Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Havia na capital de uma das nossas províncias menos adiantadas
certa panelinha de gramáticos, sofrivelmente pedantes. Não se agitava questão
de sintaxe, para cuja solução não fossem tais senhores imediatamente
consultados. Diziam as coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e
dogmático, que não deixava de produzir o seu efeito no espírito das massas
boquiabertas.
Dessa aluvião de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que
almoçava, merendava, jantava e ceava gramática portuguesa.
Esse ratão, bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe
de seção da Secretaria do Governo, e andava pelas ruas a fazer a análise lógica
das tabuletas das lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. "Casa do
Barateiro, — sujeito: esta casa; verbo, é; atributo, a casa; do barateiro,
complemento restritivo." O Dr. Praxedes despedia um criado, se o infeliz,
como a soubrette das Femmes Savantes, cometia um erro de
prosódia.
E quando submetia os transeuntes incautos a um exame de regência
gramatical?
Por exemplo: encontrava na rua um menino, e este caía na asneira
de perguntar muito naturalmente:
— Senhor Dr. Praxedes, como tem passado?
— Venha cá, respondia ele agarrando o pequeno por um botão do
casaco: "Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?" — que oração é
esta?
— Mas... é que estou com muita pressa...
— Diga!
— É uma oração interrogativa.
— Sujeito?
— Senhor Dr. Praxedes.
— Verbo?
— Ter.
— Atributo?
— Passado.
— Bom. Pode ir. Lembranças a seu pai.
E, com uma ideia súbita, parando:
— Ah! venha cá! venha cá! Lembranças a seu pai — que oração é
esta?
— É uma oração... uma oração imperativa.
— Bravo! — Sujeito?
— Está oculto... é você... Você dê lembranças a seu pai.
— Muito bem. Verbo?
— Dar.
— Atributo?
— Dador.
— Lembranças é um complemento?...
— Objetivo.
— A seu pai?...
— Terminativo.
— Muito bem. Pode ir. Adeus.
***
Depois de aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes
recolheu-se ao interior da província, escolhendo, para passar o resto dos seus
gloriosos dias, a cidadezinha de ***, seu berço natal. Aí advogava por muito
empenho, continuando a exercer a sua missão de oráculo em questões gramaticais.
Raramente saia à rua, pois todo o tempo era pouco para estar em
casa, respondendo às numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de
outros pontos da província.
***
A cidadezinha de*** dava-se ao luxo de uma falha hebdomadária, o Progresso, propriedade do Clorindo
Barreto, que acumulava as funções de diretor, redator, compositor, revisor,
paginador, impressor, distribuidor e cobrador.
Ninguém se admire disso, porque o Barreto — justiça se lhe faça —
dava mais uso à tesoura do que à pena. O vigário, que tinha sempre a sua
pilhéria aos domingos, disse um dia que aquilo não era uma tesoura, mas um
tesouro.
Entretanto, se no escritório do Progresso a goma-arábica tinha mais extração que a tinta de
escrever, não se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que não
viesse fielmente narrado na folha.
Por exemplo.
"O Sr. Major Hilarião Gouveia de Araújo acaba de receber a
grata nova de que seu prezado filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os
seus preparatórios na Corte, e vai matricular-se na Escola Politécnica, da
referida Corte.
"Cumprimentamos cheios de júbilo o Sr. Major Hilarião, que é
um dos nossos mais prestimosos assinantes, desde que fundou-se a nossa
falha."
***
Em fins de Maio de 1885,
a notícia do falecimento de Victor Hugo chegou à
cidadezinha de ***, levada por um sujeito que saíra da capital justamente na
ocasião em que o telégrafo comunicara o infausto acontecimento.
O Barreto, logo que soube da notícia, coçou a cabeça e murmurou:
— Diabo! não tenho jornais... Como hei de descalçar este par de
botas? A notícia da morte de Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e não
me sinto com forças para desempenhar semelhante tarefa!
Todavia, molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de
certos generais, e rabiscou: Victor Hugo.
Ao cabo de duas horas de cogitação, o jornalista não escrevera nem
mais uma linha...
***
Mas, oh! Providência! nesse momento passou pela porta da
tipografia o sábio Dr. Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma
ideia iluminou o cérebro vazio de Clorindo Barreto.
— Doutor Praxedes! Doutor Praxedes! exclamou ele. Tenha vossa
senhoria a bondade de entrar por um momento. Preciso falar-lhe.
O Dr. Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto
embirrasse com o Barreto, por causa dos seus constantes solecismos, entrou na
tipografia.
— Que deseja?
O redator do Progresso referiu
a notícia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso embaraço em que se
achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes.
Este, com um sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu,
curvando-se-lhe os lábios em sentido oposto, sentou-se a mesa com a gravidade
de um juiz, tirou os óculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz,
pediu uma pena nova, experimentou-a na unha do polegar, dispôs sobre a mesa
algumas tiras de papel, cujas arestas aparou cuidadosamente com a... com o
tesouro, chupou a pena, molhou-a três vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a
outras tantas, e, afinal escreveu:
"Falecimento. — Consta, por pessoa vinda de ter falecido em
Paris, capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de várias
obras de mérito, entre as quais um drama em verso, Mariquinhas Delorme (Marion
Delorme) e uma interessante
novela intitulada Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris).
"O ilustre finado era conde
e viúvo.
"O seu falecimento enluta a
literatura da culta Europa.
"Nossos sinceros pêsames à
sua estremecida família."
***
O Dr. Praxedes saiu da tipografia do Progresso, e continuou o seu caminho a passos largos, medidos e
solenes.
Ia mais satisfeito e cheio de si do que o próprio Sr. Victor Hugo
quando escreveu a última palavra da sua interessante novela.
O Barreto ficou radiante, e, examinando a tira de papel escrita
pelo gramático, exclamou, comovido pela admiração:
— Nem uma emenda!
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