O Corvo
Aos
primeiros clarões da manhã, o casco do galeão tinha-se afundado inteiramente.
Para
qualquer lado que se olhava, o mar não tinha termo; o céu ia coberto duma
bostela de nuvens cor de chumbo, mosqueada de fulvo, que se fora erguendo duma
banda, erguendo até descobrir sobre a linha do mar uma fímbria d’alva muito
pálida, por onde a luz começou a esclarecer de manso o plaino líquido. E esse
plaino amainava e começara a perder os vagalhões…
Sobre as
águas se erguia, à maneira de torre, um grande ilhéu bronco e tisnado. Era uma
massa de fortins dentada toda em roda, por cima de cuja plataforma outras moles
gigantes se aprumavam. E havia pórticos, recantos, pátios, levadiças: a ressaca
bramia nos recôncavos da rocha babugenta; por cima as nuvens galopavam,
embebendo os goelanos e os corvos marinhos do seu chorume glácido e mortal.
Mas que
silêncio! A tormenta da noite esfalfara a seu turno os elementos, e do galeão
perdido nada restava mais do que um cadáver d’escravo, flutuante de bruços,
pela água — tísicas as pernas, os ombros ressaindo em bola sob o esforço dos deltoides
que a agonia paralisara na sua derradeira contratura, e a cabeça tão baixa e
metida n’água, entre as espáduas, que esse cadáver dir-se-ia havê-la perdido no
cepo, sob a machadada certeira dum carrasco.
Entanto a
madrugada tocava de lividezes frias a epiderme corrugosa das águas, à medida
que as nuvens se erguiam do oriente, pondo na linha d’água uma grande boca de
claridade. Essa boca escancarava para dentro duma noção de deserto e
d’infinito, sem uma sombra, sem uma vela, e toda ululante, desse soturno troar
que vem do fundo do oceano, como a imprecação de todos os milhões de seres que
ele afogou.
Crescia a
luz, e as nuvens se iam, lentas e cansadas, para outro hemisfério talvez,
descobrindo os mares. E os rochedos do ilhéu, se por um lado desciam na
paisagem, do seu prestígio fantástico, nem por isso ficaram menos lúgubres, com
as suas grandes arestas medievas, e as suas proporções de sepulcro e pedestal.
De roda, as
águas batiam-lhe de través os flancos carcomidos, com uma raiva que parecia
insistir na proporção da inutilidade do ataque. E ao largo, por todas as
bandas, não se viam senão brilhar palhetas finas na orla das ondas, umas após
outras, correndo, e resolvendo-se alfim numa babugem d’espuma efervescente.
Mau grado o
aspecto pacífico, aquela imensidade era sinistra: tintas de cólera passavam às
vezes, como maus pensamentos, por baixo da epiderme glauca do oceano; via-se
então escancarar covas na água, brotar um braço da espádua duma onda; e o
eterno marulho abrir um eco, que estrugia metalicamente em cada palheta, e
acordava no teclado das ondas o mais desconforme coro de rancor.
Sobre uma
crista de rocha estava um corvo, um corvo-marinho, velho e calculado, cujos
olhos corriam o mar à busca de sustento, e cujos lentos meneios traíam na
extrema prudência, a sagacidade cruel dos pássaros cobardes, a quem a luta
repugna, e que se ingurgitam só de podridão. Tinha as patas fincadas no
fraguedo, as asas lassas pendendo ao chão, como se estivessem decepadas, e
avançara o pescoço como quem fareja, estralejando o bico à guisa da matrácula.
Como era enorme, o vulto dele, naquela postura de caça, tinha um selo diabólico
e maldito. Era ainda noite, já o corvo tinha lobrigado o cadáver do escravo à
tona d’água, e estivera a espreitá-lo dali, do seu reduto, partilhado entre a
voluptuosa sensação da carne podre, e o pavor d’avançar sobre uma presa
suspeita, que ele não via bem se vivia ou estava morta.
E de cima da
rocha o seu olhar espiava dum lado os outros corvos, e doutro lado o flutuar do
corpo, cada vez mais dobrado, e que dir-se-ia lutar contra o impulso das ondas,
para fugir às voracidades da ave impassível e satânica.
Do seu pouso
elevado enfim o corvo veio descendo, em pulos mansos, aos contrafortes mais
baixos do rochedo, em cuja babosa escarpa vinham partir-se os cachões da
ressaca.
Aqui se
detinha um pouco a olhar de lado a presa cobiçada, além se deixava escorregar
pelas salsugens marinhas, recuando aos repoupos, com um pavor cobarde, de cada
vez que a vaga vinha marrar com o negro à penedia.
Houve um
momento em que o refluxo das águas, mais forte, desviou o cadáver do ilhéu,
cerca duns metros, tomando-o nas curvas dum remoinho brusco que depois o
arrojou furiosamente, para uma distância além da penedia.
E isto
assolou o apetite sinistro do pássaro, cujas asas se abriram de repente.
De manso, ao
rés d’água, sem um grasnido que aos outros desse alarme do nefando repasto,
começou ele a voar, numa espiral frenética de gula, que descia e subia, em voos
de seta, e tocava ao de leve a carne do cadáver, fugindo, voltando, até lhe
ferrar de raspão a primeira bicada.
Sem receio
de rivais, aquele funéreo festim haveria parecido à ave delicioso. Mas era
evidente que o ciúme de partilhar o banquete o desesperara, e desta vez o corvo
tinha pressa em chegar aos bocados saborosos.
...Aí começa
uma luta entre o corvo que pula sobre as espáduas do escravo, a ver se o volta,
pra lhe sorver os olhos, como regalo primeiro da orgia perpetrada, e o cadáver
que se defende à injúria, ocultando cada vez mais a cabeça sob a água, e
deixando os braços oscilar, como duas inúteis e inertes barbatanas.
Por muito
tempo esta manobra prossegue, e à medida que avança, a impaciência da ave vai
num crescendo de cólera inarrável. Ela abre as asas, ergue-se um instante no
ar, para cair depois a todo o peso, sobre um ombro do náufrago, a provocar
oscilação que lhe desloque o corpo daquela postura passiva de defesa. Ela lhe
rasga as carnes com as cortantes lâminas do bico, que se crava mais fundo, e
mais, cada vez mais, na proporção da certeza que tem na impunidade. Mas tudo é
inútil. O negro lá continua de bruços sobre as ondas, hirtas as pernas, o
cavername do tronco abroquelado em glaciais musculaturas, os ombros sempre
unidos, a cabeça debaixo do peito, como em vivo fizera, quando o chicote do amo
lhe arava as carnes, delas fazendo suar martírio e sangue. De roda, tudo agora
se alarga sob o coral de luz que a manhã canta.
As nuvens
foram-se: o sol rebenta final à boca do grande deserto d’água, e pacifica-lhe
as fúrias coas refulgências geniais da sua claridade. E nada é mais doce do que
esse murmúrio sem fim das grandes águas, horríssono ainda há pouco, agora
lírico e profundo, como o põem entoado pelos efebos, na terra helena, depois
duma batalha.
Só o corvo
prossegue na sua tarefa exaustinada, e imagem do ódio, ei-lo armando em força a
cobardia, requintando a vingança, tripudiando sobre a impunidade — como esses
vencidos que se desforram da humilhação sofrida, indo aos cemitérios esbofetear
os cadáveres dos vencedores.
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