O Feiticeiro e o Deputado
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Nos arredores do "Posto
Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais", que, como se sabe,
fica no município Contra— Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista,
limítrofe do nosso, havia um habitante singular.
Conheciam-no no lugar que, antes
do batismo burocrático, tivera o nome doce e espontâneo de Inhangá, por
"feiticeiro"; o mesmo certa vez a ativa polícia local, em falta do
que fazer, chamou-o a explicações. Não julguem que fosse negro. Parecia até
branco e não fazia feitiços. Contudo, todo o povo das redondezas teimava em
chamá-lo de "feiticeiro".
É bem possível que essa alcunha
tivesse tido origem no mistério de sua chegada e na extravagância de sua
maneira de viver.
Fora mítico o seu desembarque. Um
dia apareceu numa das praias do município e ficou, tal e qual Manco Capac, no
Peru, menos a missão civilizadora do pai dos incas. Comprou, por algumas
centenas de mil-réis, um pequeno sítio com uma miserável choça, coberta de
sapê, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as terras, vivendo taciturno e
sem relações quase.
À meia encosta da colina, o seu
casebre crescia como um cômoro de cupins; ao redor, os cajueiros, as bananeiras
e as laranjeiras afagavam-no com amor; e cá embaixo, no sopé do morrote, em tomo
do poço de água salobra, as couves reverdeciam nos canteiros, aos seus cuidados
incessantes e tenazes.
Era moço, não muito. Tinha por aí
uns trinta e poucos anos; e um olhar doce e triste, errante e triste e duro, se
fitava qualquer coisa.
Toda a manhã viam-no descer à
rega das couves; e, pelo dia em fora, roçava, plantava e rachava lenha. Se lhe
falavam, dizia:
— "Seu" Ernesto tem
visto como a seca anda "brava".
— É verdade.
— Neste mês "todo" não
temos chuva.
— Não acho... Abril, águas mil.
Se lhe interrogavam sobre o
passado, calava-se; ninguém se atrevia a insistir e ele continuava na sua faina
hortícola, à margem da estrada.
À tarde, voltava a regar as
couves; e, se era verão, quando as tardes são longas, ainda era visto depois,
sentado à porta de sua choupana. A sua biblioteca tinha só cinco obras: a Bíblia, o Dom Quixote, a Divina comédia,
o Robinson e o Pensées, de Pascal. O seu primeiro ano ali devia ter sido de
torturas.
A desconfiança geral, as risotas,
os ditérios, as indiretas certamente teriam-no feito sofrer muito, tanto mais
que já devia ter chegado sofrendo muito profundamente, por certo de amor, pois
todo sofrimento vem dele.
Se é coxo e parece que se sofre
com o aleijão, não é bem este que nos provoca a dor moral: é a certeza de que
ele não nos deixa plenamente...
Cochichavam que matara, que
roubara, que falsificara; mas a palavra do delegado do lugar, que indagara dos
seus antecedentes, levou a todos confiança no moço, sem que perdesse a alcunha
e a suspeita de feiticeiro. Não era um malfeitor; mas entendia de mandingas. A
sua bondade natural para tudo e para todos acabou desarmando a população.
Continuou, porém, a ser feiticeiro, mas feiticeiro bom.
Um dia Sinhá Chica animou-se a
consultá-lo:
— "Seu" Ernesto:
viraram a cabeça de meu filho... Deu "pa bebê"..."Ta arrelaxando"...
— Minha senhora, que hei de eu
fazer?
— O "sinhô" pode, sim!
"Conversa cum" santo...
O solitário, encontrando-se por
acaso, naquele mesmo dia, com o filho da pobre rapariga, disse-lhe docentemente
estas simples palavras:
— Não beba, rapaz. É feio,
estraga — não beba!
E o rapaz pensou que era o
Mistério quem lhe falava e não bebeu mais. Foi um milagre que mais repercutiu
com o que contou o Teófilo Candeeiro.
Este incorrigível bebaço, a quem
atribuíam a invenção do tratamento das sezões, pelo parati, dias depois, em um
cavaco de venda, narrou que vira, uma tardinha, aí quase pela boca da noite,
voar do telhado da casa do "homem" um pássaro branco, grande, maior
do que um pato; e, por baixo do seu voo rasteiro, as árvores todas se abaixavam,
como se quisessem beijar a terra.
Com essas e outras, o solitário
de Inhangá ficou sendo como um príncipe encantado, um gênio bom, a quem não se
devia fazer mal.
Houve mesmo quem o supusesse um
Cristo, um Messias. Era a opinião do Manuel Bitu, o taverneiro, um antigo
sacristão, que dava a Deus e a César o que era de um e o que era de outro; mas
o escriturário do posto, "Seu" Almada, contrariava-o dizendo que se o
primeiro Cristo não existiu, então um segundo!...
O escriturário era um sábio, e
sábio ignorado, que escrevia em ortografia pretensiosa os pálidos ofícios,
remetendo mudas de laranjeiras e abacateiros para o Rio.
A opinião do escriturário era de
exegeta, mas a do médico era de psiquiatra.
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Esse "anelado" ainda
hoje é um enfezadinho, muito lido em livros grossos e conhecedor de uma
quantidade de nomes de sábios; e diagnosticou: um puro louco.
Esse "anelado" ainda
hoje é uma esperança de ciência...
O "feiticeiro", porém,
continuava a viver no seu rancho sobranceiro a todos eles. Opunha às opiniões
autorizadas do doutor e do escriturário o seu desdém soberano de miserável
independente; e ao estulto julgamento do bondoso Mane Bitu, a doce compaixão de
sua alma tema e afeiçoada...
De manhã e à tarde, regava as
suas couves; pelo dia em fora, plantava, colhia, fazia e rachava lenha, que
vendia aos feixes, ao Mané Bitu, para poder comprar as utilidades de que
necessitasse. Assim, passou ele cinco anos quase só naquele município de
Inhangá, hoje burocraticamente chamado — "Contra-Almirante Doutor
Frederico Antônio da Mota Batista".
Um belo dia foi visitar o posto o
deputado Braga, um elegante senhora, bem posto, polido e céptico.
O diretor não achava, mas o
doutor Chupadinho, o sábio escriturário Almada e o vendeiro Bitu, representando
o "capital" da localidade, receberam o parlamentar com todas as
honras e não sabiam como agradá-lo.
Mostraram-lhe os recantos mais
agradáveis e pinturescos, as praias longas e brancas e também as estranguladas
entre morros sobranceiros ao mar; os horizontes fugidios e cismadores do alto
das colinas; as plantações de batatas-doces; a ceva dos porcos...
Por fim, ao deputado que já se ia
fatigando com aqueles dias, a passar tão cheio de assessores, o doutor
Chupadinho convidou:
— Vamos ver, doutor, um
degenerado que passa por santo ou feiticeiro aqui. E um dementado que, se a lei
fosse lei, já há muito estaria aos cuidados da ciência, em algum manicômio.
E o escriturário acrescentou:
— Um maníaco religioso, um raro
exemplar daquela espécie de gente com que as outras idades fabricavam os seus
santos.
E o Mané Bitu:
— É um rapaz honesto... Bom moço
— é o que posso dizer dele.
O deputado, sempre cético e
complacente, concordou em acompanhá-los à morada do feiticeiro. Foi sem
curiosidade, antes indiferente, com uma ponta de tristeza no olhar.
O "feiticeiro"
trabalhava na horta, que ficava ao redor do poço, na várzea, à beira da
estrada.
O deputado olhou-o e o solitário,
ao tropel de gente, ergueu o busto que estava inclinado sobre a enxada,
voltou-se e fitou os quatro. Encarou mais firmemente o desconhecido e parecia
procurar reminiscências. O legislador fitou-o também um instante e, antes que
pudesse o "feiticeiro" dizer qualquer coisa, correu até ele e
abraçou-o muito e demoradamente.
— És tu, Ernesto?
— És tu, Braga?
Entraram. Chupadinho, Almada e
Bitu ficaram à parte e os dois conversaram particularmente.
Quando saíram, Almada perguntou:
— O doutor conhecia-o?
— Muito. Foi meu amigo e colega.
— É formado? indagou o doutor
Chupadinho.
— É.
— Logo vi, disse o médico. Os
seus modos, os seus ares, a maneira com que se porta, fizeram-me crer isso; o
povo, porém...
— Eu também, observou Almada,
sempre tive essa opinião íntima; mas essa gente por aí leva a dizer...
— Cá para mim, disse Bitu, sempre
o tive por honesto. Paga sempre as suas contas.
E os quatro voltaram em silêncio
para a sede do "Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas
Tropicais".
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