O cavalo
branco de Nanko
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Isto aconteceu há cerca de mil anos, em terras japonesas: um cavalo, que o
grande artista Kanaoka desenhara num biombo do templo de Ninnadji, perto de
Kioto, era uma tão bela criação, cheia de verdade e palpitante de vida, que
todas as noites se escapava do papel para ir galopar pelos campos em roda,
culturas fora, devastando a esmo as sementeiras; e o caso dava-se, claramente,
com magno espanto e raiva dos campônios, que o perseguiam à pedrada. Estes campônios,
impressionados pelas formas incomparáveis do animal, persuadiram-se por fim de
que ele não podia ser outro senão o cavalo de Kanaoka; e a persuasão
converteu-se um dia em certeza absoluta, quando viram na pintura as patas do
travesso, úmidas ainda da lama fresca dos caminhos. Sem mais cerimônias, arremeteram
contra a tela e esfuracaram-lhe os olhos; e consta que nunca mais houve queixas
de estragos nas fazendas.
Ainda outro cavalo de Kanaoka, que era mestre no gênero, cavalo
desenhado numa parede interior do palácio imperial, tinha o vezo de ir devorar
pelos jardins as flores tenras do açafrão; e só cessou a brincadeira quando
alguém se lembrou de retocar a obra, amarrando o patife à parede com um pedaço
de corda pintada para o efeito.
***
Ora bem. De muitas maravilhas é sem dúvida capaz a mão inspirada dum
artista!... Esses dois cavalos de Kanaoka, nascidos duma gota de tinta e de
algumas curvas humorísticas de pincel, mas em todo o caso ungidos do sopro
sublime do exímio mestre, animavam-se por momentos, soltavam-se da tela, e aí
iam eles!... Felizes boêmios eram e felizes tempos eram. Arte criadora, arte
radiosa das épocas passadas, por que não vais tu regendo, ainda e sempre, os
destinos de todas as coisas deste mundo?...
Nestes dias que correm, deslavados e tristes, mesmo no Japão, e não
cessando de divagar no mesmo assunto de cavalos, confesso francamente a quem me
ler, que nada me mortifica tanto como o espetáculo dos cavalos sagrados dos
templos xintoístas. Ora aqui estão umas cavalgaduras bem autênticas, bem vivas,
bem reais, de carne e osso; e que, se fossem lidas em coisas de arte antiga
nacional — mas não são, — por certo muito invejariam as simples criações no
papel da mão de Kanaoka. Neste país japonês, onde parece que os seres, homens e
bichos, nasceram e vivem num banho perene de sorrisos, mais desoladora se
afigura ainda a condição dos pobres brutos, que um dia inspiraram estas linhas
melancólicas que escrevo.
Se pretendo ser de certo modo compreendido nas divagações que vão
seguir-se — e é óbvio que pretendo, — convém que me detenha um pouco, falando
de templos xintoístas em geral. O xintoísmo, da palavra shinto (a estrada dos deuses), é a crença primitiva, patriarcal,
das épocas remotas no Japão; e conservada até hoje, a despeito da grande
propaganda de Buda que se fez e se faz, é ainda a religião nacional, a religião
do Estado. O xintoísmo é a adoração pelo Sol, pelo Imperador seu filho, por
todas as forças da criação, pelas divindades protetoras, pelos gênios, pelos
nobres, pelos heróis e pelos sábios. O templo de shinto é o recinto consagrado
a uma dessas invocações. Distingue-se antes de tudo pelo torii, o grande arco de pedra ou de madeira avizinhando do lugar, e
como que indicando o caminho ao peregrino. Torii
quer dizer descanso dos pássaros; e
assim ficamos já com uma noção primeira e delicadíssima na essência, aprendendo
que no campo sagrado tudo é paz, tudo é remanso, pois que até aos pardais,
cansados dos voos doidos que fizeram à aventura, se oferece um poleiro protetor
onde descansem. Ao torii sucedem-se o
amplo portal e o vasto espaço murado; e lá dentro, símbolos, alfaias duma
religião toda de amor, são a paisagem graciosa, os jardins verdes, os bosques
frescos, as rochas musgosas, os lagos quietos; aqui é a cisterna destinada às
abluções preliminares dos crentes; ali são as monumentais lanternas de granito,
esverdeadas pelos anos; além o nicho escarlate votado a Inari, raposa, Deus do
arroz, não sei que mais, em todo o caso coisa muito santa; depois as
construções ligeiras, de madeira nua, dispersas, e onde em dias festivos as
donzelas do culto dançam ao som de estranhos ritornelos, ou silenciosos
oficiantes abençoam as multidões, agitando sobre as cabeças reverentes um
penacho de papel branco, emblema de pureza.
Nos templos mais faustuosos, não faltará outro acessório: o nicho
garrido, a pequenina estrebaria, onde o cavalo sagrado mastiga eternamente a
insípida palha do seu ofício. O deus, ou gênio do templo, tem o seu cavalo de
estado; é justo. É geralmente um cavalito albino, de pelo branco e olho azul
celeste, talvez porque se ligue uma certa ideia de candura a tal enfermidade. O
deus serve-se dele como entende; alguém, a quem pergunto informações do cargo,
diz-me que é o Ó tsukae mono... assim
como quem diz: o nobre moço de recados.
Admitamos pois que faz em regra os recados do deus, o que é já muito, e um alto
mister, e por isso é sagrado e tem honras de santo; e em lances difíceis, mais
distintos serão ainda os seus serviços. Ardeu há meses um dos mais famosos
templos do Japão, em Yamada; não sei que coisas do culto foram depois
encontradas ao abrigo e longe do sinistro; — foi o cavalo que as transportou
para lá. — É voz do povo que em Osaka, em dois templos de shinto, desapareceram
os cavalos quando rebentou a última guerra com a China; — está-se mesmo a
perceber que as almas desses deuses montaram nos ginetes para irem aos campos
do inimigo, abençoar as tropas de Nippon. — Tais casos, porém, são raros, são
raríssimos, nesta época positivista, tão escassa de milagres; e os cavalos
brancos sagrados vivem e morrem amarrados à manjedoura, passeando uma só vez em
cada ano, no dia da festa do templo, incorporados então triunfalmente à
procissão, que percorre as ruas da cidade. É o encerro absoluto, é a constante
imobilidade tediosa, sem mesmo as furtivas escapadelas dos cavalos pintados de
Kanaoka. A palha abunda-lhes; acercam-se deles as crianças e as mulheres, que
os adoram, e compram à velha, que por ali está cerca do estábulo, montinhos de
feijões cozidos, que oferecem sobre as palmas das mãos rosadas, aos focinhos
nostálgicos dos rocins.
***
Eu conheço uns poucos desses brutos, mas tenho mais íntimas relações com
o de Nanko, um templo aqui em Kobe, célebre, dedicado à memória de Kusunoki Masashige,
que foi um nobre guerreiro e patriota.
No amplo santuário do templo estabeleceu-se uma feira permanente, dia e
noite, mas principalmente de noite, atrativa e frequentada por passeantes e
devotos. A vida inteira japonesa passa, perpassa aqui; quem já folheou os
álbuns de desenho de Hokusai, e neles se interessou, deve depois votar horas
inteiras a esta história viva e flagrante do povo de Nippon; e assim completar,
quanto possível, a noção que haja formado deste povo, um dos mais
interessantes, e o mais simpático talvez, do mundo inteiro.
A gente aflui de toda a parte, daqui, dali, d'além... Junto ao portal,
condensa-se o formigueiro humano, em centenas, em legiões de cabecinhas; a
pouco e pouco, sedas roçando sedas, risos correspondendo a risos, vai-se
entrando, ao som dum contínuo ruído de socos e sandálias, que se arrastam pelo
lajedo ressonante. Na escuridão da noite, o recinto define-se a princípio como
um negrume vago, complicado de sombras de arvoredo, cheio de gente e de
miríades de luzinhas bruxuleantes. Depois os olhos habituam-se. Vai por aí
fora, direitinha ao templo, a grande rua principal, bordada de árvores várias,
lajeada; pelos lados espraia-se o labirinto das passagens, por entre os
alinhamentos das barracas, das tendas, das quitandas, armadas de improviso,
estiradas pelo chão; e é, à luz frouxa das lâmpadas, a exposição fantástica das
cores, chispando em disparates como num campo imenso de caleidoscópio,
correspondendo às mil indústrias que se estendem... Roupas, perfumarias, livrinhos,
bocetas, charões, porcelanas, cachimbos, ferramentas, utensílios domésticos,
bolos, brinquedos, flores, plantas, tudo: a indústria inteira do Japão, se
condensa, coalha em museu. Além algumas chayas
vendem refrescos; as criadinhas convidam a turba a que se acerque. Mais longe,
são os teatros populares, um cobre por entrada: — cães sábios, atletas,
abortos, serpentes, panoramas; — ou a sala do hanashi, da palestra, onde um patusco entretém os fregueses,
contando-lhes histórias. Num espaço mais livre, um sujeito com um grafofone, um
dentista, um inventor de remédios milagrosos, discursam, explicam, profetizam.
O formigueiro humano ondula, alastra-se, sem desígnio, à aventura. As
sociedades ocidentais nada nos oferecem de parecido. Isto, aqui, é a multidão,
sem pressas, sem gritos, sem exasperos, tal como no-la apresentam todas as
grandes tribos do Oriente; é o cardume de gente, retida na praça pública como o
sargaço em mares tranquilos; aqui, quadro requintadamente gentil e sorridente,
inconfundível, mas que ainda nos recorda as aglomerações da plebe nos templos
de Cantão ou nos bazares de Aden, ou do Cairo; e, subindo nos tempos e
retrogradando em espírito vinte séculos, quase nos desdobra aspetos vividos,
embora fugidios, da Jerusalém bíblica, nos seus magotes de homens vestidos de
túnicas rojantes, vagueando, palestrando de manso, alongando os braços nus em
gestos calmos e solenes.
Querer inventariar os tipos, fora insânia, — é a massa inteira popular
despreocupada, risonha, gozando de viver. — Passam famílias, — o pai, a mãe, um
filho preso ao seio e os outros pela mão; — ranchos de soldados e ranchos de
marujos; ranchos de raparigas; moços, alguns indo a caminho do bairro dos
prazeres, Fukuwara, que está perto; peregrinos; mendigos; vadios; larápios; estrangeiros.
Os garotos assopram nas trombetas que compraram, ou mordem em bolos ou em
frutos. Aquela musumé fresca, vestida
apenas do seu kimono de Verão, azul e
branco, já vai de volta; e leva dependurada das mãozitas uma gaiola em
miniatura, cheia de reluzentes pirilampos. Uma velha rejubila com o vaso de
belos lírios que mercou. É aqui em Nanko, no mercado especial das plantas, que
se revela bem o mimo desta gente em jardinagem, — delicados arbustos, havendo
merecido longos desvelos de cultura, seleção graciosa de florescências; — e é
de ver-se o afã na escolha, o brilho dos olhitos cobiçosos, dos grupos em roda
da exposição dos pinheirinhos, das cerejeiras, dos bambus, dos crisântemos, dos
lírios, da wisteria. — O espírito simples, o desejo fácil de contentar, a
puerilidade quase infantil, estampa-se em todos esses rostos, e dom gentil da
mão industriosa, ressalta de todos os artigos. Quem tiver duas moedas de cobre
na bolsinha — e todos as terão, — pode comprar um objeto de arte; compra-o sem
dúvida, e no júbilo da face transparece a alegria plena duma alma satisfeita.
Dessa manifesta inocência de sentimentos, dessa psicologia alheia de
complicações e de tormentos, deve em rigor depreender-se uma superioridade de
raça, uma animalidade esplêndida e exuberante, muito distanciando-se da
vibratilidade mórbida das raças exaustas do Ocidente; e é isto que vagamente se
adivinha na esbelteza dos vultos que vão passando, na flexibilidade harmônica
das curvas, no jogo patético da mímica, na confiança serena com que o pé
dominador pousa no chão. Feliz povo! Feliz povo de ontem, de hoje, e
possivelmente de amanhã... Não é outra a conclusão sincera do nosso exame
passageiro.
***
No entretanto, a um canto, no estábulo garrido, boceja o cavalo branco
sagrado de Kusunoki Masashige. Por velha simpatia, procuro-o sempre, e passo
quase horas inteiras, a vê-lo, a namorá-lo. Quantos anos terá de sacerdócio?
Dez anos? Quinze anos?... Não lhe despertam zanga nem prazer as minhas visitas
repetidas. Cabeça baixa, o olho azul mortiço, parece nada querer, nada sentir,
nada sofrer e nada desejar. É quase de papelão, à força de insipidez, o
garranito. Ao burburinho, à luz, às cores, às músicas distantes, é insensível.
Ao belo verde do arvoredo é insensível; pelos modos, não se recorda já das
paisagens por onde espinoteou... O seu olho azul-celeste, vítreo, provavelmente
míope, relanceia com a mesma apática frieza, as mil cenas do acaso; à gente que
o encara, — ralé da praça pública, garotos, cavalheiros, acaso um general,
acaso um conde, acaso um inglês de nobres pergaminhos, — vota a mesma
indiferença irreverente que às moscas importunas que pousam, por enxames, sem
que o comovam, na mucosa descorada da sua pobre focinheira. Só uma vez,
presumo, o vi enternecido: relinchava uma égua algures, longe sem dúvida;
levemente se lhe agitaram as orelhas, como se uma vaga reminiscência, penso eu,
pelo bestunto lhe correra; e pareceu-me então ver o seu olho azul-celeste
arrasar-se de lágrimas, pareceu-me... Às vezes, avança de bom grado a língua, a
ir lamber as mãos das raparigas; por capricho talvez, e por hábito, porque são
aquelas mãos que costumam oferecer-lhe, como óbolo piedoso, os feijões cozidos
comprados à velhita que por ali anda, próximo do estábulo...
Eis todo o seu romance.
***
E mais nada. Disse tudo. Se alguém, por mais curioso, quiser ainda
arrancar-me o segredo desta minha estranha simpatia pelos cavalos sagrados dos
templos de shinto, — tanto mais estranha simpatia, quanto é certo que não me
acusa a consciência de jamais ter pertencido a qualquer sociedade protetora de
animais, — aqui lhe ofereço, a esse alguém, a seguinte estupenda confidência.
No Japão, se não erra o meu juízo, só os cavalos dos templos são tristes. Eles,
e eu. Há entre nós misteriosas analogias; não gracejo. Após longos estudos da
própria carcaça, acabo de concluir — imaginem o quê!... — que também sou
albino. Não pela anomalia congênita da falta de pigmento corante da pele, dos
cabelos e dos olhos, concordo; albino psíquico porém — não sei se me faço
perceber... — albino na alma dolente, na vibratilidade exangue, na apatia da
vida, após os mil baldões da sorte, e desfeita no ar a última bola de sabão das
minhas ilusões. Do meu pouso, que comparo sem grande esforço ao estábulo de Nanko,
assisto ao contorno das cenas e ao perpassar da turba; mas alheado de tudo, e
esquecido até das saudades da paisagem serena onde vivi os meus primeiros anos.
Alvoroços de afetos? amores? fazem favor de me dizer para onde fugiram essas
quimeras aladas da minha pobre juventude?... Quando muito, como o cavalo de
Nanko, mas ainda mais desinteressado do que ele, porque me sinto naturalmente
excluído do quinhãozito de feijões que pode seduzi-lo, quando muito, se diviso
essas musumés, com as suas mãozitas
muito alvas, muito mimosas, tenho por essas mãos, vagas ternuras: aqui, neste
meio onde me vejo, são-me elas o emblema dos carinhos do sexo delicado; e
incutem no meu espírito uma noção de paz possível, — aqui, algures, não sei
onde, — no lar da família, quando abençoado pelos fados...
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