O Lapso
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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E vieram
todos os oficiais... e o resto do povo,
desde o
pequeno até ao grande.
E
disseram ao profeta Jeremias: Seja aceita
a nossa
súplica na tua presença
JEREM. XLII, 1, 2.
Não me perguntem pela família do Dr. Jeremias
Halma, nem o que é que ele veio fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768,
governando o conde de Azambuja, que a princípio se disse o mandara buscar; esta
versão durou pouco. Veio, ficou e morreu com o século. Posso afirmar que era
médico e holandês. Viajara muito, sabia toda a química do tempo, e mais alguma;
falava correntemente cinco ou seis línguas vivas e duas mortas. Era tão
universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro, e engendrou
uma teoria da formação dos diamantes. Não conto os melhoramentos terapêuticos e
outras muitas coisas, que o recomendam à nossa admiração. Tudo isso, sem ser
casmurro, nem orgulhoso. Ao contrário, a vida e a pessoa dele eram como a casa
que um patrício lhe arranjou na Rua do Piolho, casa singelíssima, onde ele
morreu pelo natal de 1799. Sim, o Dr. Jeremias era simples, lhano, modesto, tão
modesto que... Mas isto seria transtornar a ordem do conto. Vamos ao princípio.
No fim da Rua do Ouvidor, que ainda não era a
via dolorosa dos maridos pobres, perto da antiga Rua dos Latoeiros, morava por
esse tempo um tal Tomé Gonçalves, homem abastado, e, segundo algumas induções,
vereador da Câmara. Vereador ou não, este Tomé Gonçalves não tinha só dinheiro,
tinha também dívidas, não poucas, nem todas recentes. O descuido podia explicar
os seus atrasos, a velhacaria também; mas quem opinasse por uma ou outra dessas
interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração grave. Realmente, não
valia a pena dar-se ninguém à tarefa de escrever algumas laudas de papel para
dizer que houve, nos fins do século passado, um homem que, por velhacaria ou
desleixo, deixava de pagar aos credores. A tradição afirma que este nosso
concidadão era exato em todas as coisas, pontual nas obrigações mais vulgares,
severo e até meticuloso. A verdade é que as ordens terceiras e irmandades que
tinham a fortuna de o possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em que
usava pagar), não lhe regateavam provas de afeição e apreço; e, se é certo que
foi vereador, como tudo faz crer, pode-se jurar que o foi a contento da cidade.
Mas então?... Lá vou; nem é outra a matéria
do escrito, senão esse curioso fenômeno, cuja causa, se a conhecemos, foi
porque a descobriu o Dr. Jeremias. Em uma tarde de procissão, Tomé Gonçalves,
trajado com o hábito de uma ordem terceira, ia segurando uma das varas do
pálio, e caminhando com a placidez de um homem que não faz mal a ninguém. Nas
janelas e ruas estavam muitos dos seus credores; dois, entretanto, na esquina
do Beco das Cancelas (a procissão descia a Rua do Hospício), depois de
ajoelhados, rezados, persignados e levantados, perguntaram um ao outro, se não
era tempo de recorrer à justiça.
— Que é que me pode acontecer? dizia um
deles. Se brigar comigo, melhor; não me levará mais nada de graça. Não
brigando, não lhe posso negar o que me pedir, e na esperança de receber os
atrasados, vou fiando... Não, senhor; não pode continuar assim.
— Pela minha parte, acudiu o outro, se ainda
não fiz nada, é por causa da minha dona, que é medrosa, e entende que não devo
brigar com pessoa tão importante... Mas eu como ou bebo da importância dos
outros? E as minhas cabeleiras?
Este era um cabeleireiro da rua da Vala,
defronte da Sé, que vendera ao Tomé Gonçalves dez cabeleiras, em cinco anos,
sem lhe haver nunca um real. O outro era alfaiate, e ainda maior credor que o
primeiro. A procissão passara inteiramente; eles ficaram na esquina, ajustando
o plano de mandar os meirinhos ao Tomé Gonçalves. O cabeleireiro advertiu que
outros muitos credores só esperavam um sinal para cair em cima do devedor
remisso; e o alfaiate lembrou a conveniência de meter na conjuração o
Mata-sapateiro, que vivia desesperado. Só a ele devia o Tomé Gonçalves mais de
oitenta mil-réis. Nisso estavam, quando por trás deles ouviram uma voz, com
sotaque estrangeiro, perguntando por que motivo conspiravam contra um homem
doente. Voltaram-se, e, dando com o Dr. Jeremias, desbarretaram-se os dois
credores, tomados de profunda veneração; em seguida disseram que tanto não era
doente o devedor, que lá ia andando na procissão, muito teso, pegando uma das
varas do pálio.
— Que tem isso? interrompeu o médico; ninguém
lhes diz que está doente dos braços nem das pernas...
— Do coração? do estômago?
— Nem coração, nem estômago, respondeu o Dr.
Jeremias. E continuou, com muita doçura, que se tratava de negócios altamente
especulativos, que não podia dizer ali, na rua, nem sabia mesmo se eles
chegariam a entendê-lo. Se eu tiver de pentear uma cabeleira ou talhar um
calção — acrescentou para os não afligir, — é provável que não alcance as
regras dos seus ofícios tão úteis, tão necessários ao Estado... Eh! eh! eh!
Rindo assim, amigavelmente, cortejou-os e foi
andando. Os dois credores ficaram embasbacados. O cabeleireiro foi o primeiro
que falou, dizendo que a notícia do Dr. Jeremias não era tal que os devesse
afrouxar no propósito de cobrar as dívidas. Se até os mortos pagam, ou alguém
por eles, reflexionou o cabeleireiro, não é muito exigir aos doentes igual
obrigação. O alfaiate, invejoso da pilhéria, fê-la sua cosendo-lhe este babado:
— Pague e cure-se.
Não foi dessa opinião o Mata-sapateiro, que
entendeu haver alguma razão secreta nas palavras do Doutor Jeremias, e propôs
que primeiro se examinasse bem o que era, e depois se resolvesse o mais idôneo.
Convidaram então outros credores a um conciliábulo, no domingo próximo, em casa
de uma D. Aninha, para as bandas do Rocio, a pretexto de um batizado. A
precaução era discreta, não fazer supor ao intendente da polícia que se tratava
de alguma tenebrosa maquinação contra o Estado. Mal anoiteceu, começaram a
entrar os credores, embuçados em capotes, e, como a iluminação pública só veio
a principiar com o vice-reinado do Conde de Resende, levava cada qual uma
lanterna na mão, ao uso do tempo, dando assim ao conciliábulo um rasgo
pinturesco e teatral. Eram trinta e tantos, perto de quarenta — e não eram
todos.
A teoria de Ch. Lamb acerca da divisão do
gênero humano em duas grandes raças, é posterior ao conciliábulo do Rocio; mas
nenhum outro exemplo a demonstraria melhor. Com efeito, o ar abatido ou aflito
daqueles homens, o desespero de alguns, a preocupação de todos, estavam de
antemão provando que a teoria do fino ensaísta é verdadeira, e que das duas
grandes raças humanas, — a dos homens que emprestam, e a dos que pedem
emprestado, — a primeira contrasta pela tristeza do gesto com as maneiras
rasgadas e francas da segunda, the open,
trusting, generous manners of the other. Assim que, naquela mesma hora, o
Tomé Gonçalves, tendo voltado da procissão, regalava alguns amigos com os
vinhos e galinhas que comprara fiado; ao passo que os credores estudavam às
escondidas, com um ar desenganado e amarelo, algum meio de reaver o dinheiro
perdido.
Longo foi o debate; nenhuma opinião chegava a
concertar os espíritos. Uns inclinavam-se à demanda, outros à espera, não
poucos aceitavam o alvitre de consultar o Dr. Jeremias. Cinco ou seis
partidários deste parecer não o defendiam senão com a intenção secreta e
disfarçada de não fazer coisa nenhuma; eram os servos do medo e da esperança. O
cabeleireiro opunha-se-lhe, e perguntava que moléstia haveria que impedisse um
homem de pagar o que deve. Mas o Mata-sapateiro: — "Sr. compadre, nós não
entendemos desses negócios; lembre-se que o doutor é estrangeiro, e que nas
terras estrangeiras sabem coisas que nunca lembraram ao diabo. Em todo caso, só
perdemos algum tempo e nada mais." Venceu este parecer; deputaram o
sapateiro, o alfaiate e o cabeleireiro para entenderem-se com o Dr. Jeremias,
em nome de todos, e o conciliábulo dissolveu-se na patuscada. Terpsícore
bracejou e perneou diante deles as suas graças jucundas, e tanto bastou para
que alguns esquecessem a úlcera secreta que os roía. Eheu! fugaces... Nem mesmo
a dor é constante.
No dia seguinte o Dr. Jeremias recebeu os
três credores, entre sete e oito horas da manhã. "Entrem, entrem..."
E com o seu largo carão holandês, e o riso derramado pela boca fora, como um
vinho generoso de pipa que se rompeu, o grande médico veio em pessoa abrir-lhes
a porta. Estudava nesse momento uma cobra, morta de véspera, no morro de Santo
Antônio; mas a humanidade, costumava ele dizer, é anterior à ciência. Convidou
os três a sentarem-se nas três únicas cadeiras devolutas; a quarta era a dele;
as outras, umas cinco ou seis, estavam atulhadas de objetos de toda a casta.
Foi o Mata-sapateiro quem expôs a questão; era
dos três o que reunia maior cópia de talentos diplomáticos. Começou dizendo que
o engenho do "Sr. doutor" ia salvar da miséria uma porção de
famílias, e não seria a primeira nem a última grande obra de um médico que, não
desfazendo nos da terra, era o mais sábio de quantos cá havia desde o governo
de Gomes Freire. Os credores de Tomé Gonçalves não tinham outra esperança.
Sabendo que o "Sr. doutor" atribuía os atrasos daquele cidadão a uma
doença, tinham assentado que primeiro se tentasse a cura, antes de qualquer
recurso à justiça. A justiça ficaria para o caso de desespero. Era isto o que
vinham dizer-lhe, em nome de dezenas de credores; desejavam saber se era
verdade que, além de outros achaques humanos, havia o de não pagar as dívidas,
se era mal incurável, e, não o sendo, se as lágrimas de tantas famílias...
— Há uma doença especial, interrompeu o Dr.
Jeremias, visivelmente comovido, um lapso da memória; o Tomé Gonçalves perdeu
inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem de propósito que ele
deixa de saldar as contas; é porque esta ideia de pagar, de entregar o preço de
uma coisa, varreu-se lhe da cabeça. Conheci isto há dois meses, estando em casa
dele, quando ali foi o prior do Carmo, dizendo que ia "pagar-lhe a fineza
de uma visita". Tomé Gonçalves, apenas o prior se despediu, perguntou-me o
que era pagar; acrescentou que, alguns dias antes, um boticário lhe dissera a
mesma palavra, sem nenhum outro esclarecimento, parecendo-lhe até que já a
ouvira a outras pessoas; por ouvi-la da boca do prior, supunha ser latim.
Compreendi tudo; tinha estudado a moléstia em várias partes do mundo, e
compreendi que ele estava atacado do lapso. Foi por isso que disse outro dia a
estes dois senhores que não demandassem um homem doente.
— Mas então, aventurou o Mata, pálido, o
nosso dinheiro está completamente perdido...
— A moléstia não é incurável, disse o médico.
— Ah!
— Não é; conheço e possuo a droga curativa, e
já a empreguei em dois grandes casos: — um barbeiro, que perdera a noção do
espaço, e, à noite estendia a mão para arrancar as estrelas do céu, e uma
senhora da Catalunha, que perdera a noção do marido. O barbeiro arriscou muitas
vezes a vida, querendo sair pelas janelas mais altas das casas, como se
estivesse ao rés do chão...
— Santo Deus! exclamaram os três credores.
— É o que lhes digo, continuou placidamente o
médico. Quanto à dama catalã, a princípio confundia o marido com um licenciado
Matias, alto e fino, quando o marido era grosso e baixo; depois com um capitão,
D. Hermógenes, e, no tempo em que comecei a tratá-la com um clérigo. Em três
meses ficou boa. Chamava-se D. Agostinha.
Realmente, era uma droga miraculosa. Os três
credores estavam radiantes de esperança; tudo fazia crer que o Tomé Gonçalves
padecia do lapso, e, uma vez que a droga existia, e o médico a tinha em casa...
Ah! mas aqui pegou o carro. O Dr. Jeremias não era familiar da casa do enfermo,
embora entretivesse relações com ele; não podia ir oferecer-lhe os seus
préstimos. Tomé Gonçalves não tinha parentes que tomassem a responsabilidade de
convidar o médico, nem os credores podiam tomá-la a si. Mudos, perplexos,
consultaram-se com os olhos. Os do alfaiate, como os do cabeleireiro,
exprimiram este alvitre desesperado: cotizarem-se os credores, e, mediante uma
quantia grossa e apetitosa, convidarem o Dr. Jeremias à cura; talvez o
interesse... Mas o ilustre Mata viu o perigo de um tal propósito, porque o
doente podia não ficar bom, e a perda seria dobrada. Grande era a angústia;
tudo parecia perdido. O médico rolava entre os dedos a boceta de rapé,
esperando que eles se fossem embora, não impaciente, mas risonho. Foi então que
o Mata, como um capitão dos grandes dias, viu o ponto fraco do inimigo;
advertiu que as suas primeiras palavras tinham comovido o médico, e tornou às lágrimas
das famílias, aos filhos sem pão, porque eles não eram senão uns tristes
oficiais de ofício ou mercadores de pouca fazenda, ao passo que o Tomé
Gonçalves era rico. Sapatos, calções, capotes, xaropes, cabeleiras, tudo o que
lhes custava dinheiro, tempo e saúde... Saúde, sim, senhor; os calos de suas
mãos mostravam bem que o ofício era duro; e o alfaiate, seu amigo, que ali
estava presente, e que entisicava, às noites, à luz de uma candeia,
zás-que-darás, puxando a agulha...
Magnânimo Jeremias! Não o deixou acabar;
tinha os olhos úmidos de lágrimas. O acanho de suas maneiras era compensado
pelas expansões de um coração pio e humano. Pois, sim; ia tentar o curativo, ia
pôr a ciência ao serviço de uma causa justa. Demais, a vantagem era também e
principalmente do próprio Tomé Gonçalves, cuja fama andava abocanhada, por um
motivo em que ele tinha tanta culpa como o doido que pratica uma iniquidade.
Naturalmente, a alegria dos deputados traduziu-se em rapapés infindos e grandes
louvores aos insignes merecimentos do médico. Este cortou-lhes modestamente o
discurso, convidando-os a almoçar, obséquio que eles não aceitaram, mas
agradeceram com palavras cordialíssimas. E, na rua, quando ele já os não podia
ouvir, não se fartavam de elogiar-lhe a ciência, a bondade, a generosidade, a
delicadeza, os modos tão simples! tão naturais!
Desde esse dia começou Tomé Gonçalves a notar
a assiduidade do médico, e, não desejando outra coisa, porque lhe seria muito,
fez tudo o que lhe lembrou por atá-lo de vez aos seus penates. O lapso do
infeliz era completo; tanto a ideia de pagar, como as ideias correlatas de credor, dívida, saldo, e outras
tinham-se-lhe apagado da memória, constituindo-lhe assim um largo furo no
espírito. Temo que se me argua de comparações extraordinárias, mas o abismo de
Pascal é o que mais prontamente vem ao bico da pena. Tomé Gonçalves tinha o
abismo de Pascal, não ao lado, mas dentro de si mesmo, e tão profundo que
cabiam nele mais de sessenta credores que se debatiam lá embaixo com o ranger
de dentes da Escritura. Urgia extrair todos esses infelizes e entulhar o
buraco.
Jeremias fez crer ao doente que andava
abatido, e, para retemperá-lo, começou a aplicar-lhe a droga. Não bastava a
droga; era mister um tratamento subsidiário, porque a cura operava-se de dois
modos: — o modo geral e abstrato, restauração da ideia de pagar, com todas as
noções correlatas — era a parte confiada à droga; e o modo particular e
concreto, insinuação ou designação de uma certa dívida e de um certo credor —
era a parte do médico. Suponhamos que o credor escolhido era o sapateiro. O
médico levava o doente às lojas de sapatos, para assistir à compra e venda da
mercadoria, e ver uma e muitas vezes a ação de pagar; falava de fabricação e
venda dos sapatos no resto do mundo, cotejava os preços do calçado naquele ano
de 1768 com o que tinha trinta ou quarenta anos antes; fazia com que o
sapateiro fosse dez, vinte vezes à casa de Tomé Gonçalves levar a conta e pedir
o dinheiro, e cem outros estratagemas. Assim com o alfaiate, o cabeleireiro, o
segeiro, o boticário, um a um, levando mais tempo os primeiros, pela razão
natural de estar a doença mais arraigada, e lucrando os últimos com o trabalho
anterior, donde lhes vinha a compensação da demora.
Tudo foi pago. Não se descreve a alegria dos
credores, não se transcrevem as bênçãos com que eles encheram o nome do Dr.
Jeremias. Sim, senhor, é um grande homem, bradavam em toda a parte. Parece
coisa de feitiçaria, aventuravam as mulheres. Quanto ao Tomé Gonçalves, pasmado
de tantas dívidas velhas, não se fartava de elogiar a longanimidade dos
credores, censurando-os ao mesmo tempo pela acumulação.
— Agora, dizia-lhes, não quero contas de mais
de oito dias.
— Nós é que lhe marcaremos o tempo,
respondiam generosamente os credores.
Restava, entretanto, um credor. Esse era o
mais recente, o próprio Dr. Jeremias, pelos honorários naquele serviço
relevante. Mas, ai dele! a modéstia atou-lhe a língua. Tão expansivo era de
coração, como acanhado de maneiras; e planeou três, cinco investidas, sem chegar
a executar nada. E aliás era fácil; bastava insinuar-lhe a dívida pelo método
usado em relação à dos outros; mas seria bonito? perguntava a si mesmo; seria
decente? etc., etc. E esperava, ia esperando. Para não parecer que se lhe metia
à cara, entrou a rarear as visitas; mas o Tomé Gonçalves ia ao casebre da Rua
do Piolho, e trazia-o a jantar, a cear, a falar de coisas estrangeiras, em que
era muito curioso. Nada de pagar. Jeremias chegou a imaginar que os credores...
Mas os credores, ainda quando pudesse passar-lhes pela cabeça a ideia de
lembrar a dívida, não chegariam a fazê-lo, porque a supunham paga antes de
todas. Era o que diziam uns aos outros, entre muitas fórmulas da sabedoria
popular: — Mateus, primeiro os teus — A boa justiça começa por casa — Quem é
tolo pede a Deus que o mate, etc. Tudo falso; a verdade é que o Tomé Gonçalves,
no dia em que falecera, tinha um só credor no mundo: — o Dr. Jeremias.
Este, nos fins do século, chegara à
canonização. — "Adeus, grande homem!" dizia-lhe o Mata, ex-sapateiro,
em 1798, de dentro da sege, que o levava à missa dos carmelitas. E o outro,
curvo de velhice, melancolicamente, olhando para os bicos dos pés: — Grande
homem, mas pobre diabo.
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