O Machete
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Inácio Ramos contava apenas dez anos quando
manifestou decidida vocação musical. Seu pai, músico da imperial capela,
ensinou-lhe os primeiros rudimentos da sua arte, de envolta com os da gramática
de que pouco sabia. Era um pobre artista cujo único mérito estava na voz de
tenor e na arte com que executava a música sacra. Inácio, conseguintemente,
aprendeu melhor a música do que a língua, e aos quinze anos sabia mais dos
bemóis que dos verbos. Ainda assim sabia quanto bastava para ler a história da
música e dos grandes mestres. A leitura seduziu-o ainda mais; atirou-se o rapaz
com todas as forças da alma à arte do seu coração, e ficou dentro de pouco
tempo um rabequista de primeira categoria.
A rabeca foi o primeiro instrumento escolhido
por ele, como o que melhor podia corresponder às sensações de sua alma. Não o
satisfazia, entretanto, e ele sonhava alguma coisa melhor. Um dia veio ao Rio
de janeiro um velho alemão, que arrebatou o público tocando violoncelo. Inácio
foi ouvi-lo. Seu entusiasmo foi imenso; não somente a alma do artista
comunicava com a sua como lhe dera a chave do segredo que ele procurara.
Inácio nascera para o violoncelo.
Daquele dia em diante, o violoncelo foi o
sonho do artista fluminense. Aproveitando a passagem do artista germânico,
Inácio recebeu dele algumas lições, que mais tarde aproveitou quando, mediante
economias de longo tempo, conseguiu possuir o sonhado instrumento.
Já a esse tempo seu pai era morto. —
Restava-lhe sua mãe, boa e santa senhora, cuja alma parecia superior à condição
em que nascera, tão elevada tinha a concepção do belo. Inácio contava vinte
anos, uma figura artística, uns olhos cheios de vida e de futuro. Vivia de
algumas lições que dava e de alguns meios que lhe advinham das circunstâncias,
tocando ora num teatro, ora num salão, ora numa igreja. Restavam-lhe algumas
horas, que ele empregava ao estudo do violoncelo.
Havia no violoncelo uma poesia austera e
pura, uma feição melancólica e severa que casavam com a alma de Inácio Ramos. A
rabeca, que ele ainda amava como o primeiro veículo de seus sentimentos de
artista, não lhe inspirava mais o entusiasmo antigo. Passara a ser um simples
meio de vida; não a tocava com a alma, mas com as mãos; não era a sua arte, mas
o seu ofício. O violoncelo sim; para esse guardava Inácio as melhores das suas
aspirações íntimas, os sentimentos mais puros, a imaginação, o fervor, o
entusiasmo. Tocava a rabeca para os outros, o violoncelo para si, quando muito
para sua velha mãe.
Moravam ambos em lugar afastado, em um dos
recantos da cidade, alheios à sociedade que os cercava e que os não entendia.
Nas horas de lazer, tratava Inácio do querido instrumento e fazia vibrar todas
as cordas do coração, derramando as suas harmonias interiores, e fazendo chorar
a boa velha de melancolia e gosto, que ambos estes sentimentos lhe inspirava a
música do filho. Os serões caseiros quando Inácio não tinha de cumprir nenhuma
obrigação fora de casa, eram assim passados; sós os dois, com o instrumento e o
céu de permeio.
A boa velha adoeceu e morreu. Inácio sentiu o
vácuo que lhe ficava na vida. Quando o caixão, levado por meia dúzia de
artistas seus colegas, saiu da casa, Inácio viu ir ali dentro todo o passado, e
presente, e não sabia se também o futuro. Acreditou que o fosse. A noite do
enterro foi pouca para o repouso que o corpo lhe pedia depois do profundo
abalo; a seguinte porém foi a data da sua primeira composição musical. Escreveu
para o violoncelo uma elegia que não seria sublime como perfeição de arte, mas
que o era sem dúvida como inspiração pessoal. Compô-la para si; durante dois
anos ninguém a ouviu nem sequer soube dela.
A primeira vez que ele troou aquele suspiro
fúnebre foi oito dias depois de casado, um dia em que se achava a sós com a
mulher, na mesma casa em que morrera sua mãe, na mesma sala em que ambos
costumavam passar algumas horas da noite. Era a primeira vez que a mulher o
ouvia tocar violoncelo. Ele quis que a lembrança da mãe se casasse àquela
revelação que ele fazia à esposa do seu coração: vinculava de algum modo o
passado ao presente.
— Toca um pouco de violoncelo, tinha-lhe dito
a mulher duas vezes depois do consórcio; tua mãe me dizia que tocavas tão bem!
— Bem, não sei, respondia Inácio; mas tenho
satisfação em tocá-lo.
— Pois sim, desejo ouvir-te!
— Por hora, não, deixa-me contemplar-te
primeiro.
Ao cabo de oito dias, Inácio satisfez o
desejo de Carlotinha. Era de tarde, — uma tarde fria e deliciosa. O artista
travou do instrumento, empunhou o arco e as cordas gemeram ao impulso da mão
inspirada. Não via a mulher, nem o lugar, nem o instrumento sequer: via a
imagem da mãe e embebia-se todo em um mundo de harmonias celestiais. A execução
durou vinte minutos. Quando a última nota expirou nas cordas do violoncelo, o
braço do artista tombou, não de fadiga, mas porque todo o corpo cedia ao abalo
moral que a recordação e a obra lhe produziam.
— Oh! lindo! lindo! exclamou Carlotinha
levantando-se e indo ter com o marido.
***
Inácio estremeceu e olhou pasmado para a mulher. Aquela exclamação de entusiasmo destoara-lhe, em primeiro lugar porque o trecho que acabava de executar não era lindo, como ela dizia, mas severo e melancólico e depois porque, em vez de um aplauso ruidoso, ele preferia ver outro mais consentâneo com a natureza da obra, — duas lágrimas que fossem, — duas, mas exprimidas do coração, como as que naquele momento lhe sulcavam o rosto.
Seu primeiro movimento foi de despeito, —
despeito de artista, que nele dominava tudo. Pegou silencioso no instrumento e
foi pô-lo a um canto. A moça viu-lhe então as lágrimas; comoveu-se e
estendeu-lhe os braços.
Inácio apertou-a ao coração.
Carlotinha sentou-se então, com ele, ao pé da
janela, donde viam surdir no céu as primeiras estrelas. Era uma mocinha de dezessete
anos, parecendo dezenove, mais baixa que alta, rosto amorenado, olhos negros e
travessos. Aqueles olhos, expressão fiel da alma de Carlota, contrastavam com o
olhar brando e velado do marido. Os movimentos da moça eram vivos e rápidos, a
voz argentina, a palavra fácil e correntia, toda ela uma índole, mundana e
jovial. Inácio gostava de ouvi-la e vê-la; amava-a muito, e, além disso, como
que precisava às vezes daquela expressão de vida exterior para entregar-se todo
às especulações do seu espírito.
Carlota era filha de um negociante de pequena
escala, homem que trabalhou a vida toda como um mouro para morrer pobre, porque
a pouca fazenda que deixou, mal pôde chegar para satisfazer alguns empenhos.
Toda a riqueza da filha era a beleza, que a tinha, ainda que sem poesia nem
ideal. Inácio conhecera-a ainda em vida do pai, quando ela ia com este visitar
sua velha mãe; mas só a amou deveras, depois que ela ficou órfã e quando a alma
lhe pediu um afeto para suprir o que a morte lhe levara.
A moça aceitou com prazer a mão que Inácio
lhe oferecia. Casaram-se a aprazimento dos parentes da moça e das pessoas que
os conheciam a ambos. O vácuo fora preenchido.
Apesar do episódio acima narrado, os dias, as
semanas e os meses correram tecidos de ouro para o esposo artista. Carlotinha
era naturalmente faceira e amiga de brilhar; mas contentava-se com pouco, e não
se mostrava exigente nem extravagante. As posses de Inácio Ramos eram poucas;
ainda assim ele sabia dirigir a vida de modo que nem o necessário lhe faltava
nem deixava de satisfazer algum dos desejos mais modestos da moça. A sociedade
deles não era certamente dispendiosa nem vivia de ostentação; mas qualquer que
seja o centro social há nele exigências a que não podem chegar todas as bolsas.
Carlotinha vivera de festas e passatempos; a vida conjugal exigia dela hábitos
menos frívolos, e ela soube curvar-se à lei que de coração aceitara.
Demais, que há aí que verdadeiramente resista
ao amor? Os dois amavam-se; por maior que fosse o contraste entre a índole de
um e outro, ligava-os e irmanava-os o afeto verdadeiro que os aproximara. O
primeiro milagre do amor fora a aceitação por parte da moça do famoso
violoncelo. Carlotinha não experimentava decerto as sensações que o violoncelo
produzia no marido, e estava longe daquela paixão silenciosa e profunda que
vinculava Inácio Ramos ao instrumento; mas acostumara-se a ouvi-lo,
apreciava-o, e chegara a entendê-lo alguma vez.
A esposa concebeu. No dia em que o marido
ouviu esta notícia sentiu um abalo profundo; seu amor cresceu de intensidade.
— Quando o nosso filho nascer, disse ele, eu
comporei o meu segundo canto.
— O terceiro será quando eu morrer, não?
perguntou a moça com um leve tom de despeito.
— Oh! não digas isso!
Inácio Ramos compreendeu a censura da mulher;
recolheu-se durante algumas horas, e trouxe uma composição nova, a segunda que
lhe saía da alma, dedicada à esposa. A música entusiasmou Carlotinha, antes por
vaidade satisfeita do que porque verdadeiramente a penetrasse. Carlotinha
abraçou o marido com todas as forças de que podia dispor, e um beijo foi o
prêmio da inspiração. A felicidade de Inácio não podia ser maior; ele tinha
tido o que ambicionava: vida de arte, paz e ventura doméstica, e enfim
esperanças de paternidade.
— Se for menino, dizia ele à mulher,
aprenderá violoncelo; se for menina, aprenderá harpa. São os únicos
instrumentos capazes de traduzir as impressões mais sublimes do espírito.
Nasceu um menino. Esta nova criatura deu uma
feição nova ao lar doméstico. A felicidade do artista era imensa; sentiu-se com
mais força para o trabalho, e ao mesmo tempo como que se lhe apurou a
inspiração.
A prometida composição ao nascimento do filho
foi realizada e executada, não já entre ele e a mulher, mas em presença de
algumas pessoas de amizade. Inácio Ramos recusou a princípio fazê-lo; mas a
mulher alcançou dele que repartisse com estranhos aquela nova produção de um
talento. Inácio sabia que a sociedade não chegaria talvez a compreendê-lo como
ele desejava ser compreendido; todavia cedeu. Se acertara aos seus receios não
o soube ele, porque dessa vez, como das outras, não viu ninguém; viu-se e
ouviu-se a si próprio, sendo cada nota um eco das harmonias santas e elevadas
que a paternidade acordara nele.
A vida correria assim monotonamente bela, e
não valeria a pena escrevê-la, a não ser um incidente, ocorrido naquela mesma
ocasião.
A casa em que eles moravam era baixa, ainda
que assaz larga e airosa. Dois transeuntes, atraídos pelos sons do violoncelo,
aproximaram-se das janelas entrefechadas, e ouviram do lado de fora cerca de
metade da composição. Um deles, entusiasmado com a composição e a execução,
rompeu em aplausos ruidosos quando Inácio acabou, abriu violentamente as portas
da janela e curvou-se para dentro gritando.
— Bravo, artista divino!
A exclamação inesperada chamou a atenção dos
que estavam na sala; voltaram-se todos os olhos e viram duas figuras de homem,
um tranquilo, outro alvoroçado de prazer. A porta foi aberta aos dois
estranhos. O mais entusiasmado deles correu a abraçar o artista.
— Oh! alma de anjo! exclamava ele. Como é que
um artista destes está aqui escondido dos olhos do mundo?
O outro personagem fez igualmente
cumprimentos de louvor ao mestre do violoncelo; mas, como ficou dito, seus
aplausos eram menos entusiásticos; e não era difícil achar a explicação da
frieza na vulgaridade de expressão do rosto.
Estes dois personagens assim entrados na sala
eram dois amigos que o acaso ali conduzira. Eram ambos estudantes de direito,
em férias; o entusiasta, todo arte e literatura, tinha a alma cheia de música
alemã e poesia romântica, e era nada menos que um exemplar daquela falange
acadêmica fervorosa e moça animada de todas as paixões, sonhos, delírios e
efusões da geração moderna; o companheiro era apenas um espírito medíocre,
avesso a todas essas coisas, não menos que ao direito que aliás forcejava por
meter na cabeça.
Aquele chamava-se Amaral, este Barbosa.
Amaral pediu a Inácio Ramos para lá voltar
mais vezes. Voltou; o artista de coração gastava o tempo a ouvir o de profissão
fazer falar as cordas do instrumento. Eram cinco pessoas; eles, Barbosa,
Carlotinha, e a criança, o futuro violoncelista. Um dia, menos de uma semana
depois, Amaral descobriu a Inácio que o seu companheiro era músico.
— Também! exclamou o artista.
— É verdade; mas um pouco menos sublime do
que o senhor, acrescentou ele sorrindo.
— Que instrumento toca?
— Adivinhe.
— Talvez piano...
— Não.
— Flauta?
— Qual!
— É instrumento de cordas?
— É.
— Não sendo rabeca... disse Inácio olhando
como a esperar uma confirmação.
— Não é rabeca; é machete.
Inácio sorriu; e estas últimas palavras
chegaram aos ouvidos de Barbosa, que confirmou a notícia do amigo.
— Deixe estar, disse este baixo a Inácio, que
eu o hei de fazer tocar um dia. É outro gênero...
— Quando queira.
Era efetivamente outro gênero, como o leitor
facilmente compreenderá. Ali postos os quatro, numa noite da seguinte semana,
sentou-se Barbosa no centro da sala, afinou o machete e pôs em execução toda a
sua perícia. A perícia era, na verdade, grande; o instrumento é que era
pequeno. O que ele tocou não era Weber nem Mozart; era uma cantiga do tempo e
da rua, obra de ocasião. Barbosa tocou-a, não dizer com alma, mas com nervos.
Todo ele acompanhava a gradação e variações das notas; inclinava-se sobre o
instrumento, retesava o corpo, pendia a cabeça ora a um lado, ora a outro,
alçava a perna, sorria, derretia os olhos ou fechava-os nos lugares que lhe
pareciam patéticos. Ouvi-lo tocar era o menos; vê-lo era o mais. Quem somente o
ouvisse não poderia compreendê-lo.
Foi um sucesso, — um sucesso de outro gênero,
mas perigoso, porque, tão depressa Barbosa ouviu os cumprimentos de Carlotinha
e Inácio, começou segunda execução, e iria a terceira, se Amaral não
interviesse, dizendo:
— Agora o violoncelo.
O machete de Barbosa não ficou escondido
entre as quatro partes da sala de Inácio Ramos; dentro em pouco era conhecida a
forma dele no bairro em que morava o artista, e toda a sociedade deste ansiava
por ouvi-lo.
Carlotinha foi a denunciadora; ela achara
infinita graça e vida naquela outra música, e não cessava de o elogiar em toda
a parte. As famílias do lugar tinham ainda saudades de um célebre machete que
ali tocara anos antes o atual subdelegado, cujas funções elevadas não lhe
permitiram cultivar a arte. Ouvir o machete de Barbosa era reviver uma página
do passado.
— Pois eu farei com que o ouçam, dizia a
moça.
Não foi difícil.
Houve dali a pouco reunião em casa de uma
família da vizinhança. Barbosa acedeu ao convite que lhe foi feito e lá foi com
o seu instrumento. Amaral acompanhou-o.
— Não te lastimes, meu divino artista; dizia
ele a Inácio; e ajuda-me no sucesso do machete.
Riam-se os dois, e mais do que eles se ria
Barbosa, riso de triunfo e satisfação porque o sucesso não podia ser mais
completo.
— Magnífico!
— Bravo!
— Soberbo!
— Bravíssimo!
O machete foi o herói da noite. Carlota
repetia às pessoas que a cercavam:
— Não lhes dizia eu? é um portento.
— Realmente, dizia um crítico do lugar, assim
nem o Fagundes...
Fagundes era o subdelegado.
Pode-se dizer que Inácio e Amaral foram os
únicos alheios ao entusiasmo do machete. Conversavam eles, ao pé de uma janela,
dos grandes mestres e das grandes obras da arte.
— Você por que não dá um concerto? perguntou
Amaral ao artista.
— Oh! não.
— Por quê?
— Tenho medo...
— Ora, medo!
— Medo de nao agradar...
— Há de agradar por força!
— Além disso, o violoncelo está tão ligado
aos sucessos mais íntimos da minha vida, que eu o considero antes como a minha
arte doméstica...
Amaral combatia estas objeções de Inácio
Ramos; e este fazia-se cada vez mais forte nelas. A conversa foi prolongada,
repetiu-se daí a dois dias, até que no fim de uma semana, Inácio deixou-se
vencer.
— Você verá, dizia-lhe o estudante, e verá
como todo o público vai ficar delirante.
Assentou-se que o concerto seria dali a dois
meses. Inácio tocaria uma das peças já compostas por ele, e duas de dois
mestres que escolheu dentre as muitas.
Barbosa não foi dos menos entusiastas da ideia
do concerto. Ele parecia tomar agora mais interesse nos sucessos do artista,
ouvia com prazer, ao menos aparente, os serões de violoncelo, que eram duas
vezes por semana. Carlotinha propôs que os serões fossem três; mas Inácio nada
concedeu além dos dois. Aquelas noites eram passadas somente em família; e o
machete acabava muita vez o que o violoncelo começava. Era uma condescendência
para com a dona da casa e o artista! — o artista do machete.
Um dia Amaral olhou Inácio preocupado e
triste. Não quis perguntar-lhe nada; mas como a preocupação continuasse nos
dias subsequentes, não se pôde ter e interrogou-o. Inácio respondeu-lhe com
evasivas.
— Não, dizia o estudante; você tem alguma
coisa que o incomoda certamente.
— Coisa nenhuma!
E depois de um instante de silêncio:
— O que tenho é que estou arrependido do
violoncelo; se eu tivesse estudado o machete!
Amaral ouviu admirado estas palavras; depois
sorriu e abanou a cabeça. Seu entusiasmo recebera um grande abalo. A que vinha
aquele ciúme por causa do efeito diferente que os dois instrumentos tinham
produzido? Que rivalidade era aquela entre a arte e o passatempo?
— Não podias ser perfeito, dizia Amaral
consigo; tinhas por força um ponto fraco; infelizmente para ti o ponto é
ridículo.
Daí em diante os serões foram menos amiudados.
A preocupação de Inácio Ramos continuava; Amaral sentia que o seu entusiasmo ia
cada vez a menos, o entusiasmo em relação ao homem, porque bastava ouvi-lo
tocar para acordarem-se-lhe as primeiras impressões.
A melancolia de Inácio era cada vez maior. Sua
mulher só reparou nela quando absolutamente se lhe meteu pelos olhos.
— Que tens? perguntou-lhe Carlotinha.
— Nada, respondia Inácio.
— Aposto que está pensando em alguma
composição nova, disse Barbosa que dessas ocasiões estava presente.
— Talvez, respondeu Inácio; penso em fazer
uma coisa inteiramente nova; um concerto para violoncelo e machete.
— Por que não? disse Barbosa com
simplicidade. Faça isso, e veremos o efeito que há de ser delicioso.
— Eu creio que sim, murmurou Inácio.
Não houve concerto no teatro, como se havia
assentado; porque Inácio Ramos de todo se recusou. Acabaram-se as férias e os
dois estudantes voltaram para São Paulo.
— Virei vê-lo daqui a pouco, disse Amaral.
Virei até cá somente para ouvi-lo.
Efetivamente vieram os dois, sendo a viagem
anunciada por carta de ambos.
Inácio deu a notícia à mulher, que a recebeu
com alegria.
— Vêm ficar muitos dias? disse ela.
— Parece que somente três.
— Três!
— É pouco, disse Inácio; mas nas férias que
vêm, desejo aprender o machete.
Carlotinha sorriu, mas de um sorriso
acanhado, que o marido viu e guardou consigo.
Os dois estudantes foram recebidos como se
fossem de casa. Inácio e Carlotinha desfaziam-se em obséquios. Na noite do
mesmo dia, houve serão musical; só violoncelo, a instâncias de Amaral, que
dizia:
— Não profanemos a arte!
Três dias vinham eles demorar-se, mas não se
retiraram no fim deles.
— Vamos daqui a dois dias.
— O melhor é completar a semana, observou
Carlotinha.
— Pode ser.
No fim de uma semana, Amaral despediu-se e
voltou a São Paulo; Barbosa não voltou; ficara doente. A doença durou somente
dois dias, no fim dos quais ele foi visitar o violoncelista.
— Vai agora? perguntou este.
— Não, disse o acadêmico; recebi uma carta
que me obriga a ficar algum tempo.
Carlotinha ouvira alegre a notícia; o rosto
de Inácio não tinha nenhuma expressão.
Inácio não quis prosseguir nos serões
musicais, apesar de lho pedir algumas vezes Barbosa, e não quis porque, dizia
ele, não queria ficar mal com Amaral, do mesmo modo que não quereria ficar mal
com Barbosa, se fosse este o ausente.
— Nada impede, porém, concluiu o artista, que
ouçamos o seu machete.
Que tempo duraram aqueles serões de machete?
Não chegou tal notícia ao conhecimento do escritor destas linhas. O que ele
sabe apenas é que o machete deve ser instrumento triste, porque a melancolia de
Inácio tornou-se cada vez mais profunda. Seus companheiros nunca o tinham visto
imensamente alegre; contudo a diferença entre o que tinha sido e era agora
entrava pelos olhos dentro. A mudança manifestava-se até no trajar, que era
desleixado, ao contrário do que sempre fora antes. Inácio tinha grandes
silêncios, durante os quais era inútil falar-lhe, porque ele a nada respondia,
ou respondia sem compreender.
— O violoncelo há de levá-lo ao hospício,
dizia um vizinho compadecido e filósofo.
Nas férias seguintes, Amaral foi visitar o
seu amigo Inácio, logo no dia seguinte àquele em que desembarcou. Chegou
alvoroçado à casa dele; uma preta veio abri-la.
— Onde está ele? Onde está ele? perguntou
alegre e em altas vozes o estudante.
A preta desatou a chorar.
Amaral interrogou-a, mas não obtendo
resposta, ou obtendo-a intercortada de soluços, correu para o interior da casa
com a familiaridade do amigo e a liberdade que lhe dava a ocasião.
Na sala do concerto, que era nos fundos,
olhou ele Inácio Ramos, de pé, com o violoncelo nas mãos preparando-se para
tocar. Ao pé dele brincava um menino de alguns meses.
Amaral parou sem compreender nada. Inácio não
o viu entrar; empunhara o arco e tocou, — tocou como nunca, — uma elegia
plangente, que o estudante ouviu com lágrimas nos olhos. A criança, dominada ao
que parece pela música, olhava quieta para o instrumento. Durou a cena cerca de
vinte minutos.
Quando a música acabou, Amaral correu a
Inácio.
— Oh! meu divino artista! exclamou ele.
Inácio apertou-o nos braços; mas logo o
deixou e foi sentar-se numa cadeira com os olhos no chão. Amaral nada
compreendia; sentia porém que algum abalo moral se dera nele.
— Que tens? disse.
— Nada, respondeu Inácio.
E ergueu-se e tocou de novo o violoncelo. Não
acabou porém; no meio de uma arcada, interrompeu a música, e disse a Amaral:
— É bonito, não?
— Sublime! respondeu o outro.
— Não; machete é melhor.
E deixou o violoncelo, e correu a abraçar o
filho.
— Sim, meu filho, exclamava ele, hás de
aprender machete; machete é muito melhor.
— Mas que há? articulou o estudante.
— Oh! nada, disse Inácio, ela foi-se embora,
foi-se com o machete. Não quis o violoncelo, que é grave demais. Tem razão; machete
é melhor.
A alma do marido chorava mas os olhos estavam
secos. Uma hora depois enlouqueceu.
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