O
Destinado
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ao entrar no carro, cerca das quatro horas da manhã, Delfina trazia consigo uma preocupação grave, que eram ao mesmo tempo duas. Isto pede alguma explicação. Voltemos à primeira valsa.
A primeira valsa que Delfina executou no
salão do coronel foi um puro ato de complacência. O irmão dela apresentou-lhe
um amigo, o bacharel Soares, seu companheiro de casa no último ano da academia,
uma pérola, um talento, etc. Só não acrescentou que era dono de um rico par de
bigodes, e aliás podia dizê-lo sem mentir nem exagerar nada. Curvo, gracioso,
com os bigodes espetados no ar, o bacharel Soares pediu à moça uma roda de
valsa; e esta, depois de três segundos de hesitação, respondeu que sim. Por que
hesitação? Por que complacência? Voltemos à primeira quadrilha.
Na primeira quadrilha o par de Delfina fora
outro bacharel, o bacharel Antunes, tão elegante como o valsista, embora não
tivesse o rico par de bigodes, que ele substituía por um par de olhos mansos.
Delfina gostou dos olhos mansos; e, como se eles não bastassem a dominar o
espírito da moça, o bacharel Antunes juntava a esse mérito o de uma linguagem
doce, canora, todas as seduções da conversação. Em poucas palavras, acabada a
quadrilha, Delfina achou no bacharel Antunes os característicos de um namorado.
— Agora vou sentar-me um pouco, disse-lhe ela
depois de passear alguns minutos.
O Antunes acudiu com uma frase tão piegas,
que não a ponho aqui para não desconcertar o estilo; mas, realmente, foi coisa
que deu à moça uma ideia avantajada do rapaz. Verdade é que Delfina não tinha o
espírito muito exigente; era um bom coração, excelente índole, educada a
primor, amiga de bailar, mas sem largos horizontes intelectuais: — quando
muito, um pedaço de azul visto da janela de um sótão.
Contentou-se, portanto, com a frase do
bacharel Antunes, e sentou-se pensativa. Quanto ao bacharel, ao longe,
defronte, conversando aqui e ali, não tirava os olhos da bela Delfina. Gostava
dos olhos dela, dos seus modos, elegância, graça...
— É a flor do baile, dizia ele a um parente
da família.
— A rainha, emendou este.
— Não, a flor, teimou o primeiro; e, com um
tom adocicado: — Rainha dá ideia de domínio e imposição, ao passo que a flor
traz a sensação de uma celeste embriaguez de aromas.
Delfina, logo que teve notícia desta frase,
declarou de si para si que o bacharel Antunes era um moço de grande
merecimento, e um digníssimo marido. Note-se que ela partilhava a mesma opinião
acerca da distinção entre rainha e flor; e, posto aceitasse qualquer das duas
definições, todavia achou que a escolha da flor e a sua explicação eram obra
acertada e profundamente sutil.
Ora, em tais circunstâncias, é que o bacharel
Soares pediu-lhe uma valsa. A primeira valsa era sua intenção dá-la ao bacharel
Antunes; mas ele não apareceu então, ou porque estivesse no buffet, ou porque realmente não gostasse
de valsar. Que remédio senão dá-la ao outro? Levantou-se, aceitou o braço do
par, ele cingiu-lhe delicadamente a cintura, e ei-los no turbilhão. Pararam daí
a pouco; o bacharel Soares teve a delicada audácia de lhe chamar sílfide.
— Na verdade, acrescentou ele, é valsista de
primeira ordem.
Delfina sorriu, com os olhos baixos, não
espantada do cumprimento, mas satisfeita de o ouvir. Deram outra volta, e o
bacharel Soares, com muita delicadeza, repetiu o elogio. Não é preciso dizer
que ele a conchegava ao corpo com certa pressão respeitosa e amorosa ao mesmo
tempo. Valsaram mais, valsaram muito, ele dizendo-lhe coisas amáveis ao ouvido,
ela escutando-o corada e delirante...
Aí está explicada a preocupação de Delfina,
aliás duas, porque tanto os bigodes de um como os olhos mansos do outro iam com
ela dentro do carro, às quatro horas da manhã. A mãe achou que ela estava com
sono; e Delfina explorou o erro, deixando cair a cabeça para trás, cerrando os
olhos e pensando nos dois namorados. Sim, dois namorados. A moça tentava
sinceramente escolher um deles, mas o preterido sorria-lhe com tanta graça que
era pena deixá-lo; elegia então esse, mas o outro dizia-lhe coisas tão doces,
que não mereciam tal desprezo. O melhor seria fundi-los ambos, unir os bigodes
de um aos olhos de outro, e meter esse conjunto divino no coração; mas como? Um
era um, outro era outro. Ou um, ou outro.
Assim entrou ela em casa; assim recolheu-se
aos aposentos. Antes de se despir, deixou-se cair em uma cadeira, com os olhos
no ar; tinha a alma longe, dividida em duas partes, uma parte nas mãos de
Antunes, outra nas de Soares. Cinco horas! era tempo de repousar. Delfina
começou a despir-se e despentear-se, lentamente, ouvindo as palavras do Antunes,
sentindo a pressão do Soares, encantada, cheia de uma sensação extraordinária.
No espelho, pareceu-lhe ver os dois rapazes, e involuntariamente voltou a
cabeça; era ilusão! Enfim, rezou, deitou-se, e dormiu.
Que a primeira ideia da donzela, ao acordar,
fosse para os dois pares da véspera, nada há que admirar, desde que na noite
anterior, ou velando ou sonhando, não pensou em outra coisa. Assim ao vestir,
assim ao almoçar.
— Fifina ontem conversou muito com um moço de
bigodes grandes, disse uma das irmãzinhas.
— Boas! foi com aquele que dançou a primeira
quadrilha, emendou a outra irmã.
Delfina zangou-se; mas vê-se que as pequenas
acertaram. Os dois cavalheiros tinham tomado conta dela, do seu espírito, do
seu coração; a tal ponto que as pequenas deram por isso. O que se pergunta é se
o fato de um amor assim duplo é possível; talvez que sim, desde que não haja
saído da fase preparatória, inicial; e esse era o caso de Delfina. Mas enfim,
cumpria escolher um deles.
Devine,
si tu peux, et choisis, si tu l'oses.
Delfina achou que a eleição não era urgente,
e fez um cálculo que prova da parte dela certa sagacidade e observação; disse
consigo que o próprio tempo excluiria o condenado, em proveito do destinado.
“Quando eu menos pensar, disse ela, estou amando deveras ao escolhido.”
Escusado é acrescentar que não disse nada ao
irmão, em primeiro lugar porque não são coisas que se digam aos irmãos, e em
segundo lugar porque ele conhecia um dos concorrentes. Demais, o irmão, que era
advogado novo, e trabalhava muito, estava nessa manhã tão ocupado no gabinete,
que nem veio almoçar.
— Está com gente de fora, disse-lhe uma das
pequenas.
— Quem é?
— Um moço.
Delfina sentiu bater-lhe o coração. Se fosse
o Antunes! Era cedo, é verdade, nove horas apenas; mas podia ser ele que viesse
buscar o outro para almoçar. Imaginou logo um acordo feito na véspera, entre
duas quadrilhas, e atribuiu ao Antunes o plano luminoso de ter assim entrada na
família...
E foi, foi, devagarinho, até à porta do
gabinete do irmão. Não podia ver de fora; as cortinas ficavam naturalmente por
dentro. Não ouvia falar, mas um ou outro rumor de pés ou de cadeiras. Que
diabo! Teve uma ideia audaciosa: empurrar devagarinho a porta e espiar pela
fresta. Fê-lo; e que desilusão! viu ao lado do irmão um rapaz seco, murcho,
acanhado, sem bigodes nem olhos mansos, com o chapéu nos joelhos, e um ar
modesto, quase pedinte. Era um cliente do jovem advogado. Delfina recuou
lentamente, comparando a figura do pobre-diabo com a dos dois concorrentes da
véspera, e rindo da ilusão. Por que rir? Coisas de moça. A verdade é que ela
casou daí a um ano justamente com o pobre-diabo. Leiam os jornais do tempo; lá
está a notícia do consórcio, da igreja, dos padrinhos, etc. Não digo o ano,
porque eles querem guardar o incógnito, mas procurem que hão de achar.
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