O Navio Negreiro (Heine)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
No camarote,
sentado ao beliche, mynher van Koek,
o capitão do brigue, põe-se a fazer as suas contas. Calcula o preço de venda do
carregamento e os lucros prováveis:
— A goma é
boa, a pimenta boa: trezentos sacos e trezentas barricas, e marfim e ouro em
pó! Mas a carga, preciosa entre todas, é a “negra”, que vale mais que tudo.
Seiscentos negros, apanhados na praia do Senegal, em troca de ninharias, pois
outra coisa não tinham custado em verdade, era um carregamento excelente. E
todos eles, de ossatura poderosa e músculos rijos, dir-se-iam de bronze bem
modelado. Uma tal fortuna a obtive apenas com algumas medidas de aguardente,
contas de vidro, facas e canivetes. Que me não deem muito lucro: basta que só
metade sobreviva à viagem e às
doenças para que eu ganhe oitocentos por cento! Sim, se me for dado chegar ao
Rio de janeiro com trezentos negros, ao menos, a casa Gonçalves Pereira
comprar-nos-á à razão de cem ducados cada um...
De repente,
porém, alguém interrompeu mynher van
Koek nessas profundas meditações de comércio. Era o cirurgião de bordo, o Dr.
van der Smissen, que assomou à porta do camarote, com a sua figura alta e
magra, o nariz crivado de rubras verrugas.
— Oh! Bem
vindo, Sr. esculápio naval! exclamou alegremente van Koek. Como vão os meus
caros negros?...
O médico
acudiu:
— Ora,
capitão, venho justamente comunicar-lhe que a mortalidade entre os pretos,
aumentou consideravelmente, esta noite. Entre um e outro sexo, têm perecido
cerca de dois por dia. Os mortos desta madrugada atingiram o número de sete —
quatro homens e três mulheres, que foram logo lançados no registro dos óbitos.
Mas, para bem me certificar de que estavam mortos, examinei detidamente os
corpos um por um, porque estes patifes frequentemente fingem de mortos, a fim de
serem jogados às vagas. Preferem a morte ao cativeiro... Após esse exame mandei
tirar-lhes as algemas e, ao romper do dia, segundo o meu hábito, ordenei fossem
lançados ao mar. Imediatamente os tubarões, ávidos de carne negra, coalharam as
ondas, em imenso cardume. Como sabeis, são eles os meus pensionários.
Acompanham-nos, na esteira do navio, desde que deixamos a costa. Os malditos
farejam de longe os cadáveres, com as suas narinas sôfregas. E não há nada mais
cômico que os ver abocar os mortos: este arranca a cabeça, aquele a perna, e os
outros tassalhos de carne... E, quando tudo foi devorado, saracoteiam alegres
em torno ao costado, fitando-me com os seus grandes olhos de vidro, como se
quisessem agradecer-me o almoço...
Mynher van Koek interrompeu suspirando:
— Mas como
fazer cessar tamanha mortandade?
O cirurgião
respondeu:
— Há um
meio, um meio facílimo. Uns têm morrido, por falta de acomodações e pelo mau
cheiro do porão; outros de melancolia. É dar-se-lhes, portanto, um pouco de ar
puro no convés, um pouco de música e dança, e o mal desaparecerá.
— Admirável!
exclamou o capitão. O senhor, meu caro esculápio naval, é tão sábio como
Aristóteles, o preceptor de Alexandre. Muito respeito eu o presidente da
Sociedade de aperfeiçoamento das tulipas, de Delft, como um grande homem; mas
ele não possui nem metade da vossa argúcia nem do vosso engenho... À música! à
música, pois! E que bailem os negros... Mas ai daqueles a quem a dança não
conseguir alegrar! Nós os alegraremos a golpes de calabrote.
II
Na alta
abóbada do céu azulado pestanejam as estrelas, brilhantes de desejos, como os
olhos inteligentes das amadas: e todas elas contemplam mudamente a infinita
vastidão do Mar, aqui e além coberta
de um véu fosforescente de ardentia. As vagas marulham voluptuosamente.
Raras velas
bojam ou branquejam nos mastros e vergas do navio negreiro: e como, para o
alto, os cabos se fundem na negrura da noite, dir-se-ia estranhamente despojado
dos topes de seu aparelho. No entanto, embaixo, num recanto do convés, pequenas
lanternas reluzem — e a música e a dança ressurgem vivamente.
O Piloto
raspa com o arco as cordas de um violino, o cozinheiro sopra numa flauta, o
grumete rufa um tambor, o médico faz vibrar um pistão como se fora um clarim.
Em torno deles, cem pretos mais ou menos — homens e mulheres — em gritos de
alegria, saltam e giram como loucos. E a cada movimento dos corpos, negros e
nus, as algemas retinem, em cadência.
As longas
tábuas do convés estremecem aos pinchos tumultuosos dos pobres cativos. E no
imenso círculo em torvelinho, veem-se belas negras corpulentas, envolvendo com
os seus braços, grossos e roliços, o tronco hercúleo do companheiro. De vez em
quando, através da grossa algazarra de todos, passa um coro de gemidos...
O contramestre
é o mestre-sala: ele estimula, de calabrote em punho, os dançadores já
fatigados e os excita a alegria.
E trá-trá-trá!... Dum-dum-dum!...
Do seio
fundo das ondas, os monstros marinhos, despertos do seu estúpido sono, acodem
ao barulho. São em geral tubarões, centenas de tubarões, que, ainda
entorpecidos; vêm reluzir à flor d'água, ao colorido clarão das lanternas e
faróis, erguendo pasmadamente, para as bordas do navio e para a cena que no
convés se desenrola, os seus grandes olhos de vidro. E, percebendo desde logo
que a hora do seu almoço não chegou ainda, com a habitual e feroz voracidade,
escancaram a boca até a fundo, mostrando as suas gigantescas maxilas, onde
sinistramente alvejam, como estranhas lâminas de serras, fileiras de dentes
agudos, enormes, terríveis.
E trá-trá-trá!... Dum-dum-dum!...
A dança e a
música não cessam um instante: e os tubarões, volteando sempre em torno ao
casco do brigue, mordem a cauda, impacientes. Penso que eles não amam a música,
como alguns dos seus iguais. Por isso, muito bem disse um grande poeta inglês:
“Não te fies nos animais que não amam a música!”
E trá-trá-trá!... Dum-dum-dum!...
A dança
prossegue sempre. Mynher van Koek,
que assiste sentado junto ao mastro grande, olha, preocupado e pensativo, a “preciosa
mercadoria” que ali se agita loucamente. De repente ergue os olhos ao céu e,
pondo as mãos, implora:
— Por Jesus,
Senhor, poupai a vida aos pescadores de “pele negra”! Se eles acaso vos
ofendem, sabeis perfeitamente que é porque são mais estúpidos que os bois.
Poupai-lhes a vida, em nome de Jesus, que morreu por todos nós, pois se me não
for dado chegar ao Rio de janeiro com trezentos negros, ao menos, hei de fazer
um mau negócio!...
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