O milagre de São Benedito
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O corpo da pobre lavadeira Maria
Jovita havia sido levado, na véspera, para o cemitério, por um carro mortuário
da Santa Casa, deixando ali, naquela situação aflitiva, aquela pretinha de
cinco anos, herdeira triste, e inocente, da sua cor e do seu destino. Atirada
para o corredor do casarão, a pequenita passara uma noite encostada à parede,
agasalhando-se como lhe era possível nos farrapos da camisinha de riscado
grosseiro; uma vizinha de quarto condoeu-se, porém, da sua sorte, sendo a
pretinha recolhida, então, por misericórdia, como um cão sem préstimo que se
apanhasse piedosamente na rua.
Dois dias após a sua orfandade,
era o dia dos mortos, como o de hoje. E como toda a gente, na casa de cômodos,
se encaminhasse para o cemitério, em visita aos seus defuntos não esquecidos, a
pequenita Carlota acompanhou-os, ferindo os pés descalços no pedrouço do
calçamento, e recebendo na carapinha descoberta, enroscada no couro da cabeça,
toda a inclemência daquele horrível sol de verão. Chegada ao cemitério,
perguntou a negrinha, medrosa:
— Onde está minha mãe?
As pessoas que tinham ido ao
enterro da Maria Jovita indicaram-lhe um monte de terra fresca, molhada ainda,
à cabeceira da qual a pequena se ajoelhou, juntando, numa prece fervente, os
dois carvãozinhos das mãos. E estava ela sozinha, nessa postura, no silêncio
daquela quadra abandonada, destinada aos humildes, aos desamparados, aos
náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma voz, que a chamava:
— Carlotinha?
A pretinha voltou-se, espantada,
e sorriu, enxugando os olhos úmidos com as costas das mãozinhas encarvoadas:
atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com doçura, com meiguice, estava, em
ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a mesma cor, a mesma aureola e o
mesmo burel, a imagem do senhor São Benedito, que sua mãe, quando viva, possuía
no quarto, no oratório de uma pequena caixa de papelão!
— Meu São Benedito!... — gemeu a
pequena, atirando-se ao solo, e beijando-lhe, comovida, a fímbria do manto
escuro.
E ia juntar as mãos para rezar,
quando o santo lhe ordenou, paternal:
— Carlotinha, junta estas pedras.
A pretinha arrepanhou quanto pôde
as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a apanhar, um por um, os seixos miúdos
que havia pelo chão, entre as sepulturas sem nome. E assim que enchia o regaço,
despejava os calhaus, a mandado do santo, sobre o monte de terra que
assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que sua pobre mãe dormia para
sempre.
De repente, cansadinha já daquela
faina, a pretinha ouviu chamar, de longe, pelo seu nome:
— Carlota?
E como não respondesse, de
fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram à sua procura, até que,
encontrando-a, recuaram, maravilhadas.
Diante da pretinha, que orava, de
joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita, um simples cômoro de areia,
desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas!
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