O Mistério da Árvore
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Esgalhada e
seca, enorme, os seus frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém se lembrava que
ela tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia séculos servia de
forca: ninguém se deitava à sua sombra e parece que nem o sol lhe dava,
estarrecida e hirta, a árvore enorme que havia séculos servia de forca.
Em frente
ficava o palácio real, construído dum bloco de pedra negra, que o mar bravo
batia, e só o rei se pusera a amá-la, pois que ela era igual à sua alma, nua e
trágica, a árvore triste que havia séculos servia de forca...
Que doença
estranha, vagarosa mas tenaz, matava o rei?... Só amava os crepúsculos, agonias
de luz, o passado, e a multidão silenciosa vinha vê-lo, ao findar da tarde, de
cabeça a escaldar encostada aos vidros das janelas, sem desejos, o olhar
perdido em quimeras, imaginários países, onde tudo são agonias, águas quietas,
espectros de árvores esgalhadas. Tudo o que era moço e vivo fugira do palácio,
porque o rei aborrecia e mandava punir a mocidade e o amor. Só o mar ainda o
prendia ou a árvore negra, desde séculos seca e estarrecida, a árvore maldita
que no seu reino servia de forca...
Pusera-se a
odiar os felizes e os amorosos, na raiva de não ser moço e forte. Às noites, no
silêncio tumular do seu palácio, nos corredores, onde os seus passos ecoavam,
tinha desesperos, torturas de não poder amar as lindas mulheres de carnes de
camélia, frias e lácteas. Erguia os braços numa súplica, sozinho, porque não
queria ver ninguém, babujava, caía no ódio à mocidade e ao amor. Fizera-se
assim invejoso e mau e por vezes já mandara matar criaturas, que se amavam...
Sucedeu que
veio a primavera e todas as árvores, ao seu hálito, estremeceram e se cobriram
de floração. Havia pequenas borboletas que nasciam do sol, pedaços de luz
materializada, e dois amorosos, vindos de países lendários, perderam-se também,
naquela terra praguenta, erma e bravia... Ela era grácil, envolta na poalha dos
seus cabelos, com risos infantis. O mendigo, apenas vestido, era feliz e esbelto,
preso no seu olhar. E assim vieram enlaçados, com a primavera, cobrindo todo o
país árido, que calcavam, de vida e de amor. As macieiras dos quintais deitavam
galhos fora dos muros e pequenas flores esvoaçavam pela sua nudez: os poentes
no mar tinham cor, púrpuras e ouro em brasa...
Só o rei no palácio
trágico vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvores lembravam-lhe
a sua miséria e enojavam-no. Queria que todo o país fosse negro e viúvo; e o amor
que ele sentia correr na terra, a morte até, que tudo transformava e enchia de
vida, lhe parecia uma abominação. Deitava-se no chão e a terra era uma noiva,
os montes, seios duros, as árvores, cabelos ao vento. Sentia-a palpitar amorosa
e, num desespero, fugia, para não pensar, sozinho no seu palácio construído de
pedra negra e cuspido pelo mar raivoso...
Ficava então
horas de olhos fitos na árvore. Como o rei ela era seca e hirta, negra, e os
seus frutos cadáveres ou corvos, a árvore trágica que havia séculos servia de
forca. Tudo à volta se transformava, amava, se cobria de floração: só ela
ficava estarrecida diante da vida e do amor.
Um dia o rei
soube que dois mendigos felizes tinham entrado no seu país e mandou-os logo
prender. Havia já noites que ele os sentira em tudo: nos espinheiros em flor,
nos sapos dos caminhos, que pareciam extáticos, nas coisas que queriam falar e
estremeciam, na noite que trazia até ao palácio murmúrios, no vento que atirava
para o castelo construído num só bloco de pedra negra, galhos de árvores
luminosos, cheinhos, dir-se-ia, de geada. Punha-se de ouvido à terra, e a terra,
a noite, o mar tinham vozes confusas, que ele entendia e o enfureciam.
Quando
vieram ao palácio, trazidos por soldados, com eles entrou um bafo procriador,
luz, sol: cheiravam a árvores, à erva e à lama dos caminhos, húmus, que traziam
pegada nos seus pés feridos. A vida rompera por aquele túmulo dentro e, pois
que iam morrer, dir-se-ia que a morte, em lugar da foice simbólica, trazia nas
mãos um galho de árvore onde batia o sol.
Raivoso, o rei
não lhes perguntou nada. Olhou-os odiento durante minutos e depois fez um gesto
aos carrascos, que logo se apoderaram deles e os arrastaram. Os mendigos sorriam,
alheados, lindos, cobertos de erva, de terra: cheiravam a árvores, a sol e à primavera.
Enlaçados, olhavam-se e parecia que eles eram, um a vida, outro o amor.
Noite negra
e o rei subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens, restos de mantos
enlameados, arrastavam-se pelo céu. A árvore estarrecida e hirta, onde os dois
mendigos haviam sido enforcados, mal se via na escuridão; mas de lá vinha um frêmito,
a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus vestidos decerto... Toda a terra lhe
parecia uma podridão a fermentar: ouvia murmúrios, gritos de amor. Se as
árvores falassem, se as árvores e as coisas dissessem tudo o que sabem!...
Encostado à
muralha passou a noite absorto. As nuvens galopavam, o grasnido dos corvos na
árvore afligia-o: só ele diante da vida ficava seco e inerte... Por que não
iria ser macieira, mendigo, húmus? transformar a sua dor em felicidade? ser
humilde e beber o sol, ir alegre na aluvião da vida? Oh como ele odiava a
mocidade, o amor, lábios que se beijam, a emoção!... Só a árvore esgalhada e
seca o prendia ainda, a árvore sinistra que no seu reino servia de forca.
Ficou até de
manhã, d’olhos postos nela, sua igual, triste e estarrecida, sem amor e sem
vida, negra como as ideias que ele tecia, da secura da sua alma, a árvore
enorme que no seu reino servia de forca... Começaram os cerros a ter tintas
violetas, as árvores a azular-se, e a forca, em que ele agora se absorvia, a
erguer-se dentre a névoa, a árvore que havia séculos, não tinha seiva,
esgalhada e negra...
Súbito ficou
petrificado, de olhar fito na árvore, que aquecida com o imortal amor dos mendigos,
tinha um galho, aquele em que os dois pendiam enforcados, cheinho de flor. Toda
de negro, hirta e má como uma praga, deitara um galho que enternecia, tão
coberto de flor, ideal noivado, a árvore enorme que havia séculos servia de
forca. Nos seus galhos tinham sido enforcados tantos desgraçados, as suas
raízes para sempre secas pelas lágrimas dos que choravam: tolhida pela dor dos
justiçados, não bebia água, nem sugava húmus. Vira passar reinados, homens,
primaveras, sem se comover, negra e arrepelada como uma mão a amaldiçoar a terra
e o castelo. Assistira a transformações do solo, a cataclismos, a tempestades e
a guerras, a ambições e a sofrimentos, e sempre morta, petrificada, negra como
uma cova — e naquela noite, aquecida com o amor de dois mendigos, a árvore
deitara um galho, um único, mas cheio de flor, adorável, como se nele se
concentrasse toda a paixão, a primavera e o noivado da terra — a árvore maldita
que desde séculos servia de forca...
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