O
Dicionário
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.
— Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão
coroada. Eu sou vós, vós sois eu.
O primeiro ato do novo rei foi abolir a
tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de
Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo,
passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente
encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais
de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus
Tanoarius; — nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns
que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma
confusão deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta
segunda opinião é a única verdadeira.
Como era calvo desde verdes anos, decretou
Bernardão que todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza
ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que
a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato
em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé
esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo,
dando assim aos seus súditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de
um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão
por uma oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A
doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de
Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que
a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, — comparação que o lisonjeou muito,
— o segundo ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero,
que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende
com o casamento, vamos ao casamento.
Tratava-se, em verdade, de assegurar a
dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe
agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que
cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se
fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e
raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia
mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o
ilustre Bernardão lhe acenasse com o principado; que os tronos não andavam a
rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém, resistia à sedução.
Não resistiu muito tempo, mas também não
cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta,
declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor
madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado
em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.
Concorreram ao certâmen, que foi anônimo e
secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos;
era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e
mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo,
ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de
idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os
vencer.
Não venceu ainda assim porque o poeta amado
leu à pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão
anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções
antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as
modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do
poeta amado.
Bernardão, furioso, abriu-se com os dois
ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a
mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo
consultado algum tempo, voltaram com este alvitre:
— Nós, Alfa e Ômega, estamos designados pelos
nossos nomes para as coisas que respeitam à linguagem. A nossa ideia é que
Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de
compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.
Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em
casa durante três meses, findos os quais depositaram nas augustas mãos a obra
acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a
confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado; as
consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras
de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado,
misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.
— Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por
um decreto, e está tudo feito.
Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a
ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo
para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos
espíritos; toda a gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua
pela novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? — Pflerrgpxx,
rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a
campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se
podia fazer alguma coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e
recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o
do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros
e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se
atreveu a magoá-la, e cedeu.
Desgostoso, encerrou-se oito dias na
biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a última coisa que leu
foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam
feitos de encomenda:
O raro
Apeles,
Rubens e
Rafael, inimitáveis
Não se
fizeram pela cor das tintas;
A
mistura elegante os fez eternos.
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