O jornalista
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Acidade de Sant’Ana dos
Pescadores fora em tempos idos uma cidadezinha próspera. Situada entre o mar e
a montanha que escondia vastas vargens férteis, e muito próximo do Rio, os fazendeiros das planuras transmontanas preferiam enviar os produtos de suas lavouras, através de uma
garganta, transformada em estrada, para, por mar, trazê-los ao grande empório
da corte. O contrário faziam com as compras que aí faziam. Dessa forma, erguida
à condição de uma espécie de entreposto de uma zona até bem pouco fértil e
rica, ela cresceu e tomou ares galhardos de cidade de importância. As suas
festas de igreja eram grandiosas e atraíam fazendeiros e suas famílias, alguns
tendo mesmo casas de recreio apalaçadas nela. O seu comércio era por isso rico
com o dinheiro que os tropeiros lhe deixavam. Veio, porém, a estrada de ferro e
a sua decadência foi rápida. O transporte das mercadorias de “serra-acima” se
desviou dela e os seus sobrados deram em descascar como velhas árvores que vão
morrer. Os mercadores ricos a abandonaram e os galpões de tropa desabaram.
Entretanto, o sítio era aprazível, com as suas curtas praias alvas que foram
separadas por desabamentos de grandes moles de granito da montanha verdejante
do fundo do vilarejo, formando aglomerações de grossos pedregulhos.
A gente pobre, após a sua morte,
deu em viver de pescarias, pois o mar aí era rumoroso e abundante de pescado de
bom quilate.
Tripulando grandes canoas de
voga, os seus pescadores traziam o produto de sua humilde indústria, vencendo
mil dificuldades, até Sepetiba e, daí, a Santa Cruz, onde ele era embarcado em
trem de ferro até o Rio de Janeiro.
Os ricos de lá, além dos fabricantes
de cal de marisco, eram os taverneiros que, nessas vendas, como se sabe, vendem
tudo, mesmo casemiras e arreios, e são os banqueiros. Lavradores não havia e
até frutas iam do Rio de Janeiro.
As pessoas importantes eram o
juiz de direito, o promotor, o escrivão, os professores públicos, o presidente
da Câmara e o respectivo secretário. Este, porém, o Salomão Nabor de Azevedo,
descendente dos antigos Nabores de Azevedo de “serra acima” e dos Breves, ricos
fazendeiros, era o mais. Era o mais porque, além disto, se fizera o jornalista
popular do lugar.
A ideia não fora dele, a de
fundar O Arauto, órgão dos interesses
da cidade de Sant’Ana dos Pescadores; fora do promotor. Este veio a perder o
jornal, de um modo curioso. O Dr. Fagundes, o tal de promotor, começou a fazer
oposição ao Dr. Castro, advogado no lugar e, no tempo, presidente da Câmara.
Nabor não via com bons olhos aquele e, certo dia, foi ao jornal e retirou o
artigo do promotor e escreveu um descabelado de elogios ao Dr. Castro, porque
ele tinha suas luzes, como veremos. Resultado: Nabor, o nobre Nabor, foi
nomeado secretário da Câmara e o promotor perdeu a importância de melhor
jornalista local, que coube, daí por diante e para sempre, a Nabor. Como já
disse, este Nabor recebera luzes num colégio de padres de Vassouras ou Valença,
quando os pais eram ricos. O seu saber não era lá grande; não passava de
gramaticazinha portuguesa, das quatro operações e umas citações históricas que
aprendera com Fagundes Varela, quando este foi hóspede de seus pais, em cuja
fazenda chegara, certa vez, de tarde, numa formidável carraspana e em trajes de
tropeiro, calçado de tamancos.
O poeta gostara dele e lhe dera
algumas noções de letras. Lera o Macedo e os poetas do tempo, daí o seu pendor
para coisas de letras e de jornalismo.
Herdou alguma coisa do pai,
vendera a fazenda e viera morar em Sant’Ana, onde tinha uma casa, também pela
mesma herança. Casou aí com uma moça de alguma pecúnia e vivia a fazer política
e a ler os jornais da corte, que assinava.
Deixou os romances e apaixonou-se
por José do Patrocínio, Ferreira de Menezes, Joaquim Serra e outros jornalistas
dos tempos calorosos da Abolição. Era abolicionista, porque... os seus
escravos, ele os tinha vendido com a fazenda que herdara; e os poucos que tinha
em casa, dizia que não os libertava, por serem da mulher.
O seu abolicionismo, com a lei de
13 de Maio, veio dar, naturalmente, algum prejuízo à esposa...
Enfim, após a República e a
Abolição, foi várias vezes subdelegado e vereador de Sant’Ana. Era isto, quando
o promotor Fagundes lembrou-lhe a ideia de fundar um jornal na cidade. Conhecia
aquele a mania do último, por jornais, e a resposta confirmou a sua esperança:
— Boa ideia, “seu” Fagundes! A
“estrela do Abraão” (assim era chamada Sant’Ana) não ter um jornal! Uma cidade
como esta, pátria de tantas glórias, de tão honrosas tradições, sem essa
alavanca do progresso que é a imprensa, esse fanal que guia a humanidade — não
é possível!
— O diabo, o diabo... — fez
Fagundes.
— Por que o diabo, Fagundes?
— E o capital?
— Entro com ele.
O trato foi feito e Nabor,
descendente dos Nabores de Azevedo e dos famigerados Breves, entrou com o
cobre; e Fagundes ficou com a direção intelectual do jornal. Fagundes era mais
burro e, talvez, mais ignorante do que Nabor; mas este deixava-lhe a direção
ostensiva porque era bacharel. O Arauto
era semanal e saía sempre com um artiguete laudatório do diretor, à guisa de
artigo de fundo, umas composições líricas, em prosa, de Nabor, aniversários,
uns mofinos anúncios e os editais da Câmara Municipal. Às vezes, publicava
certas composições poéticas do professor público. Eram sonetos bem quebrados e
bem estúpidos, mas que eram anunciados como “trabalhos de um puro parnasiano
que é esse Sebastião Barbosa, exímio
educador e glória da nossa terra e da nossa raça”.
Às vezes, Nabor, o tal dos
Nabores de Azevedo e dos Breves, honrados fabricantes de escravos, cortava
alguma coisa de valia dos jornais do Rio e o jornaleco ficava literalmente
esmagado ou inundado.
Dentro do jornal, reinava uma
grande rivalidade latente entre o promotor e Nabor. Cada qual se julgava mais
inteligente por decalcar ou pastichar melhor um autor em voga.
A mania de Nabor, na sua
qualidade de profissional e jornalista moderno, era fazer do O Arauto um jornal de escândalo, de
altas reportagens sensacionais, de “enquetes” com notáveis personagens da
localidade, enfim, um jornal moderno; a de Fagundes era a de fazê-lo um
quotidiano doutrinário, sem demasias, sem escândalos — um Jornal do Comércio de Sant’Ana dos Pescadores, a “Princesa” do “O
Seio de Abraão”, a mais formosa enseada do estado do Rio.
Certa vez, aquele ocupou três
colunas do grande órgão (e achou pouco), com a narração do naufrágio da canoa
de pescaria Nossa Senhora do Ó, na
praia da Mabombeba. Não morrera um só tripulante.
Fagundes censurou-lhe:
— Você está gastando papel à toa!
— É assim que se procede no Rio
com os naufrágios sensacionais. Demais: quantas colunas você gastou com o
artigo sobre o direito de cavar “tariobas”, nas praias?
— É uma questão de marinhas e
acrescidos; é uma questão de direito. Assim, viviam aparentemente em paz, mas,
no fundo, em guerra surda. Com o correr dos tempos, a rivalidade chegou ao auge
e Nabor fez o que fez com Fagundes. Reclamou este e o descendente dos Breves
respondeu-lhe:
— Os tipos são meus; a máquina é
minha; portanto, o jornal é meu. Fagundes consultou os seus manuais e concluiu
que não tinha direito à sociedade do jornal, pois não havia instrumento de
direito bastante hábil para prová-la em juízo; mas, de acordo com a lei e
vários jurisconsultos notáveis, podia reclamar o seu direito aos honorários de
redator-chefe, à razão de 1:8:00$000. Ele o havia sido quinze anos e quatro
meses; tinha, portanto, direito a receber 324 contos, juros de mora e custas.
Quis propor a causa, mas viu que
a taxa judicial ia muito além das suas posses. Abandonou o propósito; e Nabor,
o tal dos Azevedos e dos Breves, um dos quais recebera a visita do imperador,
numa das suas fazendas, na da Grama, ficou único dono do jornal.
Dono do grande órgão, tratou de
modificar-lhe o feitio carrança que lhe imprimira o pastrana do Fagundes. Fez
inquéritos com o sacristão da irmandade; atacou os abusos das autoridades da
Capitania do Porto; propôs, a exemplo de Paris etc., o estabelecimento do exame
das amas de leite etc. etc. Mas, nada disso deu retumbância a seu jornal. Certo
dia, lendo a notícia de um grande incêndio no Rio, acudiu-lhe a ideia de que se
houvesse um em Sant’Ana, podia publicar uma notícia de “escacha”, no seu
jornal, e esmagar o rival — O Baluarte
— que era dirigido pelo promotor Fagundes, o antigo companheiro e inimigo. Como
havia de ser? Ali, não havia incêndios, nem mesmo casuais. Esta palavra
abriu-lhe um clarão na cabeça e completou-lhe a ideia.
Resolveu pagar a alguém que
atacasse fogo no palacete do Dr. Gaspar, seu protetor, o melhor prédio da
cidade. Mas, quem seria, se tentasse pagar a alguém? Mas... esse alguém se
fosse descoberto denunciá-lo-ia, por certo. Não valia a pena... Uma ideia! Ele
mesmo poria fogo no sábado, na véspera de sair o seu hebdomadário — O Arauto. Antes escreveria a longa
notícia com todos os “ff” e “rr”. Dito e feito. O palácio pegou fogo inteirinho
no sábado, alta noite; e de manhã, a notícia saía bem-feitinha. Fagundes, que
era já juiz municipal, logo viu a criminalidade de Nabor. Arranjou-lhe uma
denúncia processo e o grande jornalista Salomão Nabor de Azevedo, descendente
dos Azevedos, do Rio Claro, e dos Breves, reis da escravatura, foi parar na
cadeia, pela sua estupidez e vaidade.
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