O nababo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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De regresso de uma excursão pelos
subterrâneos da alma humana, um escritor louvava, certa vez, entre as virtudes
que lá descobrira, o pecado da Vaidade. Esse defeito, na sua opinião, era o
mais vantajoso de quantos possui o Homem. Foi pela vaidade de possuir um nome
ressoante que Colombo descobriu a América. E é a Vaidade, ainda, que dá de
comer aos humildes, utilizando nas oficinas milhões de operários, que tecem a
seda, fabricam os leques, esculpem as joias. Tudo, na terra, é Vaidade, e só
Vaidade, afirma o Eclesiastes. E Pascal adianta: a Vaidade está de tal maneira
inveterada em nosso coração, que os próprios filósofos não lhe fogem ao
império: aqueles que escrevem contra a glória, querem a glória de haver bem
escrito; e aqueles que leem, querem a glória de ter lido.
Há, entretanto, um gênero de
Vaidade que não tem, sequer, essa atenuante: é a do pavão que se espaneja sem
cauda, a que repousa na mentira, na falsidade, no ridículo, a que procura, em
suma, viver dos juros sem um risco evidente do capital, e da qual é sacerdote,
no Rio de janeiro, o conhecido "gentleman" Dr. Alfredo Pereira da
Cunha.
Modesto de posses, vivendo de um
emprego que lhe dá dificilmente para as despesas imprescindíveis, esse meu
jovem amigo tem uma fraqueza: pertencer ao número dos cavalheiros
irrepreensivelmente elegantes, equiparando os seus coletes aos do Dr.
Villaboim, as suas gravatas às do Dr. Darcy, os seus colarinhos aos do Dr.
Galeno Martins, as suas botinas às do Dr. Arnaldo Guinle, os seus ternos aos do
desembargador Ataulfo, as suas camisas às do Dr. Humberto Gotuzzo, e, até o seu
monóculo de vidro ordinário, ao monóculo de cristal puro do eminente Dr. Leão
Velloso. E tudo isso com a circunstância de atribuir-se tudo — coletes,
gravatas, colarinhos, botinas, ternos, camisas, monóculos, — em quantidades
verdadeiramente atordoantes. Dessa forma da sua vaidade, há uma demonstração
curiosa, em que eu funcionei, há dias, como testemunha involuntária.
Sentados um diante do outro,
tomávamos nós, no Alvear, o nosso chá das cinco horas, quando me chamaram a
atenção, na elegância americana do meu amigo, uns arabescos em linha branca,
traçados no cós da sua calça de flanela, no intervalo dos botões destinados ao
suspensório. Curioso, apliquei melhor os óculos, e vi: era o número 846, em
algarismos feitos a agulha, como esses que encontramos na roupa ao recebê-la da
tinturaria.
— Que é isso, doutor? — indaguei.
O jovem advogado baixou os
grandes olhos negros sobre o seu busto sem colete, em que a camisa de zefir se
desfiava em alguns pontos com uma elegância de varanda de rede, e explicou, com
um sorriso superior:
— É o número da calça.
— Você tem oitocentas e quarenta
e seis calças? — estranhei, arregalando os olhos e parando a xícara a meio
caminho da boca.
O Dr. Alfredo olhou-me com
irreprimível piedade, e, lamentando intimamente a modéstia dos meus recursos,
respondeu-me, apenas, num doce insulto à minha pobreza:
— Das de flanela...
E continuou, solene, a tomar o
meu chá.
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