O javali de Calydon
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Amigo íntimo do casal, o Dr.
Fernando Magalhães tinha a vantagem, que o bairro inteiro invejava, de
penetrar, a qualquer hora do dia, sob qualquer pretexto, ou sem pretexto algum,
no gracioso palacete do engenheiro Alfredo Scholl, nos fins da Avenida
Atlântica, ao lado da montanha e diante do mar. Pessoa de confiança, o Dr.
Fernando conversava alguns momentos com a encantadora dona da casa, que lhe
dava o prazer de, minutos depois, colocá-lo à sua frente, na pequenina mesa de
chá, com serviço para dois. E, como o ilustre médico dispõe de uma cultura
variada, bebida na ciência de toda ordem e na literatura de todo gênero,
sucedeu-lhe, naquela dia, lembrar-se, a propósito de um incidente comum, da
triste fábula do rei Anceo, que tomou parte, como se sabe, na famosa expedição
dos argonautas.
— A senhora não conhece, então,
essa história fabulosa, D. Alaíde? indagou, gentil, o ilustre ginecologista.
A moça levou a xícara de
porcelana chinesa aos lábios mais delicados e vermelhos que a porcelana da
xícara, e, com a boquita cheia, e uma torradinha entre os dedos, pediu:
— Não; conte-ma.
E, sorrindo, com tentação:
— Conte-ma; sim?
O ilustre médico fitou-a, com os
olhos doces, e começou, com simplicidade, mas com graça:
— De regresso da Colchida, aonde
havia ido com os outros príncipes gregos, governava Anceo o seu povo da
Arcádia, quando, certo dia, um escravo lhe disse, à mesa, que ele nunca mais
beberia vinho da sua vinha. Soberbo e incrédulo, Anceo achou espírito na
predição, zombando da palavra do servo. E, para demonstrar a sua incredulidade,
ordenou, de pronto, ao escravo:
— Traze-me vinho da minha vinha!
Queres ver como o bebo?
O escravo trouxe-lhe uma taça de
ouro transbordante, e entregou-a ao senhor.
— E agora, que te disse eu? —
observou o monarca.
— O que eu sei, meu senhor, —
retrucou o servo, curvando-se, — é que entre o copo e a boca ainda medeia um
espaço que pode ser, talvez, uma eternidade!
Anceo sorriu, na sua arrogância,
e ia levantar a taça de vinho fervente, quando a guarda apareceu, de súbito, em
tumulto, à porta do grande salão.
— O javali de Calidon, meu
senhor! — gritavam todos, alarmados; — o javali de Calidon acaba de entrar na
vossa vinha!
Abandonando a taça, antes de
levá-la aos lábios, o soberano atira-se, de um salto, sobre a sua lança, sobre
o seu escudo, sobre a sua espada, ordenando, ao mesmo tempo, que as buzinas
convoquem, sonoras, os guerreiros da vizinhança. E, precipitando-se para o
vinhedo, enfrenta, ali, sozinho, a fera formidável, a qual se atira contra ele,
ferindo-o, matando-o, estraçalhando-o, de modo que se cumpriu o que dissera o
escravo, o qual assegurara que ele não chegaria aos lábios, apesar de tê-lo nas
mãos, o vinho da sua vinha!
Com o queixo de mármore na curva
da mão pequenina, debruçada sobre a toalha de linho bordado, D. Alaíde ouvia,
embevecida, de olhos semicerrados, a palavra do narrador, que se debruçara,
também, no seu rumo, para falar-lhe melhor. De rosto a rosto não havia mais,
talvez, que a distância de um palmo, quando bateram, de leve, na porta que dava
para o terraço, a qual se achava trancada à chave. Pé ante pé, D. Alaíde vai
até à vidraça e espia, sem ser vista.
— Quem é? — indaga, em segredo, o
Dr. Fernando.
E a moça, à meia voz, com a
mãozinha junto da boca:
— É o javali!...
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