O Moleque
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Reclus, na sua Geografia Universal tratando do Brasil,
notava a necessidade de conservarmos os nomes tupis dos lugares de uma terra.
Têm eles, diz o grande geógrafo, a vantagem de possuir quase todos um sentido
claro, muito claro, nas suas palavras, exprimindo algum fato da natureza, a cor
das águas correntes, a altura, a forma ou o aspecto dos rochedos, a vegetação
ou a aridez da região. No Rio de janeiro, há de fato nomes tupis tão
eloquentes, para traduzir a forma ou o encanto dos lugares, que ficamos pasmos,
quando lhes sabemos a significação, com o poder poético, com a força de emoção
superior de que eram capazes os primitivos canibais habitantes desta região,
diante dos aspectos da natureza tão bela e singular que é a que cerca e limita
nossa cidade. Bastam os nomes da baía. Como não traduz bem a sua sedução, o seu
recato, a sua fascinação, o nome: Guanabara — seio do mar? E se o mar abriu
aqui um seio foi para nele esconder as suas águas.
— Niterói — água escondida.
Esses nomes tupis, nos acidentes
naturais das cercanias da cidade, são os documentos mais antigos que ela possui
das vidas que aqui floresceram e morreram. Edificada em um terreno que é o mais
antigo do globo, nos depósitos sedimentares das velhas regiões, até hoje não se
encontram vestígios quaisquer da vida pré-histórica. A terra é velha, mas as
vidas que viveram nela não deixaram, ao que parece, nenhum traço direto ou indireto
de sua passagem. Os mais antigos testemunhos das existências anteriores às
nossas, que por aqui passaram, são esses nomes em linguagem dos índios que
habitavam estes lugares; e são assim bem recentes, relativamente.
Há, parece, na fatalidade destas
terras, uma necessidade de não conservar impressões das sucessivas camadas de
vida que elas deviam ter presenciado o desenvolvimento e o desaparecimento.
Estes nomes tupaicos mesmo tendem a desaparecer, e todos sabem que, quando uma
turma de trabalhadores, em escavações de qualquer natureza, encontra uma
igaçaba, logo se apressam em parti-la, em destruí-la como coisa demoníaca ou
indigna de ficar entre os de hoje. A pobre talha mortuária dos tamoios é
sacrificada impiedosamente.
Frágeis eram os artefatos dos índios
e todas as suas outras obras; frágeis são também as nossas de hoje, tanto assim
que os mais antigos monumentos do Rio são de século e meio; e a cidade vai já
para o caminho dos quatrocentos anos.
O nosso granito vetusto, tão
velho quanto a terra, sobre o qual repousa a cidade, capricha em querer o
frágil, o pouco duradouro. A sua grandeza e a sua antiguidade não admitem
rivais.
Ainda hoje esse espírito do lugar
domina a construção dos nossos edifícios públicos e particulares, que estão a
rachar e a desabar, a todo instante. E como se a terra não deseje que fiquem
nela outras criações, outras vidas, senão as florestas que ela gera, e os
animais que nestas vivem.
Ela as faz brotar, apesar de
tudo, para sustentar e ostentar um instante, vidas que devem desaparecer sem
deixar vestígios. Estranho capricho...
Quer ser um recolhimento, um
lugar de repouso, de parada, para o turbilhão que arrasta a criação a
constantes mudanças nos seres vivos; mas só isto, continuando ela firme,
inabalável, gerando e recebendo vidas, mas de tal modo que as novas que vierem
não possam saber quais foram as que lhes antecederam.
Desde que as suas rochas
surgiram, quantas formas de vida ela já viu? Inúmeras, milhares; mas de nenhuma
quis guardar uma lembrança, uma relíquia, para que a Vida não acreditasse que
podia rivalizar com a sua eternidade.
Mesmo os nomes índios, como já
foi observado, se apagam, vão se apagando, para dar lugar a nomes banais de
figurões ainda mais banais, de forma que essa pequena antiguidade de quatro
séculos desaparecerá em breve, as novas denominações talvez não durem tanto.
Nenhum testemunho, dentro em
pouco, haverá das almas que eles representam, dessas consciências tamoias que
tentaram, com tais apelidos, macular a virgindade da incalculável duração da
terra. Sapopemba é já um general qualquer, e tantos outros lugares do Rio de
janeiro vão perdendo insensivelmente os seus nomes tupis.
Inhaúma é ainda dos poucos
lugares da cidade que conserva o seu primitivo nome caboclo, zombando dos
esforços dos nossos edis para apagá-lo.
E um subúrbio de gente pobre, e o
bonde que lá leva atravessa umas ruas de largura desigual, que, não se sabe por
que, ora são muito estreitas, ora muito largas, bordadas de casas e casitas sem
que nelas se depare um jardinzinho mais tratado ou se lobrigue, aos fundos, uma
horta mais viçosa. Há, porém, robustas e velhas mangueiras que protestam contra
aquele abandono da terra. Fogem para lá, sobretudo para seus morros e escuros
arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como seus avós. Nas
suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas de feitiçaria com que a
teologia da polícia implica, pois não pode admitir nas nossas almas depósitos
de crenças ancestrais. O espiritismo se mistura a eles e a sua difusão é
pasmosa. A Igreja católica unicamente não satisfaz o nosso povo humilde.
É quase abstrata para ele,
teórica. Da divindade, não dá, apesar das imagens, de água benta e outros
objetos do seu culto, nenhum sinal palpável, tangível de que ela está presente.
O padre, para o grosso do povo, não se comunica no mal com ela; mas o médium, o
feiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem nos seus transes, recebem,
entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais da terra, estão mais
perto de Deus e participam um pouco da sua eterna e imensa sabedoria.
Os médiuns que curam merecem mais
respeito e veneração que os mais famosos médicos da moda. Os seus milagres são
contados de boca em boca, e a gente de todas as condições e matizes de raça a
eles recorre nos seus desesperos de perder a saúde e ir ao encontro da Morte. O
curioso — o que era preciso estudar mais devagar — é o amálgama de tantas
crenças desencontradas a que preside a Igreja católica com os seus santos e
beatos. A feitiçaria, o espiritismo, a cartomancia e a hagiologia católica se
baralham naquelas práticas, de modo que faz parecer que de tal baralhamento de
sentimentos religiosos possa vir nascer uma grande religião, como nasceram de
semelhantes misturas as maiores religiões históricas.
Na confusão do seu pensamento
religioso, nas necessidades presentes de sua pobreza, nos seus embates morais e
dos familiares, cada uma dessas crenças atende a uma solicitação de cada uma
daquelas almas, e a cada instante de suas necessidades.
A gravidade de pensamento que
todo esse espetáculo provoca e as lembranças históricas que acodem fazem
perguntar se a terra que não tem querido guardar na sua grandeza traços das
vidas e das almas que por elas têm passado, ainda desta vez, não consentirá que
fiquem vestígios, pegadas, impressões das atuais que, nela, hoje sofrem e
mergulham, a seu modo, no Mistério que nos cerca, para esquecê-las
soturnamente; e pensa-se isto sob a luz do sol, alegre, clara, forte e alta,
que recorta no céu azul as montanhas que se alongam para tocá-lo, tal como se
vê nesse lugar de Inhaúma, antiga aldeia de índios, a serra dos Órgãos, solene,
soberba...
Numa das ruas desse humilde
arrebalde, antes trilho que mesmo rua, em que as águas cavaram sulcos
caprichosos, todo ele bordado de maricás que, quando floriam, tocavam-se de
flocos brancos, morava em um barracão dona Felismina.
O "barracão" é uma
espécie arquitetônica muito curiosa e muito especial àquelas paragens da
cidade. Não é a nossa conhecida choupana de sapê e de paredes "a
sopapos". É menos e é mais. É menos, porque em geral é menor, com muito
menos acomodações; e mais, porque a cobertura é mais civilizada; é de zinco ou
de telhas. Há duas espécies. Em uma, as paredes são feitas de tábuas; às vezes,
verdadeiramente tábuas; em outras, de pedaços de caixões. A espécie, mais
aparentada com o nosso "rancho" roceiro, possui as paredes como este:
são de taipa. Estes últimos são mais baixos e a vegetação das bordas das ruas e
caminhos os dissimula, aos olhos dos transeuntes; mas aqueles têm mais porte e
não se envergonham de ser vistos. Há alguns com dois aposentos; mas quase
sempre, tanto os de uma como de outra espécie, só possuem um. A cozinha é feita
fora, sob um telheiro tosco, um puxado no telhado da edificação, para
aproveitar o abrigo de uma das paredes da barraca; e tudo cercado do mais
desolador abandono. Se o morador cria galinhas, elas vivem soltas, dormem nas
árvores, misturam-se com as dos vizinhos e, por isso, provocam rixas violentas
entre as mulheres e maridos, quando disputam a posse dos ovos.
Por vezes, no fundo, na frente ou
aos lados deles, há uma árvore de mais vulto: um cajueiro, um mamoeiro, uma
pitangueira, uma jaqueira, uma laranjeira; mas nenhum sinal de amanho do
terreno, de tentativa de cultura, a não ser um canteirozinho com uns pés de
manjericão ou alecrim. Isto às vezes; e, às vezes também, uma touceira de
bananeira.
A guaxima cresce, e o capim, e a
vassourinha, e o carrapicho e outros arbustos silvestres e tenazes.
O barracão de dona Felismina era
de um só aposento, mas o da vizinha, dona Emerenciana, tinha dous. Eram ambos
da primeira espécie. Dona Emerenciana era casada com o senhora Romualdo,
servente ou coisa que o valha em uma dependência da grande oficina do Trajano.
Era preta como dona Felismina e honesta como ela. Defronte ficava a residência
da Antônia, uma rapariga branca, com dois filhos pequenos, sempre sujos e
rotos. A sua residência era mais modesta: as paredes do seu barraco eram de
taipa.
A vizinhança, ao mesmo tempo que
falava dela, tinha-lhe piedade:
— Coitada! Uma desgraçada! Uma
perdida!
Era bem nova ela, mas fanada pelo
sofrimento e pela miséria. Com os seus vinte e poucos anos de idade, de boas
feições, mesmo delicadas, a sua história devia ser a triste história de todas
essas raparigas por aí...
Mal comendo, ela e os filhos; mal
tendo com que se cobrir, todas as manhãs, quando saía a comprar um pouco de
café e açúcar, na venda do Antunes, e, na padaria do Camargo, um pão — que lhe
teria custado, quem sabe! que profunda provação no seu pudor de mulher, para
ganhá-lo — não se esquecia nunca de colher pelo caminho uns
"boas-noites", umas flores de melão-de-são-caetano, de pinhão, de
quaresma, de manacás, de maricás — o que encontrasse – para enfeitar-se ou
trazê-las nas mãos, em ramilhete.
Todos da rua dos Maricás — era
este o nome daquele trilho de Inhaúma — conheciam-lhe a vida, mas com a piedade
e compaixão próprias à ternura do coração do povo humilde pela desgraça,
tratavam-na como outra fosse ela e a socorriam nas suas horas de maiores aflições.
Só o Antunes, o da venda, com o seu empedernido coração de futuro grande
burguês, é que dizia, se lhe perguntavam quem era:
— Uma vagabunda.
Dona Felismina gozava de toda a
consideração nas cercanias e até de crédito, tanto no Antunes, como no Camargo
da padaria. Além de lavar para fora, tinha uma pequena pensão que lhe deixara o
marido, guarda-freios da Central, morto em um desastre. Era uma preta de
meia-idade, mas já sem atrativo algum. Tudo nela era dependurado e todas as
suas carnes, flácidas. Lavava todo o dia e todo o dia vivia preocupada com o
seu humilde mister. Ninguém lhe sabia uma falta, um desgarro qualquer, e todos
a respeitavam pela sua honra e virtude. Era das pessoas mais estimadas da ruela
e todos depositavam na humilde crioula a maior confiança. Só a Baiana tinha-a
mais. Esta, porém, era "rica". Morava em uma das poucas casas de
tijolo da rua dos Espinhos, casa que era dela. Vendedora de angu, em outros
tempos, conseguira juntar alguma coisa e adquirira aquela casita, a mais bem
tratada da rua. Tinha "homem" enquanto lhe servia; e, quando ele
vinha aborrecê-la mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito enérgica e
animosa, possuía uma piedade contida que se revelou perfeitamente numa aventura
curiosa de sua vida. Uma manhã, havia cinco ou seis anos, saindo com o seu
tabuleiro de angu, encontrou em uma calçada um embrulho um tanto grande. Arriou
o tabuleiro e foi ver o que era. Era uma criança, branca — uma menina. Deu os
passos necessários e criava a criança, que, nas imediações, era conhecida por
"Baianinha". E, ao ir às compras na venda, o caixeiro lhe dizia por
brincadeira:
— "Baianinha", tua mãe
é negra.
A pequena arrufava-se e respondia
com indignação:
— Negra é tu, "seu"
burro!
A Baiana, porém, era
"rica", estava mais distante. Dona Felismina, porém, ficava mais
próximo da vida de toda aquela gente da rua. Os seus conselhos eram ouvidos e
procurados, e os seus remédios eram aceitos como se partissem da prescrição de
um doutor. Ninguém como ela sabia dar um chá conveniente, nem aconselhar em
casos de dissídias domésticas. Detestava a feitiçaria, os bruxedos, os
macumbeiros, com as suas orgias e barulhadas; mas, inclinava-se para o
espiritismo, frequentando as sessões do "seu" Frederico, um antigo
colega do seu marido, mas branco, que morava adiante, um pouco acima. Além da
medicina de chás e tisanas, ela aconselhava àquela gente os medicamentos
homeopáticos. A beladona, o acônito, a briônia, o súlfur, eram os seus remédios
preferidos e quase sempre os tinha em casa, para o seu uso e dos outros.
Certa vez salvou um dos filhos da
Antônia de uma convulsão e esta lhe ficou tão grata que chegou a prometer que
se emendaria.
Dona Felismina morava com o seu
filho José, o Zeca, um pretinho de pele de veludo, macia de acariciar o olhar,
com a carapinha sempre aparada pelos cuidados da mão de sua mãe, e também com
as roupas sempre limpas, graças também aos cuidados dela.
Tinha todos os traços de sua
raça, os bons e os maus; e muita doçura e tristeza vaga nos pequenos olhos que
quase ficavam no mesmo plano da testa estreita.
Era-lhe este seu filho o seu
braço direito, o seu único esteio, o arrimo de sua vida com os seus nove ou dez
anos de idade. Doce, resignado, e obediente, não havia ordem de sua mãe que ele
não cumprisse religiosamente. De manhã, o seu encargo era levar e trazer a
roupa dos fregueses; e ele carregava os tabuleiros de roupa e trazia as
trouxas; sem o mais pequeno desvio de caminho. Se ia à casa do "seu"
Carvalho, ia até lá, entregava ou recebia a roupa e voltava sem fazer a menor
traquinada, a menor escapada de criança por aquelas ruas que são mais estradas
que rua mesmo. Almoçava e a mãe quase sempre precisava:
— Zeca, vai à venda e traz dois
tostões de sabão "regador".
Na venda, entre todo aquele
pessoal tão especial e curioso das vendas suburbanas: carroceiros, verdureiros,
carvoeiros, de passagens; habitues do parati, como os há na cidade de chope;
conversadores da vizinhança, gente sem ter que fazer que não se sabe como vive,
mas que vive honestamente; um ou outro degradado da sua condição anterior ou
nascimento — entre toda essa gente, Zeca era mais imperioso e gritava:
— Caixeiro, "mi" serve
já dois tostões de sabão "regador"!
Se o caixeiro estava atendendo à
dona Aninha, mulher do servente dos telégrafos, Fortes, e não vinha atendê-lo
logo, Zeca insistia, fingindo-se irritado:
— "Mi despache",
caixeiro! dois tostões de sabão "regador".
"Seu" Eduardo, o
caixeiro, que era bom e habituado a suportar a insolência dos pequenos que vão
às compras, fazia docemente:
— Espere, menino. Você não vê que
estou servindo, aqui, a dona Aninha!
A mãe tinha vontade de pô-lo no
colégio; ela sentia a necessidade disso todas às vezes que era obrigada a somar
os róis. Não sabendo ler, escrever e contar, tinha que pedir a "seu" Frederico,
aquele "branco" que fora colega de seu marido. Mas, pondo-o no
colégio, quem havia de levar-lhe e trazer-lhe a roupa? Quem havia de fazer-lhe
as compras?
À tarde, Zeca descansava,
brincava com as crianças do lugar um pouco; mas, ao anoitecer, já estava perto
da mãe que remendava a roupa dos fregueses, à luz do lampião de querosene, cuja
fumaça enegrecia o zinco do teto do barracão.
Se bem fosse com a mãe todos os
meses receber a módica pensão que o pai deixara, na Caixa dos Guarda— Freios, o
seu sonho não era viver no centro da cidade, nas suas ruas brilhantes, cheias
de bondes, automóveis, carroças e gente. Zeca desprezava aquilo tudo. O seu
sonho era o Engenho de Dentro e o seu cinema. Ter dinheiro, para ir sempre a
ele, ver-lhe instantemente as "fitas" que os grandes cartazes
anunciavam e o tímpano a soar continuamente insistia no convite de vê-las.
Quando sua mãe permitia, aos domingos, com outra criança ajuizada da
vizinhança, ia até à estação, até lá, defronte do fascinante cinema. Encostava-se,
então, à grade da estrada de ferro e ficava a olhar, no alto, minutos a fio,
aqueles grandes painéis, cheios de grandes figuras, deslumbrantes na sua
cercadura de lâmpadas elétricas, como se tudo aquilo fosse uma promessa de
felicidade. Como atingiria aquilo? O céu talvez não fosse mais belo... Em cima
dos seus tamancos domingueiros, com o terno de casimira que a caridade do
coronel Castro lhe dera, e a tesoura de sua mãe adaptara a seu corpo, ele,
fascinado, não pensava senão naquele cinema brilhante de luzes e apinhado de
povo. Nem o apito dos trens o distraía e só a passagem dos bondes elétricos
aborrecia-o um pouco, por lhe tirar a vista do divertimento. Não tinha inveja
dos que entravam; o que ele queria era entrar também.
Como havia de ser uma "fita”?
As moças se moviam sob luzes? Como faziam-nas grandes, parecidas? Como
apareciam os homens tal e qual? As árvores e as ruas? E sem falar, como é que
tudo aquilo falava?
Podia ter dinheiro para ir, pois,
em geral, sempre os fregueses de sua mãe lhe davam um níquel ou outro; mas, mal
os apanhava, levava-os à mãe que sempre andava necessitada deles, para a compra
do trincal, do polvilho, do sabão e mesmo para a comida que comiam. Distraí-los
com o cinema seria feio e ingratidão para com a sua mãe. Um dia havia de ir ao
cinema, sem sacrificá-la, sem enganá-la, como mau filho. Ele não o era como o
Carlos que furtava os do próprio pai...
Zeca, por seu procedimento, pela
sua dedicação à mãe, era muito estimado de todos e todos lhe davam
gratificações, gorjetas, balas, frutas, quando ia entregar ou buscar a roupa.
Muitos se interessavam com a mãe,
para pô-lo em um recolhimento, em um asilo; ela, porém, embora quisesse vê-lo
sabendo ler, sempre objetava, e com razão, a necessidade que tinha dos seus
serviços, pois era este seu único filho o braço direito dela, seu único
auxílio, o seu único "homem".
Uma vez quase cedeu. O seu"
Castro, o coronel, empregado aposentado da alfândega, conhecido em Inhaúma pelo
seu gênio benfazejo e seu infortúnio com os filhos e filhas, viera-lhe até à
sua própria casa, até àquele barracão, naquela modesta rua, bordada de um lado
e outro de sebes de maricás e de "pinhão", e expôs-lhe a que vinha.
Dona Felismina respondeu-lhe com lágrimas nos olhos:
— Não posso, "seu"
coronel; não posso... Como hei de viver sem ele? É ele quem me ajuda... Sei bem
que é preciso aprender, saber, mas...
— Você vai lá para casa,
Felismina; e não precisa estar se matando.
Titubeou a rapariga e o velho
funcionário compreendeu, pois desde há muito já tinha compreendido, na gente de
cor, especialmente nas negras, esse amor, esse apego à casa própria, à sua
choupana, ao seu rancho, ao seu barracão — uma espécie de protesto de posse
contra a dependência da escravidão que sofreram durante séculos. Apesar da
recusa, o coronel Castro, em quem a idade e as desgraças domésticas tinham mais
enchido de bondade o seu coração naturalmente bom, nunca deixou de
interessar-se pela criança, que o penalizava excessivamente. A sua meiguice, a
sua resignação, aquele árduo trabalho diário para a sua idade eram motivos para
que o velho e tristonho aposentado sempre a olhasse com a mais extremada
simpatia. Quando o pretinho ia à sua casa levar-lhe a sua ou a roupa das
filhas, dava-lhe sempre qualquer coisa, puxava-lhe a língua, perguntava-lhe
pelas suas necessidades.
Certo dia, em começo do ano, o
pequeno Zeca chegou-lhe em casa com a fisionomia um tanto transtornada. Parecia
ter chorado e muito. O coronel, homem para quem, como disse um sábio, não havia
nada insignificante e desprezível que pudesse causar dor ou prazer à mais
humilde criatura, que não merecesse a atenção do filósofo — o coronel
interrogou-o sobre o motivo de sua mágoa.
— Foi tua mãe?
— Não, "seu" coronel.
— Que foi, então, Zeca?
O pequeno não quis dizer e não
cessava de olhar o chão, de encará-lo, de cravá-lo, de cavá-lo, de enterrar
toda a sua vida nele. Zeca estava na varanda de uma velha casa de fazenda, como
ainda as há muito por lá, varanda em parapeito e colunas, no clássico estilo
dessas velhas habitações; o coronel nela também estava lendo os jornais, na
cadeira de balanço, e só deixara a leitura quando avistou o pequeno que subia a
ladeira com o tabuleiro de roupa à cabeça.
A atitude do pequeno, a sua
recusa em confessar o motivo do seu choro e o seu todo de desalento fizeram que
o velho funcionário, já por ternura natural, já por bondosa curiosidade,
procurasse a causa da dor que feria tão profundamente aquela criança tão pobre,
tão humilde, tão desgraçada, quase miserável.
— Dize, Zeca. Dize que eu te
darei uma vestimenta de "diabinho" no Carnaval que está aí.
O pretinho levantou a cabeça e
olhou com um grande e brusco olhar de agradecimento, de comovido agradecimento
àquele velho de tão belos cabelos brancos.
Confessou; e Castro nada disse a
ninguém da humilde e ingênua confissão do pretinho Zeca.
Aproximou-se o Carnaval; e,
quando foi sábado, véspera dele, dona Felismina retirou mais cedo dos arames a
roupa branca que estivera a secar.
Atarefada com esse serviço, ela
não viu que o seu filho entrara-lhe pelo barracão adentro, sobraçando um
embrulho guizalhante e um outro, com rasgões no papel, por onde saíam
recurvados chifres e uma formidável língua vermelha. Era uma horrível máscara
de "diabo".
Dona Felismina veio para o
interior do barracão; e pôs-se a arrumar a roupa seca ou corada. Zeca,
distraído, no outro extremo do aposento, não a viu entrar e, julgando-a lá
fora, desembrulhou os apetrechos carnavalescos. Sobre a humilde e tosca mesa de
pinho estendeu uma rubra vestimenta de ganga rala e uma máscara apavorante de
olhos esbugalhados, língua retorcida e chifres agressivos, apareceu tão
amedrontadora que se o próprio diabo a visse teria medo.
A mãe, ao barulho dos guizos,
virou-se, e, vendo aquilo, ficou subitamente cheia de más suspeitas:
— Zeca, que é isso?
Uma visão dolorosa lhe chegou aos
olhos, da casa de detenção, das suas grades, dos seus muros altos... Ah! meu
Deus! Antes uma boa morte!... E repetiu ainda mais severamente:
— Que é isso, Zeca? Onde você
arranjou isso?
— Não... mamãe... não...
— Você roubou, meu filho?...
Zeca, meu filho! Pobre, sim; mas ladrão, não! Ah! meu Deus!... Onde você
arranjou isso, Zeca?
A pobre mulher quase chorava e o
pequeno, transido de medo e com a comoção diante da dor da mãe, balbuciava,
titubeava e as palavras não lhe vinham. Afinal, disse:
— Mas... mamãe... não foi
assim...
— Como foi? Diz!
— Foi "seu" Castro quem
me deu. Eu não pedi...
Dona Felismina sossegou e o
pequeno também. Passados instantes, ela perguntou com outra voz:
— Mas para que você quer isso?
Antes tivesse dado a você umas camisas... Para que essas bobagens? Isso é para
gente rica, que pode. Enfim...
— Mas, mamãe, eu aceitei, porque
precisava.
— Disto! Ninguém precisa disto!
Precisa-se de roupa e comida... Isto são tolices!
— Eu precisava, sim senhora.
— Como, você precisava?
— Não lhe contei que há meses,
diversas vezes, quando passava, para ir à casa de dona Ludovina, diante do
portão do capitão Albuquerque, os meninos gritavam: ó moleque! — ó moleque! – o
negro! — ó gibi!? Não lhe contei?
— Contou-me; e daí?
— Por isso quando o coronel me
prometeu a fantasia, eu aceitei.
— Que tem uma coisa com a outra?
— Queria amanhã passar por lã e
meter medo aos meninos que me vaiaram.
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