O
Diplomático
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A preta entrou na sala de jantar, chegou-se à mesa rodeada de gente, e falou baixinho à senhora. Parece que lhe pedia alguma coisa urgente, porque a senhora levantou-se logo.
— Ficamos esperando, D. Adelaide?
— Não espere, não, Sr. Rangel; vá
continuando, eu entro depois.
Rangel era o leitor do livro de sortes.
Voltou a página, e recitou um título: "Se alguém lhe ama em segredo."
Movimento geral; moças e rapazes sorriram uns para os outros. Estamos na noite
de São João de 1854, e a casa é na Rua das Mangueiras. Chama-se João o dono da
casa, João Viegas, e tem uma filha, Joaninha. Usa-se todos os anos a mesma
reunião de parentes e amigos, arde uma fogueira no quintal, assam-se as batatas
do costume, e tiram-se sortes. Também há ceia, às vezes dança, e algum jogo de
prendas, tudo familiar. João Viegas é escrivão de uma vara cível da Corte.
— Vamos. Quem começa agora? disse ele. Há de
ser D. Felismina. Vamos ver se alguém lhe ama em segredo.
D. Felismina sorriu amarelo. Era uma boa
quarentona, sem prendas nem rendas, que vivia espiando um marido por baixo das
pálpebras devotas. Em verdade, o gracejo era duro, mas natural. D. Felismina
era o modelo acabado daquelas criaturas indulgentes e mansas, que parecem ter
nascido para divertir os outros. Pegou e lançou os dados com um ar de
complacência incrédula. Número dez, bradaram duas vozes. Rangel desceu os olhos
ao baixo da página, viu a quadra correspondente ao número, e leu-a: dizia que
sim, que havia uma pessoa, que ela devia procurar domingo, na igreja, quando
fosse à missa. Toda a mesa deu parabéns a D. Felismina, que sorriu com desdém,
mas interiormente esperançada.
Outros pegaram nos dados, e Rangel continuou
a ler a sorte de cada um. Lia espevitadamente. De quando em quando, tirava os
óculos e limpava-os com muito vagar na ponta do lenço de cambraia, — ou por ser
cambraia, — ou por exalar um fino cheiro de bogari. Presumia de grande maneira,
e ali chamavam-lhe "o diplomático".
— Ande, seu diplomático, continue.
Rangel estremeceu; esquecera-se de ler uma
sorte, embebido em percorrer a fila de moças que ficava do outro lado da mesa.
Namorava alguma? Vamos por partes.
Era solteiro, por obra das circunstâncias,
não de vocação. Em rapaz teve alguns namoricos de esquina, mas com o tempo
apareceu-lhe a comichão das grandezas, e foi isto que lhe prolongou o celibato
até os quarenta e um anos, em que o vemos. Cobiçava alguma noiva superior a ele
e à roda em que vivia, e gastou o tempo em esperá-la. Chegou a frequentar os
bailes de um advogado célebre e rico, para quem copiava papéis, e que o
protegia muito. Tinha nos bailes a mesma posição subalterna do escritório;
passava a noite vagando pelos corredores, espiando o salão, vendo passar as
senhoras, devorando com os olhos uma multidão de espáduas magníficas e talhes
graciosos. Invejava os homens, e copiava-os. Saía dali excitado e resoluto. Em
falta de bailes, ia às festas de igreja, onde poderia ver algumas das primeiras
moças da cidade. Também era certo no saguão do paço imperial, em dia de cortejo,
para ver entrar as grandes damas e as pessoas da corte, ministros, generais,
diplomatas, desembargadores, e conhecia tudo e todos, pessoas e carruagens.
Voltava da festa e do cortejo, como voltava do baile, impetuoso, ardente, capaz
de arrebatar de um lance a palma da fortuna.
O pior é que entre a espiga e a mão há o tal
muro do poeta, e o Rangel não era homem de saltar muros. De imaginação fazia
tudo, raptava mulheres e destruía cidades. Mais de uma vez foi, consigo mesmo,
ministro de Estado, e fartou-se de cortesias e decretos. Chegou ao extremo de
aclamar-se imperador, um dia, 2 de dezembro, ao voltar da parada no largo do
Paço; imaginou para isso uma revolução, em que derramou algum sangue, pouco, e
uma ditadura benéfica, em que apenas vingou alguns pequenos desgostos de
escrevente. Cá fora, porém, todas as suas proezas eram fábulas. Na realidade,
era pacato e discreto.
Aos quarenta anos desenganou-se das ambições;
mas a índole ficou a mesma, e, não obstante a vocação conjugal, não achou
noiva. Mais de uma o aceitaria com muito prazer; ele perdia-as todas à força de
circunspecção. Um dia, reparou em Joaninha, que chegava aos dezenove anos e
possuía um par de olhos lindos e sossegados, — virgens de toda a conversação
masculina. Rangel conhecia-a desde criança, andara com ela ao colo, no Passeio
Público, ou nas noites de fogo da Lapa; como falar-lhe de amor? Mas, por outro
lado, as relações dele na casa eram tais, que podiam facilitar-lhe o casamento;
e, ou este ou nenhum outro.
Desta vez, o muro não era alto, e a espiga
era baixinha; bastava esticar o braço com algum esforço, para arrancá-la do pé.
Rangel andava neste trabalho desde alguns meses. Não esticava o braço, sem
espiar primeiro para todos os lados, a ver se vinha alguém, e, se vinha alguém,
disfarçava e ia-se embora. Quando chegava a esticá-lo, acontecia que uma lufada
de vento meneava a espiga ou algum passarinho andava ali nas folhas secas, e
não era preciso mais para que ele recolhesse a mão. Ia-se assim o tempo, e a
paixão entranhava-se-lhe, causa de muitas horas de angústia, a que seguiam
sempre melhores esperanças. Agora mesmo traz ele a primeira carta de amor,
disposto a entregá-la. Já teve duas ou três ocasiões boas, mas vai sempre
espaçando; a noite é tão comprida! Entretanto, continua a ler as sortes, com a
solenidade de um áugure.
Tudo, em volta, é alegre. Cochicham ou riem,
ou falam ao mesmo tempo. O tio Rufino, que é o gaiato da família, anda à roda
da mesa com uma pena, fazendo cócegas nas orelhas das moças. João Viegas está
ansioso por um amigo, que se demora, o Calisto. Onde se meteria o Calisto?
— Rua, rua, preciso da mesa; vamos para a
sala de visitas.
Era D. Adelaide que tornava; ia pôr-se a mesa
para a ceia. Toda a gente emigrou, e andando é que se podia ver bem como era graciosa
a filha do escrivão. Rangel acompanhou-a com grandes olhos namorados. Ela foi à
janela, por alguns instantes, enquanto se preparava um jogo de prendas, e ele
foi também; era a ocasião de entregar-lhe a carta.
Defronte, numa casa grande, havia um baile, e
dançava-se. Ela olhava, ele olhou também. Pelas janelas viam passar os pares,
cadenciados, as senhoras com as suas sedas e rendas, os cavalheiros finos e
elegantes, alguns condecorados. De quando em quando, uma faísca de diamantes,
rápida, fugitiva, no giro da dança. Pares que conversavam, dragonas que
reluziam, bustos de homem inclinados, gestos de leques, tudo isso em pedaços,
através das janelas, que não podiam mostrar todo o salão, mas adivinhava-se o
resto. Ele ao menos conhecia tudo, e dizia tudo à filha do escrivão. O demônio
das grandezas, que parecia dormir, entrou a fazer as suas arlequinadas no
coração do nosso homem, e ei-lo que tenta seduzir também o coração da outra.
— Conheço uma pessoa que estaria ali muito
bem, murmurou o Rangel.
E Joaninha, com ingenuidade:
— Era o senhor.
Rangel sorriu lisonjeado, e não achou que
dizer. Olhou para os lacaios e cocheiros, de libré, na rua, conversando em
grupos ou reclinados no tejadilho dos carros. Começou a designar carros: este é
do Olinda, aquele é do Maranguape; mas aí vem outro, rodando, do lado da Rua da
Lapa, e entra na Rua das Mangueiras. Parou defronte: salta o lacaio, abre a
portinhola, tira o chapéu e perfila-se. Sai de dentro uma calva, uma cabeça, um
homem, duas comendas, depois uma senhora ricamente vestida; entram no saguão, e
sobem a escadaria, forrada de tapete e ornada embaixo com dois grandes vasos.
— Joaninha, Sr. Rangel...
Maldito jogo de prendas! Justamente quando
ele formulava, na cabeça, uma insinuação a propósito do casal que subia, e ia
assim passar naturalmente à entrega da carta... Rangel obedeceu, e sentou-se
defronte da moça. D. Adelaide, que dirigia o jogo de prendas, recolhia os
nomes; cada pessoa devia ser uma flor. Está claro que o tio Rufino, sempre
gaiato, escolheu para si a flor da abóbora. Quanto ao Rangel, querendo fugir ao
trivial, comparou mentalmente as flores, e quando a dona da casa lhe perguntou
pela dele, respondeu com doçura e pausa:
— Maravilha, minha senhora.
— O pior é não estar cá o Calisto! suspirou o
escrivão.
— Ele disse mesmo que vinha?
— Disse; ainda ontem foi ao cartório, de
propósito, avisar-me de que viria tarde, mas que contasse com ele; tinha de ir
a uma brincadeira na Rua da Carioca...
— Licença para dois! bradou uma voz no
corredor.
— Ora graças! está aí o homem!
João Viegas foi abrir a porta; era o Calisto,
acompanhado de um rapaz estranho, que ele apresentou a todos em geral: —
"Queirós, empregado na Santa Casa; não é meu parente, apesar de se parecer
muito comigo; quem vê um, vê outro..." Toda a gente riu; era uma pilhéria
do Calisto, feio como o diabo, — ao passo que o Queirós era um bonito rapaz de
vinte e seis a vinte e sete anos, cabelo negro, olhos negros e singularmente
esbelto. As moças retraíram-se um pouco; D. Felismina abriu todas as velas.
— Estávamos jogando prendas, os senhores
podem entrar também, disse a dona da casa. Joga, Sr. Queirós?
Queirós respondeu afirmativamente e passou a
examinar as outras pessoas. Conhecia algumas, e trocou duas ou três palavras
com elas. Ao João Viegas disse que desde muito tempo desejava conhecê-lo, por
causa de um favor que o pai lhe deveu outrora, negócio de foro. João Viegas não
se lembrava de nada, nem ainda depois que ele lhe disse o que era; mas gostou
de ouvir a notícia, em público, olhou para todos, e durante alguns minutos
regalou-se calado.
Queirós entrou em cheio no jogo. No fim de
meia hora, estava familiar da casa. Todo ele era ação, falava com desembaraço,
tinha os gestos naturais e espontâneos. Possuía um vasto repertório de castigos
para jogo de prendas, coisa que encantou a toda a sociedade, e ninguém os
dirigia melhor, com tanto movimento e animação, indo de um lado para outro,
concertando os grupos, puxando cadeiras, falando às moças, como se houvesse
brincado com elas em criança.
— D. Joaninha aqui, nesta cadeira; D.
Cesária, deste lado, em pé, e o Sr. Camilo entra por aquela porta... Assim,
não: olhe, assim de maneira que...
Teso na cadeira, o Rangel estava atônito.
Donde vinha esse furacão? E o furacão ia soprando, levando os chapéus dos
homens, e despenteando as moças, que riam de contentes: Queirós daqui, Queirós
dali, Queirós de todos os lados. Rangel passou da estupefação à mortificação.
Era o cetro que lhe caía das mãos. Não olhava para o outro, não se ria do que
ele dizia, e respondia-lhe seco. Interiormente, mordia-se e mandava-o ao diabo,
chamava-o bobo alegre, que fazia rir e agradava, porque nas noites de festa
tudo é festa. Mas, repetindo essas e piores coisas, não chegava a reaver a
liberdade de espírito. Padecia deveras, no mais íntimo do amor-próprio; e o
pior é que o outro percebeu toda essa agitação, e o péssimo é que ele percebeu
que era percebido.
Rangel, assim como sonhava os bens, assim
também as vinganças. De cabeça, espatifou o Queirós; depois cogitou a
possibilidade de um desastre qualquer, uma dor bastava, mas coisa forte, que
levasse dali aquele intruso. Nenhuma dor, nada; o diabo parecia cada vez mais
lépido, e toda a sala fascinada por ele. A própria Joaninha, tão acanhada,
vibrava nas mãos de Queirós, como as outras moças; e todos, homens e mulheres,
pareciam empenhados em servi-lo. Tendo ele falado em dançar, as moças foram ter
com o tio Rufino, e pediram-lhe que tocasse uma quadrilha na flauta, uma só,
não se lhe pedia mais.
— Não posso, dói-me um calo.
— Flauta? bradou o Calisto. Peçam ao Queirós
que nos toque alguma coisa, e verão o que é flauta... Vai buscar a flauta,
Rufino. Ouçam o Queirós. Não imaginam como ele é saudoso na flauta!
Queirós tocou a Casta Diva. Que coisa ridícula! dizia consigo o Rangel; — uma
música que até os moleques assobiam na rua. Olhava para ele, de revés, para
considerar se aquilo era posição de homem sério; e concluía que a flauta era um
instrumento grotesco. Olhou também para Joaninha, e viu que, como todas as
outras pessoas, tinha a atenção no Queirós, embebida, namorada dos sons da
música, e estremeceu, sem saber por quê. Os demais semblantes mostravam a mesma
expressão dela, e, contudo, sentiu alguma coisa que lhe complicou a aversão ao
intruso. Quando a flauta acabou, Joaninha aplaudiu menos que os outros, e
Rangel entrou em dúvida se era o habitual acanhamento, se alguma especial
comoção... Urgia entregar-lhe a carta.
Chegou a ceia. Toda a gente entrou
confusamente na sala, e felizmente para o Rangel, coube-lhe ficar defronte de
Joaninha, cujos olhos estavam mais belos que nunca e tão derramados, que não
pareciam os do costume. Rangel saboreou-os caladamente, e reconstruiu todo o
seu sonho que o diabo do Queirós abalara com um piparote. Foi assim que tornou
a ver-se, ao lado dela, na casa que ia alugar, berço de noivos, que ele
enfeitou com os ouros da imaginação. Chegou a tirar um prêmio na loteria e a
empregá-lo todo em sedas e joias para a mulher, a linda Joaninha, — Joaninha
Rangel, — D. Joaninha Rangel, — D. Joana Viegas Rangel, — ou D. Joana Cândida
Viegas Rangel... Não podia tirar o Cândida...
— Vamos, uma saúde, seu diplomático... faça
uma saúde daquelas...
Rangel acordou; a mesa inteira repetia a
lembrança do tio Rufino; a própria Joaninha pedia-lhe uma saúde, como a do ano
passado. Rangel respondeu que ia obedecer; era só acabar aquela asa de galinha.
Movimento, cochichos de louvor; D. Adelaide, dizendo-lhe uma moça que nunca
ouvira falar o Rangel:
— Não? perguntou com pasmo. Não imagina; fala
muito bem, muito explicado, palavras escolhidas, e uns bonitos modos...
Comendo, ia ele dando rebate a algumas
reminiscências, frangalhos de ideias, que lhe serviam para o arranjo das frases
e metáforas. Acabou e pôs-se de pé. Tinha o ar satisfeito e cheio de si.
Afinal, vinham bater-lhe à porta. Cessara a farandolagem das anedotas, das
pilhérias sem alma, e vinham ter com ele para ouvir alguma coisa correta e
grave. Olhou em derredor, viu todos os olhos levantados, esperando. Todos não;
os de Joaninha enviesavam-se na direção do Queirós, e os deste vinham
esperá-los a meio caminho, numa cavalgada de promessas. Rangel empalideceu. A
palavra morreu-lhe na garganta; mas era preciso falar, esperavam por ele, com
simpatia, em silêncio.
Obedeceu mal. Era justamente um brinde ao
dono da casa e à filha. Chamava a esta um pensamento de Deus, transportado da
imortalidade à realidade, frase que empregara três anos antes, e devia estar
esquecida. Falava também do santuário da família, do altar da amizade, e da
gratidão, que é a flor dos corações puros. Onde não havia sentido, a frase era
mais especiosa ou retumbante. Ao todo, um brinde de dez minutos bem puxados,
que ele despachou em cinco, e sentou-se.
Não era tudo. Queirós levantou-se logo, dois
ou três minutos depois para outro brinde, e o silêncio foi ainda mais pronto e
completo. Joaninha meteu os olhos no regaço, vexada do que ele iria dizer;
Rangel teve um arrepio.
— O ilustre amigo desta casa, o Sr. Rangel —
disse Queirós, — bebeu às duas pessoas cujo nome é o do santo de hoje; eu bebo
àquela que é a santa de todos os dias, a D. Adelaide.
Grandes aplausos aclamaram esta lembrança, e
D. Adelaide, lisonjeada, recebeu os cumprimentos de cada conviva. A filha não
ficou em cumprimentos. — Mamãe! mamãe! exclamou, levantando-se; e foi abraçá-la
e beijá-la três e quatro vezes; — espécie de carta para ser lida por duas
pessoas.
Rangel passou da cólera ao desânimo, e,
acabada a ceia, pensou em retirar-se. Mas a esperança, demônio de olhos verdes,
pediu-lhe que ficasse, e ficou. Quem sabe? Era tudo passageiro, coisas de uma
noite, namoro de São João; afinal, ele era amigo da casa, e tinha a estima da
família; bastava que pedisse a moça, para obtê-la. E depois esse Queirós podia
não ter meios de casar. Que emprego era o dele na Santa Casa? Talvez alguma
coisa reles... Nisto, olhou obliquamente para a roupa de Queirós, enfiou-se-lhe
pelas costuras, escrutou o bordadinho da camisa, apalpou os joelhos das calças,
a ver-lhe o uso, e os sapatos, e concluiu que era um rapaz caprichoso, mas
provavelmente gastava tudo consigo, e casar era negócio sério. Podia ser também
que tivesse mãe viúva, irmãs solteiras... Rangel era só.
— Tio Rufino, toque uma quadrilha.
— Não posso; flauta depois de comer faz
indigestão. Vamos a um víspora.
Rangel declarou que não podia jogar, estava
com dor de cabeça; mas Joaninha veio a ele e pediu-lhe que jogasse com ela, de
sociedade. — "Meia coleção para o senhor, e meia para mim", disse
ela, sorrindo; ele sorriu também e aceitou. Sentaram-se ao pé um do outro.
Joaninha falava-lhe, ria, levantava para ele os belos olhos, inquieta, mexendo
muito a cabeça para todos os lados. Rangel sentiu-se melhor, e não tardou que
se sentisse inteiramente bem. Ia marcando à toa, esquecendo alguns números, que
ela lhe apontava com o dedo, — um dedo de ninfa, dizia ele consigo; e os
descuidos passaram a ser de propósito, para ver o dedo da moça, e ouvi-la
ralhar: "O senhor é muito esquecido; olhe que assim perdemos o nosso
dinheiro..."
Rangel pensou em entregar-lhe a carta por
baixo da mesa; mas não estando declarados, era natural que ela a recebesse com
espanto e estragasse tudo; cumpria avisá-la. Olhou em volta da mesa: todos os
rostos estavam inclinados sobre os cartões, seguindo atentamente os números.
Então, ele inclinou-se à direita, e baixou os olhos aos cartões de Joaninha,
como para verificar alguma coisa.
— Já tem duas quadras, cochichou ele.
— Duas, não; tenho três.
— Três, é verdade, três. Escute...
— E o senhor?
— Eu duas.
— Que duas o quê? São quatro.
Eram quatro; ela mostrou-lhas inclinada,
roçando quase a orelha pelos lábios dele; depois, fitou-o rindo e abanando a
cabeça: "O senhor! o senhor!" Rangel ouviu isto com singular deleite;
a voz era tão doce, e a expressão tão amiga, que ele esqueceu tudo, agarrou-a
pela cintura, e lançou-se com ela na eterna valsa das quimeras. Casa, mesa,
convivas, tudo desapareceu, como obra vã da imaginação, para só ficar a
realidade única, ele e ela, girando no espaço, debaixo de um milhão de
estrelas, acesas de propósito para alumiá-los.
Nem carta, nem nada. Perto da manhã foram
todos para a janela ver sair os convidados do baile fronteiro. Rangel recuou
espantado. Viu um aperto de dedos entre o Queirós e a bela Joaninha. Quis
explicá-lo, eram aparências, mas tão depressa destruía uma como vinham outras e
outras, à maneira das ondas que não acabam mais. Custava-lhe entender que uma
só noite, algumas horas bastassem a ligar assim duas criaturas; mas era a
verdade clara e viva dos modos de ambos, dos olhos, das palavras, dos risos, e
até da saudade com que se despediram de manhã.
Saiu tonto. Uma só noite, algumas horas
apenas! Em casa, aonde chegou tarde, deitou-se na cama, não para dormir, mas
para romper em soluços. Só consigo, foi-se-lhe o aparelho da afetação, e já não
era o diplomático, era o energúmeno, que rolava na cama, bradando, chorando
como uma criança, infeliz deveras, por esse triste amor do outono. O
pobre-diabo, feito de devaneio, indolência e afetação, era, em substância, tão
desgraçado como Otelo, e teve um desfecho mais cruel.
Otelo mata Desdêmona; o nosso namorado, em
quem ninguém pressentira nunca a paixão encoberta, serviu de testemunha ao
Queirós, quando este se casou com Joaninha, seis meses depois.
Nem os acontecimentos, nem os anos lhe
mudaram a índole. Quando rompeu a guerra do Paraguai, teve ideia muitas vezes
de alistar-se como oficial de voluntários; não o fez nunca; mas é certo que
ganhou algumas batalhas e acabou brigadeiro.
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