O filho de Gabriela
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
"Chaque progrès,
au fond, est un avortement
Mais l'échec même sert".
GUYAU
Absolutamente não pode continuar
assim... Já passa... É todo o dia! Arre! — Mas é meu filho, minh'ama.
E que tem isso? Os filhos de
vocês agora têm tanto luxo. Antigamente, criavam-se à toa; hoje, é um
deus-nos-acuda; exigem cuidados, têm moléstias... Fique sabendo: não pode ir
amanhã!
— Ele vai melhorando, Dona Laura;
e o doutor disse que não deixasse de levá-lo lá, amanhã...
— Não pode, não pode, já lhe
disse! O conselheiro precisa chegar cedo à escola; há exames e tem que almoçar
cedo... Não vai, não senhora! A gente tem criados pra quê? Não vai, não!
— Vou, e vou sim!... Que
bobagem.!... Quer matar o pequeno, não é? Pois sim... Está-se
"ninando"...
— O que é que você disse, hein?
— É isso mesmo: vou e vou!
— Atrevida.
— Atrevida é você, sua... Pensa
que não sei...
Em seguida as duas mulheres se
puseram caladas durante um instante: a patroa — uma alta senhora, ainda moça,
de uma beleza suave e marmórea — com os lábios finos muito descorados e
entreabertos, deixando ver os dentes aperolados, muito iguais, cerrados de
cólera; a criada agitada, transformada, com faiscações desusadas nos olhos
pardos e tristes. A patroa não se demorou assim muito tempo. Violentamente
contraída naquele segundo a sua fisionomia repentinamente se abriu num choro
convulsivo.
A injúria da criada, decepções
matrimoniais, amarguras do seu ideal amoroso, fatalidades de temperamento, todo
aquele obscuro drama de sua alma, feito de uma porção de coisas que não chegava
bem a colher, mas nas malhas das quais se sentia presa e sacudida, subiu-lhe de
repente à consciência, e ela chorou.
Na sua simplicidade popular, a
criada também se pôs a chorar, enternecida pelo sofrimento que ela mesma
provocara na ama.
E ambas, pelo fim dessa
transfiguração inopinada, entreolharam-se surpreendidas, pensando que se
acabavam de conhecer naquele instante, tendo até ali vagas notícias uma da
outra, como se vivessem longe, tão longe, que só agora haviam distinguido bem
nitidamente o tom de voz próprio a cada uma delas.
No entendimento peculiar de uma e
de outra, sentiram-se irmãs na desoladora mesquinhez da nossa natureza e
iguais, como frágeis consequências de um misterioso encadear de acontecimentos,
cuja ligação e fim lhes escapavam completamente, inteiramente...
A dona da casa, à cabeceira da
mesa de jantar, manteve-se silenciosa, correndo, de quando em quando, o olhar
ainda úmido pelas ramagens do atoalhado, indo, às vezes, com ele até à bandeira
da porta defronte, donde pendia a gaiola do canário, que se sacudia na prisão
niquelada.
De pé, a criada avançou algumas
palavras. Desculpou-se inábil e despediu-se humilde.
— Deixe-se disso, Gabriela, disse
Dona Laura. Já passou tudo; eu não guardo rancor; fique! Leve o pequeno
amanhã... Que vai você fazer por esse mundo afora?
— Não senhora... Não posso... É
que...
E de um hausto falou com tremuras
na voz:
— Não posso, não minh'ama; vou-me
embora!
Durante um mês, Gabriela andou de
bairro em bairro, à procura de aluguel. Pedia lessem-lhe anúncios, corria,
seguindo as indicações, a casas de gente de toda a espécie. Sabe cozinhar?
perguntavam. Sim, senhora, o trivial. — Bem e lavar? Serve de ama? — Sim,
senhora; mas se fizer uma coisa, não quero fazer outra. — Então, não me serve,
concluía a dona da casa. É um luxo... Depois queixam-se que não têm aonde se
empreguem...
Procurava outras casas; mas nesta
já estavam servidas, naquela o salário era pequeno e naquela outra queriam que
dormisse em casa e não trouxesse o filho.
A criança, durante esse mês,
viveu relegada a um canto da casa de uma conhecida da mãe. Um pobre quarto de
estalagem, úmido que nem uma masmorra. De manhã, via a mãe sair; à tarde, quase
à boca da noite, via-a entrar desconfortada. Pelo dia em fora, ficava num
abandono de enternecer. A hóspede, de longe em longe, olhava-o cheia de raiva.
Se chorava aplicava-lhe palmadas e gritava colérica: " Arre diabo! A
vagabunda de tua mãe anda saracoteando... Cala a boca, demônio! Quem te fez,
que te ature..."
Aos poucos, a criança torrou-se
de medo; nada pedia, sofria fome, sede, calado. Enlanguescia a olhos vistos e
sua mãe, na caça de aluguel, não tinha tempo para levá-lo ao doutor do posto
médico. Baço, amarelado, tinha as pernas que nem palitos e o ventre como o de
um batráquio. A mãe notava-lhe o enfraquecimento, os progressos da moléstia e
desesperava, não sabendo que alvitre tomar. Um dia pelos outros, chegava em
casa semiembriagada, escorraçando o filho e trazendo algum dinheiro. Não
confessava a ninguém a origem dele; em outros mal entrava, beijava muito o
pequeno, abraçava-o. E assim corria a cidade. Numa destas correrias passou pela
porta do conselheiro, que era o marido de Dona Laura. Estava no portão, a
lavadeira, parou e falou-lhe; nisto, viu aparecer a sua antiga patroa numa
janela lateral. " — Bom dia minh'ama," — "Bom dia, Gabriela.
Entre." Entrou. A esposa do conselheiro perguntou-lhe se já tinha emprego;
respondeu-lhe que não. "Pois olha, disse-lhe a senhora, eu ainda não
arranjei cozinheira, se tu queres..."
Gabriela quis recusar, mas Dona
Laura insistiu.
Entre elas, parecia que havia
agora certo acordo íntimo, um quê de mútua proteção e simpatia. Uma tarde em
que Dona Laura voltava da cidade, o filho da Gabriela, que estava no portão,
correu imediatamente para a moça e disse-lhe, estendendo a mão: "a
bênção" Havia tanta tristeza no seu gesto, tanta simpatia e sofrimento,
que aquela alta senhora não lhe pôde negar a esmola de um afago, de uma carícia
sincera. Nesse dia, a cozinheira notou que ela estava triste e, no dia
seguinte, não foi sem surpresa que Gabriela se ouviu
chamar.
— O Gabriela!
-Minh'ama.
— Vem cá.
Gabriela concertou-se um pouco e
correu à sala de jantar, onde estava a ama.
— Já batizaste o teu pequeno?
perguntou-lhe ela ao entrar.
— Ainda não.
— Por quê? Com quatro anos!
— Por quê? Porque ainda não houve
ocasião...
— Já tens padrinhos?
— Não, senhora.
— Bem; eu e o conselheiro vamos
batizá-lo. Aceitas?
Gabriela não sabia como
responder, balbuciou alguns agradecimentos e voltou ao fogão com lágrimas nos
olhos.
O conselheiro condescendeu e
cuidadosamente começou a procurar um nome adequado. Pensou em Huáscar, Ataliba,
Guatemozim; consultou dicionários, procurou nomes históricos, afinal
resolveu-se por "Horácio", sem saber por quê.
Assim se chamou e cresceu.
Conquanto tivesse recebido um tratamento médico regular e a sua vida na casa do
conselheiro fosse relativamente confortável, o pequeno Horácio não perdeu nem a
reserva nem o enfezado dos seus primeiros anos de vida. A proporção que
crescia, os traços se desenhavam, alguns finos: o corte da testa, límpida e
reta; o olhar doce e triste, como o da mãe, onde havia, porém, alguma coisa a
mais um fulgor, certas expressões particulares, principalmente quando calado e
concentrado. Não obstante, era feio, embora simpático e bom de ver.
Pelos seis anos, mostrava-se
taciturno, reservado e tímido, olhando interrogativamente as pessoas e coisas,
sem articular uma pergunta. Lá vinha um dia, porém, que o Horácio rompia numa
alegria ruidosa; punha-se a correr, a brincar, a cantarolar, pela casa toda,
indo do quintal para as salas, satisfeito, contente, sem motivo e sem causa.
A madrinha espantava-se com esses
bruscos saltos de humor, queria entendê-los, explicá-los e começou por se
interessar pelos seus trejeitos. Um dia, vendo o afilhado a cantar, a brincar,
muito contente, depois de uma porção de horas de silêncio e calma, correu ao
piano e acompanhou-lhe a cantiga, depois, emendou com uma ária qualquer. O
menino calou-se, sentou-se no chão e pôs-se a olhar, com olhos tranquilos e
calmos, a madrinha, inteiramente delido nos sons que saíam dos seus dedos. E
quando o piano parou, ele ainda ficou algum tempo esquecido naquela postura,
com o olhar perdido numa cisma sem fim. A atitude imaterial do menino tocou a
madrinha, que o tomou ao colo, abraçando-o e beijando-o, num afluxo de ternura,
a que não eram estranhos os desastres de sua vida sentimental.
Pouco depois a mãe lhe morria.
Até então vivia numa semidomesticidade. Daí em diante, porém, entrou
completamente na família do Conselheiro Calaça. Isso, entretanto, não lhe
retirou a taciturnidade e a reserva; ao contrário, fechou-se em si e nunca mais
teve crises de alegria.
Com sua mãe ainda tinha abandonos
de amizade, efusões de carícias e abraços. Morta que ela foi, não encontrou
naquele mundo tão diferente, pessoa a quem se pudesse abandonar completamente,
embora pela madrinha continuasse a manter uma respeitosa e distante amizade,
raramente aproximada por uma carícia, por um afago. Ia para o colégio calado,
taciturno, quase carrancudo, e, se, pelo recreio, o contágio obrigava-o a
entregar-se à alegria e aos folguedos, bem cedo se arrependia, encolhia-se e
sentava-se, vexado, a um canto. Voltava do colégio como fora, sem brincar pelas
ruas, sem traquinadas, severo e insensível.
Tendo uma vez brigado com um
colega, a professora o repreendeu severamente, mas o conselheiro, seu padrinho,
ao saber do caso, disse com rispidez: "Não continue, hein? O senhor não
pode brigar, está ouvindo?"
E era assim sempre o seu
padrinho, duro, desdenhoso, severo em demasia com o pequeno, de quem não
gostava, suportando-o unicamente em atenção à mulher — maluquices da Laura,
dizia ele. Por vontade dele, tinha-o posto logo num asilo de menores, ao
morrer-lhe a mãe; mas a madrinha não quis e chegou até a conseguir que o marido
o colocasse num estabelecimento oficial de instrução secundária, quando acabou
com brilho o curso primário.
Não foi sem resistência que ele
acedeu, mas os rogos da mulher, que agora juntava à afeição pelo pequeno uma
secreta esperança no seu talento, tanto fizeram que o conselheiro se empenhou e
obteve.
Em começo, aquela adoção fora um
simples capricho de Dona Laura; mas, com o tempo, os seus sentimentos pelo
menino foram ganhando importância e ficando profundos, embora exteriormente o
tratasse com um pouco de cerimônia.
Havia nela mais medo da opinião,
das sentenças do conselheiro, do que mesmo necessidade de disfarçar o que
realmente sentia, e pensava.
Quem a conheceu solteira, muito
bonita, não a julgaria capaz de tal afeição; mas, casada, sem filhos, não
encontrando no casamento nada que sonhara, nem mesmo o marido, sentiu o vazio
da existência, a inanidade dos seus sonhos, o pouco alcance da nossa vontade;
e, por uma reviravolta muito comum, começou a compreender confusamente todas as
vidas e almas, a compadecer-se e a amar tudo, sem amar bem coisa alguma. Era
uma parada de sentimento e a corrente que se acumulara nela, perdendo-se do seu
leito natural, extravasara e inundara tudo.
Tinha um amante e já tivera
outros, mas não era bem a parte mística do amor que procurara neles. Essa, ela
tinha certeza que jamais podia encontrar; era a parte dos sentidos tão exuberantes
e exaltados depois das suas contrariedades morais.
Pelo tempo em que o seu afilhado
entrara para o colégio secundário, o amante rompera com ela; e isto a fazia
sofrer, tinha medo de não possuir mais beleza suficiente para arranjar um outro
como "aquele". E a esse desastre sentimental não foi estranha a
energia dos seus rogos junto ao marido para admissão do Horácio no
estabelecimento oficial.
O conselheiro, homem de mais de
sessenta anos, continuava superiormente frio, egoísta e fechado, sonhando
sempre uma posição mais alta ou que julgava mais alta. Casara-se por
necessidade decorativa. Um homem de sua posição não podia continuar viúvo;
atiraram-lhe aquela menina pelos olhos, ela o aceitou por ambição e ele por
conveniência. No mais, lia os jornais, o câmbio especialmente, e, de manhã
passava os olhos nas apostilas de sua cadeira — apostilas por ele organizadas,
há quase trinta anos, quando dera as suas primeiras lições, moço, de vinte e
cinco anos, genial nas aprovações e nos prêmios.
Horácio, toda a manhã, ao sair
para o colégio, lá avistava o padrinho atarraxado na cadeira de balanço a ler
atentamente o jornal: " A bênção, meu padrinho! " — "Deus te
abençoe", dizia ele, sem menear a cabeça do espaldar e no mesmo tom de voz
com que pediria os chinelos à criada.
Em geral, a madrinha estava
deitada ainda e o menino saía para o ambiente ingrato da escola, sem um adeus,
sem dar um beijo, sem ter quem lhe reparasse familiarmente o paletó. Lá ia. A
viagem de bonde, ele a fazia humilde, espremido a um canto do veículo, medroso
que seu paletó roçasse as sedas de uma rechonchuda senhora ou que seus livros
tocassem nas calças de um esquelético capitão de uma milícia qualquer. Pelo
caminho, arquitetava fantasias; seu espírito divagava sem nexo. À passagem de
um oficial a cavalo, imaginava-se na guerra, feito general, voltando vencedor,
vitorioso de ingleses, de alemães, de americanos e entrando pela Rua do Ouvidor
aclamado como nunca se fora aqui. Na sua cabeça ainda infantil, em que a
fraqueza de afetos próximos concentrava o pensamento, a imaginação palpitava,
tinha uma grande atividade, criando toda a espécie de fantasmagorias que lhe
apareciam como fatos possíveis, virtuais.
Eram-lhe as horas de aula um bem
triste momento. Não que fosse vadio, estudava o seu bocado, mas o espetáculo do
saber, por um lado grandioso e apoteótico, pela boca dos professores,
chegava-lhe tisnado e um quê desarticulado. Não conseguia ligar bem umas coisas
às outras, além do que tudo aquilo lhe aparecia solene, carrancudo e feroz. Um
teorema tinha o ar autoritário de um régulo selvagem; e aquela gramática cheia
de regrinhas, de exceções, uma coisa cabalística, caprichosa e sem aplicação
útil. O mundo parecia-lhe uma coisa dura, cheia de arestas cortantes, governado
por uma porção de regrinhas de três linhas, cujo segredo e aplicação estavam
entregues a uma casta de senhores, tratáveis uns, secos outros, mas todos
velhos e indiferentes.
Aos seus exames ninguém assistia,
nem por eles alguém se interessava; contudo, foi sempre regularmente aprovado.
Quando voltava do colégio,
procurava a madrinha e contava-lhe o que se dera nas aulas. Narrava-lhe
pequenas particularidades do dia, as notas que obtivera e as travessuras dos
colegas.
Uma tarde, quando isso ia fazer,
encontrou Dona Laura atendendo a uma visita. Vendo-o entrar e falar à dona da
casa, tomando-lhe a bênção] a senhora estranha perguntou: "Quem é este
pequeno?" — "E meu afilhado", disse-lhe Dona Laura. "Teu
afilhado? Ahn! sim! É o filho da Gabriela..."
Horácio ainda esteve um instante
calado, estatelado e depois chorou nervosamente.
Quando se retirou observou a
visita à madrinha:
— Você está criando mal esta
criança. Faz-lhe muitos mimos, está lhe dando nervos...
— Não faz mal. Podem levá-lo
longe.
E assim corria a vida do menino
em casa do conselheiro.
Um domingo ou outro, só ou com um
companheiro, vagava pelas praias, pelos bondes ou pelos jardins. O Jardim
Botânico era-lhe preferido. Ele e o seu constante amigo Salvador sentavam-se a
um banco, conversavam sobre os estudos comuns, maldiziam este ou aquele
professor. Por fim, a conversa vinha a enfraquecer; os dois se calavam
instantes. Horácio deixava-se penetrar pela flutuante poesia das coisas, das
árvores, dos céus, das nuvens; acariciava com o olhar as angustiadas colunas
das montanhas, simpatizava com o arremesso dos píncaros, depois deixava-se
ficar, ao chilreio do passaredo, cismando vazio, sem que a cisma lhe fizesse
ver coisa definida, palpável pela inteligência. Ao fim, sentia-se como que
liquefeito, vaporizado nas coisas era como se perdesse o feitio humano e se
integrasse naquele verde escuro da mata ou naquela mancha faiscante de prata
que a água a correr deixava na encosta da montanha. Com que volúpia, em tais
momentos, ele se via dissolvido na natureza, em estado de fragmentos, em
átomos, sem sofrimento, sem pensamento, sem dor! Depois de ter ido ao
indefinido, apavorava-se com o aniquilamento e voltava a si, aos seus desejos,
às suas preocupações com pressa e medo.
— Salvador, de que gostas mais,
do inglês ou francês?
Eu do francês; e tu?
— Do inglês.
– Por quê? Porque pouca gente o
sabe.
A confidência saía-lhe a
contragosto, era dita sem querer. Temeu que o amigo o supusesse vaidoso. Não
era bem esse sentimento que o animava; era uma vontade de distinção, de
reforçar a sua individualidade, que ele sentia muito diminuída pelas
circunstâncias ambientes. O amigo não entrava na natureza do seu sentimento e
despreocupadamente perguntou:
— Horácio, já assististe uma
festa de São João?
— Nunca. Queres assistir uma?
— Quero, onde?
— Na ilha, em casa de meu tio.
Pela época, a madrinha consentiu.
Era um espetáculo novo; era um outro mundo que se abria aos seus olhos. Aquelas
longas curvas das praias, que perspectivas novas não abriam em seu espírito!
Ele se ia todo nas cristas brancas das ondas e nos largos horizontes que
descortinava.
Em chegando a noite, afastou-se
da sala. Não entendia aqueles folguedos, aquele dançar sôfrego, sem pausa, sem
alegria, como se fosse um castigo. Sentado a um banco do lado de fora, pôs-se a
apreciar a noite, isolado, oculto, fugido, solitário, que se sentia ser no
ruído da vida. Do seu canto escuro, via tudo mergulhado numa vaga semiluz. No
céu negro, a luz pálida das estrelas; na cidade defronte, o revérbero da
iluminação; luz, na fogueira votiva, nos balões ao alto, nos foguetes que
espoucavam, nos fogaréus das proximidades e das distâncias — luzes contínuas,
instantâneas, pálidas, fortes; e todas no conjunto pareciam representar um
esforço enorme para espancar as trevas daquela noite de mistérios.
No seio daquela bruma iluminada,
as formas das árvores boiavam como espectros; o murmúrio do mar tinha alguma
coisa de penalizado diante do esforço dos homens e dos astros para clarear as
trevas. Havia naquele instante, em todas as almas, um louco desejo de decifrar
o mistério que nos cerca; e as fantasias trabalhavam para idear meios que nos
fizessem comunicar com o Ignorado, com o Invisível. Pelos cantos sombrios da
chácara pessoas deslizavam. Iam ao poço ver a sombra — sinal de que viveriam o
ano; iam disputar galhos de arruda ao diabo; pelas janelas, deixavam copos com
ovos partidos para que o sereno, no dia seguinte, trouxesse as mensagens do
Futuro.
O menino, sentindo-se arrastado
por aquele frêmito de augúrio e feitiçaria, percebeu bem como vivia envolvido,
mergulhado, no indistinto, no indecifrável; e uma onda de pavor, imensa e
aterradora, cobriu-lhe o sentimento.
Dolorosos foram os dias que se
seguiram. O espírito sacolejou-lhe o corpo violentamente. Com afinco estudava,
lia os compêndios; mas não compreendia, nada retinha. O seu entendimento como
que vazava. Voltava, lia, lia e lia e, em seguida, virava as folhas
sofregamente, nervosamente, como se quisesse descobrir debaixo delas um outro
mundo cheio de bondade e satisfação. Horas havia que ele desejava abandonar
aqueles livros, aquela lenta aquisição de noções e ideias, reduzir-se e
anular-se; horas havia, porém, que um desejo ardente lhe vinha de saturar-se de
saber, de absorver todo o conjunto das ciências e das artes. Ia de um
sentimento para outro; e foi vã a agitação. Não encontrava solução, saída; a
desordem das ideias e a incoerência das sensações não lhe podiam dar uma e
cavavam-lhe a saúde. Tornou-se mais flébil, fatigava-se facilmente. Amanhecia
cansado de dormir e dormia cansado de estar em vigília. Vivia irritado,
raivoso, não sabia contra quem.
Certa manhã, ao entrar na sala de
jantar, deu com o padrinho a ler os jornais, segundo o seu hábito querido.
— Horácio, você passe na casa do
Guedes e traga-me a roupa que mandei consertar.
— Mande outra pessoa buscar.
— O quê?
— Não trago.
— Ingrato! Era de esperar...
E o menino ficou admirado diante
de si mesmo, daquela saída de sua habitual timidez.
Não sabia onde tinha ido buscar
aquele desaforo imerecido, aquela tola má-criação; saiu-lhe como uma coisa
soprada por outro e que ele unicamente pronunciasse.
A madrinha interveio, aplainou as
dificuldades; e, com a agilidade de espírito peculiar ao sexo, compreendeu o
estado d'alma do rapaz. Reconstituiu-o com os gestos, com os olhares, com as
meias palavras, que percebera em tempos diversos e cuja significação lhe
escapara no momento, mas que aquele ato, desusadamente brusco e violento,
aclarava por completo. Viu-lhe o sofrimento de viver à parte, a transplantação
violenta, a falta de simpatia, o princípio de ruptura que existia em sua alma,
e que o fazia passar aos extremos das sensações e dos atos.
Disse-lhe coisas doces, ralhou-o,
aconselhou-o, acenou-lhe com a fortuna, a glória e o nome.
Foi Horácio para o colégio abatido,
preso de um estranho sentimento de repulsa, de nojo por si mesmo. Fora ingrato,
de fato; era um monstro. Os padrinhos lhe tinham dado tudo, educado, instruído.
Fora sem querer, fora sem pensar; e sentia bem que a sua reflexão não entrara
em nada naquela resposta que dera ao padrinho. Em todo o caso, as palavras
foram suas, foram ditas com sua voz e a sua boca, e se lhe nasceram do íntimo
sem a colaboração da inteligência, devia acusar-se de ser fundamentalmente
mau...
Pela segunda aula, pediu licença.
Sentia-se doente, doía-lhe a cabeça e parecia que lhe passavam um archote
fumegante pelo rosto.
— Já, Horácio? perguntou-lhe a
madrinha, vendo-o entrar.
— Estou doente.
E dirigiu-se para o quarto. A
madrinha seguiu-o. Chegado que foi, atirou-se à cama, ainda meio-vestido.
— Que é que você tem, meu filho?
— Dores de cabeça... um calor...
A madrinha tomou-lhe o pulso,
assentou as costas da mão na testa e disse-lhe ainda algumas palavras de
consolação: que aquilo não era nada; que o padrinho não lhe tinha rancor; que
sossegasse.
O rapaz, deitado, com os olhos
semicerrados, parecia não ouvir; voltava-se de um lado para outro; passava a
mão pelo rosto, arquejava e debatia-se. Um instante pareceu sossegar; ergueu-se
sobre o travesseiro e chegou a mão aos olhos, no gesto de quem quer avistar
alguma coisa ao longe. A estranheza do gesto assustou a madrinha.
— Horácio!... Horácio!...
— Estou dividido... Não sai
sangue...
— Horácio, Horácio, meu filho!
— Faz sol... Que sol!...
Queima...Árvores enormes... Elefantes...
— Horácio, que é isso? Olha; é
tua madrinha!
— Homens negros... fogueiras...
Um se estorce... Chi! Que coisa!... O meu pedaço dança...
— Horácio! Genoveva, traga água
de flor... Depressa, um médico... Vá chamar, Genoveva!
— Já não é o mesmo... é outro...
lugar, mudou... uma casinha branca... carros de bois... nozes... figos... lenços...
— Acalma-te, meu filho!
— Ué! Chi! Os dois brigam...
Daí em diante a prostração
tomou-o inteiramente. As últimas palavras não saíam perfeitamente articuladas.
Pareceu sossegar. O médico entrou, tomou a temperatura, examinou-o e disse com
a máxima segurança:
— Não se assuste, minha senhora.
É delírio febril, simplesmente. Dê-lhe o purgante, depois as cápsulas, que, em
breve, estará bom.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...