O cemitério
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Pelas ruas de túmulos, fomos
calados. Eu olhava vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam,
tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e nas encostas das
colinas aos lados. Algumas pareciam se olhar com afeto, roçando-se
amigavelmente; em outras, transparecia a repugnância de estarem juntas. Havia
solicitações incompreensíveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos
arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o
esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que
ela traz às condições e às fortunas.
Amontoavam-se esculturas de
mármore, vasos, cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra
tosca, faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam complicações de matos e
plantas — coisas brancas e delirantes, de um mau gosto que irritava. As
inscrições exuberavam; longas, cheias de nomes, sobrenomes e datas, não nos
traziam à lembrança nem um nome ilustre sequer; em vão procurei ler nelas
celebridades, notabilidades mortas; não as encontrei. E de tal modo a nossa
sociedade nos marca um tão profundo ponto, que até ali, naquele campo de
mortos, mudo laboratório de decomposição, tive uma imagem dela, feita
inconscientemente de um propósito, firmemente desenhada por aquele acesso de
túmulos pobres e ricos, grotescos e nobres, de mármore e pedra, cobrindo
vulgaridades iguais umas às outras por força estranha às suas vontades, a
lutar...
Fomos indo. A carreta, empunhada
pelas mãos profissionais dos empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas,
até que chegou à boca do soturno buraco, por onde se via fugir, para sempre do
nosso olhar, a humildade e a tristeza do contínuo da Secretaria dos Cultos.
Antes que lá chegássemos, porém,
detive-me um pouco num túmulo de límpidos mármores, ajeitados em capela gótica,
com anjos e cruzes que a rematavam pretensiosamente.
Nos cantos da lápide, vasos com
flores de biscuit e, debaixo de um
vidro, à nívea altura da base da capelinha, em meio-corpo, o retrato da morta
que o túmulo engolira. Como se estivesse na rua do Ouvidor, não pude suster um
pensamento mau e quase exclamei:
— Bela mulher!
Estive a ver a fotografia e logo
em seguida me veio à mente que aqueles olhos, que aquela boca provocadora de
beijos, que aqueles seios túmidos, tentadores de longos contatos carnais,
estariam àquela hora reduzidos a uma pasta fedorenta, debaixo de uma porção de
terra embebida de gordura.
Que resultados teve a sua beleza
na terra? Que coisas eternas criaram os
homens que ela inspirou? Nada, ou
talvez outros homens, para morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se
perdeu; tudo mais não teve existência, nem mesmo para ela e para os seus
amados; foi breve, instantâneo, e fugaz.
Abalei-me! Eu que dizia a todo o
mundo que amava a vida, eu que afirmava a minha admiração pelas coisas da
sociedade — eu meditar como um cientista profeta hebraico! Era estranho!
Remanescente de noções que se me infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não
percebera! Quem pode fugir a elas?
Continuando a andar, adivinhei as
mãos da mulher, diáfanas e de dedos longos; compus o seu busto ereto e cheio, a
cintura, os quadris, o pescoço, esguio e modelado, as espáduas brancas, o rosto
sereno e iluminado por um par de olhos indefinidos de tristeza e desejos...
Já não era mais o retrato da
mulher do túmulo; era de uma, viva, que me falava.
Com que surpresa, verifiquei
isso.
Pois eu, eu que vivia desde os
dezesseis anos, despreocupadamente, passando pelos meus olhos, na Rua do
Ouvidor, todos os figurinos dos jornais de modas, eu me impressionar por aquela
menina do cemitério! Era curioso.
E, por mais que procurasse
explicar, não pude.
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