargoso como uma mosca,
para um baio cabos-negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um
escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todos
chamavam somente o — Negrinho.
A este não
deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem,
Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não a tem.
Todas as
madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio; depois conduzia os avios do
chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o judiava e se ria.
***
Um dia depois de muitas negaças, o estancieiro
atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os
pobres; o outro que não, que não!
que a parada
devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta
quadras, a parada, mil onças de ouro.
No dia
aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande.
Entre os
dois parelheiros, a gauchada não sabia se decidir, tão perfeito era e bem
lançado cada um dos animais. Do baio era fama que quando corria, corria tanto,
que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não
lhe viam as patas baterem no chão... E do mouro era voz que quanto mais cancha,
mais aguente e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta...
As parcerias
abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e
redomões contra lenços.
—Pelo baio!
Luz e doble!…
—Pelo mouro!
Doble e luz!...
Os
corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois as obrigadas; e quando
foi na última, fizeram ambos a sua senha e se convidaram. E amagando o corpo,
de rebenque no ar, largaram, os parelheiros meneando cascos, que parecia uma
tormenta...
— Empate!
Empate! — gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passava a parelha
veloz, compassada como numa colhera.
— Valha-me a
Virgem madrinha, Nossa Senhora! — gemia o Negrinho. — Se o sete-léguas perde, o
meu senhor me mata! hip! hip! hip!...
E baixava o
rebenque, cobrindo a marca do baio.
— Se o
corta-vento ganhar é só para os pobres!... retrucava o outro corredor.
Hip! hip!
E cerrava as
esporas no mouro.
Mas os
fletes corriam, compassados como numa colhera. Quando foi na última quadra, o
mouro vinha arrematado e o baio vinha aos tirões… mas sempre juntos, sempre
emparelhados.
E a duas
braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de supetão, pôs-se em pé
e fez uma caravolta, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para
passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de em pelo, agarrou-se como um
ginetaço.
— Foi mau
jogo! — gritava o estancieiro.
— Mau jogo!
— secundavam os outros da sua parceria.
A gauchada
estava dividida no julgamento da carreira; mais de um torena coçou o punho da
adaga, mais de um desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas para o
peito do pé... Mas o juiz, que era um velho do tempo da guerra de Sepé—
Tíaraju, era um juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo. Abanando a
cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem:
— Foi na
lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro.
Quem perdeu, que pague. Eu perdi cem gateadas; quem as ganhou venha buscá-las.
Foi na lei!
Não havia o
que alegar. Despeitado e furioso, o estancieiro pagou a parada, à vista de
todos, atirando as mil onças de ouro sobre o poncho do seu contrário, estendido
no chão.
E foi um
alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhador mandou distribuir tambeiros e
leiteiras, côvados de baeta e haguais e deu o resto, de mota, ao pobrerio.
Depois as carreiras seguiram com os changueiritos que havia.
***
O estancieiro retirou-se para a sua casa e
veio pensando, pensando calado, em todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas
o coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado a meia espalda… O
trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma.
E conforme
apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque
e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
Na madrugada
saiu com ele e quando chegou no alto da coxilha falou assim:
— Trinta
quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trinta dias ficarás aqui
pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos negros... O baio fica de
piquete na soga e tu ficarás de estaca!
O Negrinho
começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando.
Veio o sol,
veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho, varado de fome e já sem
força nas mãos, enleou a soga num pulso e deitou-se encostado a um cupim.
Vieram então
as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar, e todas olhavam-no com os
olhos reluzentes, amarelos na escuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se
dele, paradas no ar, sem barulho nas asas.
O Negrinho
tremia, de medo... porém de repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e
sossegou e dormiu.
E dormiu.
Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; o Cruzeiro apareceu, subiu e
passou; passaram as Três-Marias: a estrela-d’alva subiu... Então vieram os
guaraxains ladrões e farejaram o Negrinho e cortaram a guasca da soga.
O baio
sentindo-se solto rufou a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no
escuro e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel
acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram, dando berros de escárnio.
Os galos
estavam cantando, mas nem o céu nem as barras do dia se enxergava: era a
cerração que tapava tudo.
E assim o
Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou.
***
O menino maleva
foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos não estavam. O
estancieiro
mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe,
dar-lhe uma surra de relho.
E quando era
já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear o perdido.
Rengueando,
chorando e gemendo, o Negrinho pensou na sua madrinha Nossa Senhora e foi ao
oratório da casa, tomou o coto de vela acesa em frente da imagem e saiu para o
campo.
Por coxilhas
e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros e nas restingas, por onde o
Negrinho ia passando, a vela benta ia pingando cera no chão; e de cada pingo
nascia uma nova luz, e já eram tantas que clareavam tudo. O gado ficou deitado,
os touros não escarvaram a terra e as manadas xucras não dispararam... Quando
os galos estavam cantando, como na véspera, os cavalos relincharam todos
juntos. O Negrinho montou no baio e tocou por diante a tropilha, até a coxilha
que o seu senhor lhe marcara.
E assim o
Negrinho achou o pastoreio. E se riu...
Gemendo,
gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim e no mesmo instante
apagaram-se as luzes todas; e sonhando com a Virgem, sua madrinha, o Negrinho
dormiu. E não apareceram nem as corujas agoureiras nem os guaraxains ladrões;
porém pior do que os bichos maus, ao clarear o dia veio o menino, filho do
estancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram, disparando campo fora,
retouçando e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel
acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seu pai que os cavalos não
estavam lá...
E assim o
Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou...
***
O estancieiro mandou outra vez amarrar o
Negrinho pelos pulsos, a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho...
dar-lhe até ele não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue
vivo escorrendo do corpo… O Negrinho chamou pela Virgem sua madrinha e Senhora
Nossa, deu um suspiro triste, que chorou no ar como uma música, e pareceu que
morreu...
E como já
era noite e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou
atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, que era para as
formigas devorarem-lhe a carne e o sangue e os ossos... E assanhou bem as
formigas, e quando elas, raivosas, cobriam todo o corpo do Negrinho e começaram
a trincá-la é que então ele se foi embora, sem olhar para trás.
Nessa noite
o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e
mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto
cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno...
Caiu a
serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dos pássaros e a casca das
frutas.
Passou a
noite de Deus e veio a manhã e o sol encoberto. E três dias houve cerração
forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.
***
A peonada bateu o campo, porém ninguém achou a
tropilha e nem rastro.
Então o
senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava do corpo do escravo.
Qual não foi
o seu grande espanto, quando chegado perto, viu na boca do formigueiro o
Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o
cobriam ainda!... O Negrinho, de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto a
tropilha dos trinta tordilhos... e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho,
o estancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a Virgem, Nossa Senhora, tão
serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no céu... Quando tal viu, o
senhor caiu de joelhos diante do escravo.
E o
Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pelo e sem rédeas, no baio, chupou o
beiço e tocou a tropilha a galope.
E assim o
Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não chorou, e nem se riu.
***
Correu no vizindário a nova do fadário e da
triste morte do Negrinho, devorado na panela do formigueiro.
Porém logo,
de perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um
caso que parecia um milagre novo...
E era, que
os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que
dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os
tropeiros que vinham pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam
notícia — da mesma hora — de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma
tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pelo, em um
cavalo baio!…
Então,
muitos acenderam velas e rezaram o Pai-nosso pela alma do judiado.
Daí por
diante, quando qualquer cristão perdia uma coisa, o que fosse, pela noite velha
o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja
luz ele levava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora,
que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem
ninguém ver.
***
Todos os anos, durante três dias, o Negrinho,
desaparece: está metido em algum formigueiro grande, fazendo visita às
formigas, suas amigas; a sua tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por lá, os
seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas ao nascer do sol do
terceiro dia, o baio relincha perto do seu ginete; o Negrinho monta-o e vai
fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece a disparada das
cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê ninguém, nem na ponta, nem na
culatra.
***
Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu
pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais,
bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas e
desce às canhadas.
O Negrinho
anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados
pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para
o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm.
Quem perder
suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos
das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo —
Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu
perdi!...
Se ele não
achar… ninguém mais.
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