O meu Carnaval
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Mas foste mesmo recrutado?
— Fui; e comi fogo que não foi
graça.
— Como foi a história?
— Aproximava-se o Carnaval. Como
era meu costume, vim para a oficina, onde trabalhava. Eu morava em Santa
Alexandrina, pelas bandas do largo do Rio Comprido.
Ao chegar à oficina, na rua dos
Inválidos, o mestre me disse: “Valentim, você hoje tem um serviço externo. Você
vai até Caxambi, no Méier, para assentar as caixas-d’água de um prédio novo”.
Deu-me o dinheiro das passagens e parti. Conhecia aquela zona e, a fim de
poupar níqueis, desprezei o bonde e fui a pé. Passava eu por uma rua
transversal à Imperial, quando fui abordado por três ou quatro tipos fardados,
do mais curioso aspecto. Eram de diversas cores, formando uma escolta, cujo
comandante, um cabo, era um preto. E que preto engraçado! Desengonçado, pernas
compridas e arqueadas, pés espalhados — era mesmo um macaco. A farda, blusa e
calça, estava toda pingada; o cinturão subira-lhe até quase ao peito... Enfim,
era um verdadeiro pagodes, um “Judas”.
— Que é que eles te disseram?
— O cabo veio direito a mim e
perguntou-me com toda a empáfia: “Onde é que você vai?”. Disse-lhe; mas a feroz
autoridade parecia ter implicado comigo, tanto que me intimou: “Você vai à
presença do senhor capitão Lulu”. “Mas não fiz nada”, objetei. Ele foi
inabalável e não quis atender os meus rogos. Chorei, roguei, mas nada! Num dado
momento, um dos soldados disse: “Seu cabo está com muitos luxos. Se fosse
comigo, esse paisano ia já”. E fez menção de desembainhar um enorme sabre de
cavalaria que tinha à cinta.
— Mas que soldados eram estes?
— Não estás vendo logo? Eram
guardas nacionais.
— Percebo. Foste?
— Fui. Que remédio?
— Que te fizeram?
— Vou contar-te tim-tim por
tim-tim. Levaram-me à presença do oficial. Era um mulato forte, simpático, e o
seria intensamente se não fosse a sua presunção e pernosticidade. Era assim o
capitão Lulu. Muito apurado no seu uniforme, disse-me num tom imperativo: “Você
é um reles desertor. É um ignóbil brasileiro que recusa servir a sua pátria”.
Objetei-lhe cheio de susto: “Mas, senhor capitão, nunca fui soldado, como posso
ser desertor?”. O capitão Lulu não respondeu diretamente à minha interrogativa,
mas perguntou-me: “Como é que você se chama?”. Disse-lhe. Indagou ainda: “Onde
é que você mora?”. Indiquei: “Rua tal, em Santa Alexandrina”. Isto pareceu-lhe
contrariar; mas nada disse. Pôs-se a escriturar num livro e, por fim, falou-me:
“Encontrei os seus assentamentos. Você está há muito tempo qualificado neste
batalhão — 01.723.436, regimento de cavalaria da Guarda Nacional. Apesar de
reiteradas intimações, você não se tem apresentado. Está preso disciplinarmente
por oito dias”. Fiquei tonto, atordoado: “Mas senhor”, fiz eu, a tremer.
“Cabo”, gritou o Lulu, “cumpra as ordens. Já sabe!”
— Puseram-te na cadeia?
— Não. Revistaram-me, tiraram-me
as ferramentas e o dinheiro que levava. Isto tudo na presença do marcial Lulu.
Quando este viu os cobres, gritou: “Dá cá! Esses cobres vão para a caixa do
regimento”. Após o quê, levaram-me para um outro compartimento, onde me fizeram
despir a roupa e vestir uma calça e blusa do uniforme. Das peças que lá havia,
a única blusa que me chegava tinha as divisas de cabo. Não quiseram arrancá-las
e fui feito cabo de esquadra. Isto não impediu, porém, que me pusessem em
serviço árduo.
— Qual foi?
— Meteram-me uma enxada na mão e
fizeram-me capinar a chácara durante quase oito dias, passando fome.
— Como?
— A comida era café ralo e pão
duro, pela manhã; e, às duas horas, um ensopado de mamão verde, muito malfeito,
no qual encontrar uma hastilha de carne-seca era uma raridade de fazer alegria
até chorar. Na sexta-feira que precedia o sábado, véspera do Carnaval,
descansei. Ordenaram-me que lavasse a farda e a roupa branca, o que fiz
vestindo em cima do corpo a fatiota com que fora preso. Mandaram passar a roupa
lavada a ferro; e, no sábado, ordenaram-me que a envergasse e fosse à presença
do comandante. Apresentei-me, fiz a continência que me haviam ensinado e
esperei as ordens. O Lulu disse para o superior: “Está aí coronel, o desertor
que capturei”. O comandante, recostado na cadeira, acariciou o ventre
proeminente com as duas mãos e disse com sotaque italiano: “Que vai ele fare?”.
O capitão Lulu respondeu: “Vai ser minha ordenança, no patrulhamento do
Carnaval”. O coronel ítalo-brasileiro só se limitou a dizer: “Bene!”. À tarde,
no sábado, Lulu, antes de sairmos, mandou-me chamar e aconselhou-me: “Você me
parece boa pessoa, disciplinada. Procede muito bem. ‘A submissão é a base do
aperfeiçoamento’, disse Victor Hugo.346 Se sou oficial, se cheguei à posição em
que estou, devo não só ao meu esforço, como também a ser obediente aos meus
superiores. Você veio, acompanhou-me; porte-se bem que não terá de
arrepender-se”.
— O que era esse tipo, além de
guarda nacional?
— Era servente do Senado.
— Que magnata!
— Não te rias. À hora marcada,
saímos, eu e Lulu, para a ronda. Deu-me cinco mil-réis, para despesas; mas não
os pude gastar em uma feijoada, porque o aguerrido Lulu não me dava tempo.
Andamos pelas ruas e, à noite, fomos aos clubes, onde pude beber e comer à
vontade. No domingo foi a mesma coisa e já tinha ganho a intimidade de Lulu, a
ponto de bebermos os nossos calistos juntos. Na segunda-feira, deu-me licença
de ir até em casa; e eu que já estava ensoberbado de ser guarda nacional, fui
de farda, facão e tudo! Quando cheguei ao largo do Rio Comprido,347 saltei para
tomar alguma coisa. Topei logo com um conhecido que, surpreendido e cheio de
espanto, me disse: “Valentim! Que é isso? Você pode ser ‘pegado’!”. “Por quê?”
“Ninguém se pode fantasiar com os trajes militares do país.” Mal tinha dito
isto, quando fui preso imediatamente por um polícia que me levou à delegacia
onde não me quiseram ouvir e me meteram no xadrez até Quarta-feira de Cinzas.
Está em que deu a Guarda Nacional e como foi o meu Carnaval, naquele ano.
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