O molho de lenha
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Desde meia
tarde que o Manuel Felismino batia o campo atrás do Russilho, um belo animal que trocara havia semanas nas Aranhas,
pelo seu Alazão. Em camisa, chapéu de
palha à nuca, calças arregaçadas, uma corda de embira no braço, e numa das mãos
um punhado de milho verde que agitava para os animais pastando ao longe,
percorrera tudo embalde para os lados de baixo — o rio do Brás, a Tiririca, as Piçarras.
Tomava para cima, em direitura às Coivaras, quando avistou três cavalos
galopando à distância, para a banda dos Morretes, parecendo-lhe um deles o Russilho. Botou-se então a toda
disparada, gritando:
— Tome! Tome!... Tome! Tome!...
Da roça do
Juca Isidro, porém, avistou já os animais cortando a passo para as picadas e,
atravessando o caminho do Salvador, foi atacá-los junto ao Capão do Meio.
Corria como um desesperado, quando de repente meteu um estrepe no pé, que o fez
estacar num berro de dor. Os cavalos, agora numa desfilada, ganhavam o Campo da
Coroa, desaparecendo por entre as grandes macegas de riachão.
O Manuel,
todo coxo, sem poder firmar-se sobre o calcanhar ferido, arrastou-se
penosamente para um velho tronco de árvore que encontrou. Em seguida, cruzando
uma das pernas, com a ponta da faca que trazia à cinta começou a extrair,
desjeitosamente, magoando-se, a lasca aguda de pau. Mas, numa pressa e nervoso,
vendo que não pegaria mais o cavalo, quando tinha de ir sem falta à cidade pela
madrugada, praguejava furioso —
e seus dedos
grossos e calosos tremiam, retardando a operação.
— Agora, ficava ainda a farinha por vender! refletia. E tão
necessitado que estava! Só pelo diabo! Mal andara em se desfazer do Alazão, ao menos não saltava cercas como
aquela peste do Russilho, que não
parava no pasto. Todas as noites era aquilo, desde que o trocara...
E continuava
a esfuracar o calcanhar, dolorosamente, com um manejo pesado e áspero de
operador rude, quando lhe arrebatou a atenção uma vaga algazarra erguendo-se
dentro do mato. Deteve-se, escutando. De instante a instante, risadas límpidas,
frescas, cristalinas, esfuziavam, esparsas, no seio oculto das ramagens:
subitamente cessavam, e só se ouvia o ramalhar das folhas às rajadas do vento:
logo após voltavam, entrecortadas de gritinhos vivos, alegres como um trinar de
pássaros: outra vez emudeciam, e se ouvia então um contínuo e sonoro quebrar de
galhos secos...
De cabeça
erguida, investigando as sebes espessas, cercando o pequeno descampado, a ver
se descortinava alguém, o Manuel murmurou:
— Ah! são as raparigas que andam à lenha, talvez tivessem visto
passar os cavalos...
Inclinando
de novo o pescoço, apressava-se, às voltas com o pé, já sangrando sob o
escarafunchamento brutal da lâmina de aço, brandida rudemente. E súbito,
arrancando o estrepe ensopado em sangue, que arrojou para longe, exclamou num
alívio, respirando alto:
— Arre! Vai—te, estupor!
Ergueu-se,
procurando alguma coisa para envolver a ferida, de onde saía um filete de
zarcão, e dando com umas folhas de mamona à beira do mato, entre uns cipós
finos como barbante, enrolou cuidadosamente o pé experimentando-o sobre o chão.
E, tomando a corda e as folhas de milhos que atirara à grama, internou-se pelas
ramarias. Mas as raparigas já estavam longe, porque ele não as encontrou, nem
as ouviu mais...
Varejada
toda a mata, caiu na planície imensa, do outro lado, onde o campo tem uma
amplidão de oceano. O sol, no poente, barrava o céu de lacre. E para cima, o
Azul, arqueando-se magnificamente sobre os campos, tinha uma nitidez imaculada.
Ao norte e ao sul, as montanhas, recortando-se no horizonte de uma cor
esmaecida e saudosa de esmeralda, retinham ainda, sobre as altas encostas,
ângulos louros de luz, lembrando uma terra de milho maduro. Embaixo, o gado
aglomerava-se, aqui e ali, sob as grandes árvores isoladas ou junto às orlas
dos capões, erguendo-se como ilhas, em jatos colossais de folhas no meio da
planura verde. Num recanto além, para onde o campo abre, o mar, muito manso,
com um clarão baço de espelho. Entre o mar e a planície, os cômoros, em linhas
paralelas, como gigantescas coxilhas de giz em pó. Ao longe, na estrada da
Cachoeira, um carro chiando monotonamente, carregado de lenha. E cortando o ar,
para as bandas da Rua Velha, o som doce e melancólico de uma cantiga.
O rapaz
quedou-se, um momento, a contemplar o campo, numa imensa nostalgia, sob o
crepúsculo golfando sangue. Distante, nas planícies do Bom Jesus, uma manada de
cavalos seguia lentamente para o Campo da Coroa. Então meteu-se de novo a
caminho, costeando o mato da Caeira, que percorria toda a frente do campo, do
lado da freguesia. Mas, muito preocupado com as raparigas, pois lhe viera de
repente à lembrança a Chiquinha Dutra, por quem era louco, e que decerto andava
também entre elas, parecia sentir, de vez em quando, como um meigo rumor de
risadas. Parava por instantes, mas só ouvia o ciciar queixoso da aragem nas
folhas. Depois punha-se de novo a toda, com o seu tome! tome! vibrante. Ao chegar à estrada real, cortando a mata
para o interior desde a beira mar estacou de chofre, porquanto a manada tomara
outra direção, e ele ouvia, agora, distintamente, para os lados de cima,
estalarem as risadas.
Eram as
raparigas retirando, com os seus molhos de lenha — as filhas do Manuel Bernardino, a Chiquinha
Dutra e as da Luíza Théa. Tinham ouvido a voz dele atravessando o campo, e como
estavam sozinhas, temendo a presença de um homem sob as sebes fechadas, saíram
logo para a estrada. Mas a Chiquinha ficara ainda lá dentro, num pastinho, a
amarrar o seu molho, e elas, inquietas, muito assustadas, com vontade de
correr, entraram a chamar:
— Ó Chiquinha! Ó Chiquinha! Apressa-te, rapariga! Olha que aí vem o
Manuel Felismino! Corre, mulher, senão ele nos apanha...
E sentiam,
avançando sempre para elas, ao longo da estrada, aquele grito contínuo, dolente
e saudoso, como um chamamento em vão:
— Tome! tome!...
Tome! tome!...
Mas a outra
tardava, e as raparigas entreolhavam-se incessantemente, aflitas, os olhos
muito abertos, acesos de temor, esquadrinhando a encruzilhada lá embaixo, de
onde lhes parecia ia irromper, de súbito, o vulto grosso e possante do rapaz.
A Chiquinha,
dentro do mato, conhecera também a voz do Manuel vibrando ao longe, e ficara de
repente nervosa, atônita. Espavorida, numa atarantação, não conseguia atar o
molho, porque as achas, reunidas à pressa, atabalhoadamente, fugiam,
espalhando-se, sob os seus dedos trêmulos. Quando ouviu os chamados das amigas,
teve um desatino: sem poder mais amarrar a rebelde lenha, abarcou o feixe
inteiro com os braços e, num último esforço, precipitado, deitando-o às costas,
largou a correr. Mas, desorientada, cheia de perturbação, em vez de tomar para
a estrada, enfiou pelo carreiro da Estiva, e nunca mais encontrou as outras
que, sem a ouvirem, e desconfiadas da tardança, já haviam rompido a caminhar a
toda...
O Manuel
Felismino, não ouvindo mais as risadas, detivera a marcha junto a uma grande
figueira, que sombreava a estrada com a sua linda e gigantesca umbela verde de
folhas. Aí entrou a considerar para que lado teriam tomado as raparigas, quando
se lembrou de repente de ir até a Estiva. Talvez andassem por lá!
Antes de retomar o caminho, porém, para não dar mais passadas em
vão, resolveu subir a árvore, de cujo cimo se descortinava tudo para aquelas
bandas; e mal galgara os primeiros galhos, planando já acima dos arbustos em
torno, o pasto da Roça de Baixo se lhe estendera à vista, muito verde ainda à
luz fria e cinzenta da tarde. Então, esticando-se todo para a frente, agarrado
à extremidade de um ramo, lançou um olhar para além envolvendo a paisagem
inteira na sua grande visão. De repente, viu surgir na fita branca de um
estreito carreiro uma saia de chita vermelha, cujo corpete desaparecia sob um
molho de lenha. E fixando o vulto por instantes exclamou ruidosamente:
— A Chiquinha! A Chiquinha!
Imediatamente
jogou-se tronco abaixo e rompeu a correr naquela direção.
A rapariga,
agora, morta de cansaço, as pernas trêmulas, as costas a doerem-lhe, parara
esbaforida: sentara-se, ofegante, sobre a lenha que arrojara ao chão, olhando a
crescente sombra invadindo os maciços de folhagem e a superfície reluzente de
um banhado ao pé, onde parecia ficarem congelados, numa placa polida de
estanho, os últimos clarões do poente... Mas a agitação em que estava e os
sustos contínuos, com a ameaça aterradora da noite a cair, levaram-na logo a
erguer-se. Tentava juntar de novo a lenha, que se esparramara sobre o capim,
quando sentiu um rumor mais forte nas folhas. E, com um brilho louco nos olhos,
espavorida, desvairada, deitou a fugir, abandonando tudo, rasgando-se e
arranhando-se toda pelas sebes do caminho. Corria numa alucinação, como
perseguida, os cabelos no ar, aos gritos...
Ao varar a
Estiva, o Manuel já não a via mais, encontrando unicamente o molho de lenha,
abandonado no chão. Tremia também, agora, ouvindo a repercussão nostálgica daqueles
gritos, ecoando pelas matas, abalando, perturbando a doçura melancólica das ave-marias. Receava que fossem ouvidos
lá em cima, na freguesia. E timidamente, num temor ingênuo de alma casta e
primitiva, arrependido de ter seguido a rapariga — teve subitamente um movimento de fuga com medo de que alguém
acudisse. Mas vendo o molho de lenha, ali de rojo sobre as ervas, susteve-se,
refletindo. E, enternecido, pensava na falta que aquela lenha não faria na casa
da tia Sebastiana, a mãe da Chiquinha, que quase não se podia mover, paralítica
das pernas, havia anos, numa viuvez desolada. A filha é que lhe fazia tudo, com
a sua robustez de novilha — plantava a
roça, acarretava a água e a lenha, desde menina, numa tarefa penosíssima,
sempre alegre, entretanto, com o seu lindo rosto rosado e os cativantes olhos
magníficos.
— Mas a culpa era dela! exclamava, numa emoção íntima, os olhos rasos
d'água. Sempre a fugir dele, a arisca! Nunca se vira uma coisa assim! Havia
quase um ano que era aquilo! Ele sempre a afagava, a segui-la, numa ternura de
cão; ela sempre a repeli-lo, com um desprezo esmagador! Já no outro dia, na
fonte, quando se lhe aproximara, pedindo-lhe que o ouvisse, porque já não podia
mais — ela
voltara-lhe as costas desdenhosamente, fugindo! Uma noite, no engenho do
Marcelino, brincando o Tempo-será, despedira-se
só porque ele aparecera! Ah! era horrível! Mas ele ia mostrar-lhe agora o mal
que lhe queria...
Então,
amarrando a lenha e pegando-a às costas, começou a caminhar. Muito feliz, com
aquela carga amada onde ela deixara como o perfume das suas carnes virgens que
ele sorvia arrebatado, rompeu a cantar.
Anoitecia.
Os furos de alfinete das estrelas começavam a reluzir, cor de prata, no céu
negro e macio. Na encosta escura, aqui e além, lumes ardiam, nostalgicamente,
entre a verdura. E pelas moitas altas da estrada, o cri-cri fino e metálico dos
grilos.
Chegando ao
terreiro, o Manuel, sem ser pressentido, atravessou para os fundos, indo
depositar a lenha de encontro à parede da cozinha, onde flamejava o braseiro.
Por uma fresta, lobrigou a Chiquinha fazendo a ceia, agachada no chão, junto às
chamas vermelhas, enquanto a mãe, muito magra e nodosa como uma velha palmeira,
cruzada sobre um roto pedaço de esteira, fiava o gravatá rodando destramente o fuso nos dedos. Ali ficou
longas horas, a olhar ternamente aquele recanto de lar, doce e humilde, ao qual
queria bem pertencer...
No outro
dia, pela manhã, a Chiquinha Dutra teve uma grande surpresa, ao deparar com o
molho de lenha no terreiro. Calculou logo que tinha sido o Manuel, e, pela vez
primeira, ficou pensativa, num enternecimento, num enlevo, invocando o nome
dele. Perdia-se num tropel de recordações. Via-o, pela imaginação, aproximar-se
dela, terno, sincero e bom, implorando-lhe ansiosamente o seu amor, numa voz
meiga o trêmula, acariciadora, como no dia em que lhe apareceu junto às pedras
da fonte. Mas já não fugia, fascinada e tonta, presa à luz viva dos seus olhos
penetrando-lhe o coração. E concluía, meigamente, numa grande piedade, os olhos
cheios de pranto:
— Que devia corresponder-lhe... Sim! corresponder-lhe, entregando-lhe
as sua alma! E ser só dele, devotadamente, e para sempre!...
E,
intensamente abalada por essas reflexões, na sinceridade e na emoção
profundíssima do seu primeiro afeto, entrou em casa soluçando...
Daí por
diante, todas as tardes, quando ele passava da rede, ela ia esperá-lo à
porteira, sob a fronde das velhas laranjeiras murmurosas, à hora em que o sol
cai no acaso, ao reluzir das primeiras estrelas...
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