Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Senhor Barreto, não falte amanhã, disse o
chefe de seção; olhe que temos de dar essa cópia ao ministro.
— Não falto, venho cedo.
— Mas, se vai ao baile, acorda tarde.
— Não, senhor, acordo cedo.
— Promete?
— Acordo cedo, deixe estar, a cópia fica
pronta. Até amanhã.
Qualquer pessoa menos advertida afirma logo
que o amanuense Barreto acordou tarde no dia seguinte, e engana-se. Mal tinham
batido as seis horas, abriu os olhos e não os fechou mais. Costumava acordar às
oito e meia ou nove horas, sempre que se recolhia às dez ou onze da noite; mas,
andando em teatros, bailes, ceias e expedições noturnas, acordava geralmente às
onze horas da manhã. Em tais casos, almoçava e ia passar o resto do dia na
charutaria do Brás, Rua dos Ourives. A reputação de vadio, preguiçoso,
relaxado, foi o primeiro fruto desse método de vida; o segundo foi não andar
para diante. Havia já oito anos que era amanuense; alguns chamavam-lhe o
marca-passo. Acrescente-se que, além de falhar muitas vezes, saía cedo da
repartição ou com licença ou sem ela, às escondidas. Como é que lhe davam
trabalhos e trabalhos longos? Porque tinha bonita letra e era expedito; era
também inteligente e de compreensão fácil. O pai podia tê-lo feito bacharel e
deputado; mas era tão estroina o rapaz, e de tal modo fugia a quaisquer estudos
sérios, que um dia acordou amanuense. Não pôde dar crédito aos olhos; foi
preciso que o pai confirmasse a notícia.
— Entras de amanuense, porque houve reforma
na Secretaria, com aumento de pessoal. Se houvesse concurso, é provável que
fugisses. Agora a carreira depende de ti. Sabes que perdi o que possuía; tua
mãe está por pouco, eu não vou longe, os outros parentes conservam a posição
que tinham, mas não creio que estejam dispostos a sustentar malandros.
Aguenta-te.
Morreu a mãe, morreu o pai, o Barreto ficou
só; ainda assim achou uma tia que lhe dava dinheiro e jantar. Mas as tias
também morrem; a dele desapareceu deste mundo dez meses antes daquela cópia que
o chefe de seção lhe confiou, e que ele ficou de concluir no dia seguinte,
cedo.
Cedo acordou, e não foi pequena façanha,
porque o baile acabou às duas horas, e ele chegou à casa perto das três. Era um
baile nupcial; casara-se um companheiro de colégio, que era agora advogado
principiante, mas ativo e de futuro. A noiva era rica, neta de um inglês, que
meteu em casa cabeças louras e suíças ruivas; a maioria, porém, compunha-se de
brasileiros e de alta classe, senadores, conselheiros, capitalistas, titulares,
fardas, veneras, ricas joias, belas espáduas, caudas, sedas, e cheiros que
entonteciam. Barreto valsou como um pião, fartou os olhos em todas aquelas
coisas formosas e opulentas, e principalmente a noiva, que estava linda como as
mais lindas. Ajuntai a isso os vinhos da noite, e dizei se não era caso de
despertar ao meio-dia.
A preocupação da cópia podia explicar esse
madrugar do amanuense. É certo, porém, que a excitação dos nervos, o tumulto
das sensações da noite, foi a causa originária da interrupção do sono. Sim, ele
não acordou, propriamente falando; interrompeu o sono, e nunca mais pôde
reatá-lo. Perdendo a esperança, consultou o relógio, faltavam vinte minutos
para as sete. Lembrou-se da cópia. — É verdade, tenho de acabar a cópia...
E assim deitado, pôs os olhos na parede,
fincou ali os pés do espírito, se me permitem a expressão, e deu um salto no
baile. Todas as figuras, danças, contradanças, falas, risos, olhos e o resto,
obedeceram à evocação do jovem Barreto. Tal foi a reprodução da noite, que ele
chegou a ouvir a mesma música às vezes, e o rumor dos passos. Reviveu as gratas
horas tão velozmente passadas, tão próximas e já tão remotas.
Mas, se esse rapaz ia a outros bailes,
divertia-se, e, pela própria roda em que nascera, costumava ter daquelas
festas, que razão havia para a excitação particular em que ora o vemos? Havia
uma longa cauda de seda, com um bonito penteado por cima, duas pérolas sobre a
testa, e dois olhos embaixo da testa. Beleza não era; mas tinha graça e
elegância de sobra. Perdei a ideia de paixão, se a tendes; pegai na de um
simples encontro de salão, um desses que deixam algum sulco, por dias, às vezes
por horas, e se desvanecem sem grandes saudades. Barreto dançou com ela,
disse-lhe algumas palavras, ouviu outras, e trocou meia dúzia de olhares mais
ou menos longos.
Entretanto, não era ela a única pessoa que se
destacava no quadro; vinham outras, começando pela noiva, cuja influência no
espírito do amanuense foi profunda, porque lhe deu a ideia de casar.
— Se eu me casasse? perguntou ele com os
olhos na parede.
Tinha vinte e oito anos, era tempo. O quadro
era fascinador; aquele salão, com tantas ilustrações, aquela pompa, aquela
vida, as alegrias da família, dos amigos, a satisfação dos simples convidados,
e os elogios ouvidos a cada momento, às portas, nas salas: — “Magnífica festa!”
— “A noiva é linda” — “Casamento feliz!” — “Que me diz a este baile?” — “Oh! esplêndido!”
— Todas essas vistas, pessoas e palavras eram de animar o nosso amanuense, cuja
imaginação batia as asas pelo estreito âmbito da alcova, isto é, pelo universo.
De barriga para o ar, as pernas dobradas, e
os braços cruzados sobre a cabeça, Barreto formulava, pela primeira vez, um
programa de vida, olhava para as coisas com seriedade, e chamava a postos as
forças todas que pudesse ter em si para lutar e vencer. Oscilava entre a
recordação e o raciocínio. Ora via as galas da véspera, ora dava nos meios de
as possuir também. A felicidade não era um fruto que fosse preciso ir buscar à
lua, pensava ele; e a imaginação provava que o raciocínio era verdadeiro,
mostrando-lhe o noivo da véspera e na cara deste a sua própria.
— Sim, dizia Barreto consigo, basta um pouco
de boa vontade, e eu posso ter muita. Há de ser aquela. Parece que o pai é
rico; ao menos terá alguma coisa para os primeiros tempos. O resto é comigo. Um
mulherão! O nome é que não é grande coisa: Ermelinda. O nome da noiva é que é
realmente delicioso: Cecília! Manganão! Ah! manganão! Achou noiva para o seu pé...
“Noiva para o seu pé” fê-lo rir e mudar de
posição. Voltou-se para o lado, e olhou para os sapatos, a certa distância da
cama. Lembrou-se que podiam ter sido roídos das baratas, esticou o pescoço, viu
o verniz intacto, e ficou tranquilo. Mirou os sapatos com amor; não só eram
bonitos, bem feitos, mas ainda acusavam um pé pequeno, coisa que lhe enchia a
alma. Tinha horror aos pés grandes, — pés de carroceiro, dizia, pés do diabo. Chegou
a tirar um dos seus, de baixo do lençol, e contemplá-lo por alguns segundos.
Depois encolheu-o novamente, coçou-o com a unha de um dos dedos do outro pé,
gesto que lhe trouxe à memória o adágio popular — uma mão lava a outra, — e
naturalmente sorriu. Um pé coça outro, pensou. E, sem advertir que uma ideia
traz outra, pensou também nos pés das cadeiras e nos pés dos versos. Que eram
pés de verso? Dizia-se verso de pé quebrado. Pé de flor, pé de couve, pé de
altar, pé de vento, pé de cantiga. Pé de cantiga seria o mesmo que pé de verso?
A memória neste ponto cantarolou uma copla ouvida em não sei que opereta, copla
realmente picante e música mui graciosa.
— Tem muita graça a Jenny! disse ele,
concertando o lençol nos ombros.
A cantora fez-lhe lembrar um sujeito grisalho
que a ouvia uma noite, com tais derretimentos de olhos que fez rir alguns
rapazes. Barreto riu também, e mais que os outros, e o sujeito grisalho avançou
para ele, furioso, e agarrou-o pela gola. Ia dar-lhe um murro; mas o nosso
Barreto deu-lhe dois, com tal ímpeto que o obrigou a recuar três passos. Gente
no meio, gritos, curiosos, polícia, apito, e foram ter ao corpo da guarda. Aí
soube-se que o sujeito grisalho não avançara para o moço com o fim de se
despicar do riso, por imaginar que se risse dele, mas por supor que estava
mofando da cantora.
“— Eu, senhor?”
“— Sim, senhor”.
“— Mas se até a aprecio muito! Para mim é a
melhor que temos atualmente nos nossos teatros”.
O sujeito grisalho acabou convencido da
veracidade de Barreto, e a polícia mandou-os em paz.
— Um homem casado! pensava agora o rapaz,
recordando o episódio. Eu, quando casar, hei de ser coisa muito diferente.
Tornou a pensar na cauda e nas pérolas do
baile.
— Realmente, um bom casamento. Não conhecia
outra mais elegante... Mais bonita havia no baile; uma das Amarais, por
exemplo, a Julinha, com os seus grandes olhos verdes, — uns olhos que faziam
lembrar os versos de Gonçalves Dias... Como eram mesmo? Uns olhos cor de
esperança...
Que, ai,
nem sei qual fiquei sendo
Depois
que os vi!
Não se lembrando do princípio da estrofe,
teimou por achá-lo, e acabou vencendo. Repetiu a estrofe, uma, duas, três
vezes, até decorá-la inteiramente, para não esquecê-la mais. Bonitos versos!
Ah! era um grande poeta! Tinha composições que haviam de ficar perpétuas na
nossa língua, como o Ainda uma vez, adeus!
E Barreto, em voz alta, recitou este começo:
Enfim te
vejo! Enfim, posso,
Curvado
a teus pés, dizer-te
Que não
cessei de querer-te
Pesar de
quanto sofri!
Muito
penei! Cruas ânsias,
De teus
olhos apartado,
Houveram-me
acabrunhado
A não
lembrar-me de ti.
— Realmente, é bonito! exclamou outra vez de
barriga para o ar. E aquela outra estrofe, — como é? — aquela que acaba:
Quis
viver mais, e vivi!
Desta vez, trabalho em vão; a memória não lhe
acudiu com os versos do poeta; em compensação, trouxe-lhe uns do próprio
Barreto, versos que ele sinceramente rejeitou do espírito, vexado da
comparação. Para consolar o amor-próprio, disse que era tempo de tratar de
negócios sérios. Versos de criança. Toda a criança faz versos. Vinte e oito
anos; era tempo de seriedade. E o casamento voltou, como um parafuso, a
penetrar no coração e na vontade do nosso rapaz. A Julinha Amaral não era
grande negócio, e demais já andava meio presa ao filho do conselheiro Barros,
que advogava com o pai, e diziam que ia longe. Todas as filhas do Barão de
Meireles eram bonitas, menos a mais moça, que tinha cara de pau. Verdade é que
dançava como um anjo.
— Mas a Ermelinda... Sim, a Ermelinda não é
tão bonita, mas também não se pode dizer que seja feia; tem só os olhos
miudinhos demais e o nariz curto, mas é simpática. A voz é deliciosa. E tem
graça, o ladrão, quando fala. Ainda ontem...
Barreto recordou, salvo algumas palavras, um
diálogo que tivera com ela, no fim da segunda valsa. Passeavam: ele, não
sabendo bem que dissesse, falou do calor.
— Calor? disse ela admirada.
— Não digo que esteja quente, mas a valsa
agitou-me um pouco.
— Justamente, acudiu a moça; em mim produziu
efeito contrário;
estou com frio.
— Então, constipou-se.
— Não, é costume antigo. Sempre que valso,
tenho frio. Mamãe acha que eu vim ao mundo para contrariar todas as ideias. O
senhor espanta-se?
— Seguramente. Pois a agitação da valsa...
— Aqui temos um assunto, interrompeu
Ermelinda; era o único modo de tirar alguma coisa do calor. Se concordássemos,
estava esgotada a matéria. Assim, não; teimo em dizer que valsar faz frio.
— Não é má ideia. Então, se eu lhe disser que
valsa muito mal...
— Eu acredito o contrário, e provo...
concluiu ela, estendendo-lhe a mão.
Barreto cingiu-a ao turbilhão da valsa. De
fato, a moça valsava bem; o que mais impressionou o nosso amanuense, além da
elegância, foi o desembaraço e a graça da conversação. As outras moças não são
assim, disse ele consigo, depois que a conduziu a uma cadeira. E ainda agora
repetia a mesma coisa. Realmente, era espirituosa. Não podia achar melhor
noiva, — de momento, ao menos; o pai era bom homem; não o recusaria por ser
amanuense. A questão era aproximar-se dela, ir à casa, frequentá-la; parece que
eles tinham assinatura no Teatro Lírico. Vagamente lembrava-se de lhe haver
ouvido isso, na véspera; e pode ser até que com intenção. Foi, foi intencional.
Os olhares que ela lhe lançou traziam muita vida. Ermelinda! Bem pensado, o nome
não era feio. Ermelinda! Ermelinda! Não podia ser feio um nome que acabava pela
palavra linda. Ermelinda! Barreto deu por si a dizer alto:
— Ermelinda!
Assustou-se, riu-se, repetiu:
— Ermelinda! Ermelinda!
A ideia de casar fincou-se-lhe de vez no
cérebro. De envolta com ela vinha a de figurar na sociedade por seus próprios
méritos. Era preciso deixar a crisálida de amanuense, abrir as asas de chefe.
Que é que lhe faltava? Tinha inteligência, prática, era limpo, não nascera das
ervas. Bastava energia e disposição. Pois ia tê-las. Ah! porque não obedecera
aos desejos do pai, formando-se, entrando na Câmara dos Deputados? Talvez fosse
agora ministro. Não era de admirar a idade, vinte e oito anos; não seria o
primeiro. Podia muito bem ser ministro, ordenanças atrás. E o Barreto
lembrava-se da entrada do ministro na Secretaria, e imaginava-se a si mesmo
naquela situação, com farda, chapéu, bordados... Logo depois, compreendia que
estava longe, agora não, — não podia ser. Mas era tempo de ganhar posição.
Quando fosse chefe, casado em boa família, com uma das primeiras elegantes do
Rio de Janeiro, e um bom dote, — acharia compensação aos erros passados...
— Tenho de acabar a cópia, pensou Barreto
repentinamente.
E achou que o melhor modo de crescer era
trabalhar. Pegou no relógio que ficara sobre a mesa, ao pé da cabeceira da
cama: estava parado. Mas não andava quando acordou? Pôs-lhe o ouvido, agitou,
estava parado de vez. Deu-lhe corda, ele andou um pouco, mas parou logo.
— É uma espiga do tal relojoeiro das dúzias,
murmurou o Barreto.
Sentou-se na cama um tanto reclinado, e
cruzou as mãos sobre o estômago. Notou que não tinha fome, mas também comera
bem no baile. Ah! os bailes que ele havia de dar, com ceia, mas que ceias! Aqui
lembrou-se que ia pôr água na boca aos companheiros da Secretaria,
contando-lhes a festa e as suas fortunas; mas não as contaria com ar de pessoa
que nunca viu luxo. Falaria naturalmente, aos pedaços, quase sem interesse. E
compôs alguns trechos de notícias, ensaiou de memória as atitudes, os
movimentos. Talvez algum o achasse com olheiras. — “Foi pândega, não?” — “Não,
responderia ele, fui ao baile”. — “Ah! Você foi sempre ao baile? Que tal
esteve?” — “O baile? Diria com fastio; esteve magnífico”. E continuou assim o
provável diálogo, compondo, emendando, riscando palavras, mas de maneira que
acabasse contando tudo sem parecer que dizia nada. Diria o nome de Ermelinda ou
não? Este problema gastou-lhe mais de dez minutos; concluiu que, se lho
perguntassem, não havia mal em dizê-lo, mas não lho perguntando, que interesse
havia nisso? Evidentemente nenhum.
Ficou ainda outros dez minutos, pensando à
toa, até que deu um salto, e pôs as pernas fora da cama.
— Meu Deus! Há de ser tarde.
Calçou as chinelas e tratou de ir às
abluções; mas logo aos primeiros passos, sentiu que as danças o tinham fatigado
deveras. A primeira ideia foi descansar; tinha para isso uma excelente
poltrona, ao pé do lavatório; achou, porém, que o descanso podia levar longe e
não queria chegar tarde à Secretaria. Iria até mais cedo; às dez e meia, no
máximo, estaria lá. Banhou-se, ensaboou-se, deu-se todo aos cuidados pessoais,
gastando o tempo do costume, e mirando-se ao espelho, vinte e trinta vezes.
Também era costume. Gostava de ver-se bem, não só para retificar uma coisa ou
outra, mas para contemplar a própria figura. Afinal começou a vestir-se, e não
foi pequeno trabalho, porque era meticuloso em escolher meias. Mal tirava umas,
preferia outras; e já estas lhe não serviam, ia a outras, tornava às primeiras,
comparava-as, deixava-as, trocava-as; afinal, escolheu um par cor de canela, e
calçou-as; continuou a vestir-se. Tirou camisa, meteu-lhe os botões e enfiou-a;
fechou bem o colarinho e o peito, e só então foi à escolha das gravatas, tarefa
mais demorada que a das meias. Costumava fazê-lo antes, mas desta vez estivera
pensando no discurso que dispararia ao diretor, quando este lhe dissesse:
— Ora viva! Muito bem! Hoje madrugou! Vamos à
cópia.
A resposta seria esta:
— Agradeço os cumprimentos; mas pode o Sr.
diretor estar certo que eu, comprometendo-me a uma coisa, faço-a, ainda que o
céu venha abaixo.
Naturalmente, não gostou do final, porque
torceu o nariz, e emendou:
—...comprometendo-me a uma coisa, hei de
cumpri-la fielmente.
Isto é que o distraiu, a ponto de vestir a
camisa sem ter escolhido a gravata. Foi às gravatas e escolheu uma, depois de
pegar, deixar, tornar a pegar e a deixar umas dez ou onze. Adotou uma de seda,
cor das meias, e deu o laço. Reviu-se então longamente no espelho, e foi às
botas, que eram de verniz e novas. Já lhes tinha passado um pano; era só
calçá-las. Antes de as calçar, viu no chão, atirada por baixo da porta, a Gazeta de Notícias. Era uso do criado da
casa. Levantou a Gazeta e ia pô-la na
mesa, ao pé do chapéu, para lê-la ao almoço, como de costume, quando deu com
uma notícia do baile. Ficou pasmado! Mas como é que podia a folha de manhã
noticiar um baile, que acabou tão tarde? A notícia era curta, e podia ter sido
escrita antes de terminar a festa, à uma hora da noite. Viu que era
entusiástica, e reconheceu que o autor havia estado presente. Gostou dos
adjetivos, do respeito ao dono da casa, e advertiu que entre as pessoas citadas
figurava o pai de Ermelinda. Insensivelmente sentara-se na poltrona, e indo
dobrar a folha, deu com estas palavras em letras grandes: “Horrível! Sete
mortes!” A narração era longa, entrelinhada; começou a ver o que seria, e, em
verdade, achou que era gravíssimo. Um homem da Rua das Flores matara a mulher,
três filhos, um padeiro e dois policiais, e ferira a mais três pessoas.
Correndo pela rua fora, ameaçava a toda a gente, e toda a gente fugia, até que
dois mais animosos puseram-se-lhe em frente, um com um pau, que lhe quebrou a
cabeça. Escorrendo sangue, o assassino ainda corria na direção da Rua do Conde;
aí foi preso por uma patrulha, depois de luta renhida. A descrição da notícia
era viva, bem feita; Barreto leu-a duas vezes; depois leu a parte relativa à
autópsia, um pouco por alto; mas demorou-se no depoimento das testemunhas.
Todas eram acordes em que o assassino nunca dera motivo de queixa a ninguém.
Tinha 38 anos, era natural de Mangaratiba, e empregado no Arsenal de Marinha.
Parece que houve uma discussão com a mulher, e duas testemunhas disseram ter
ouvido ao assassino: “Esse tratante não há de voltar aqui!”. Outras não
acreditavam que as mortes tivessem tal origem, porque a mulher do assassino era
boa pessoa, muito trabalhadeira e séria; inclinaram-se a um acesso de loucura.
Concluía a notícia dizendo que o
assassino estivera agitado e fora de si; à última hora ficara prostrado,
chorando, e chorando pela mulher e pelos filhos.
— Que coisa horrível! exclamou Barreto. Quem
se livra de uma destas?
Com a folha nos joelhos, fitou os olhos no
chão, reconstruindo a cena pelas simples indicações do noticiarista. Depois,
tornou à folha, leu outras coisas, o artigo de fundo, os telegramas, um artigo
humorístico, cinco ou seis prisões, os espetáculos da antevéspera, até que se
levantou de repente lembrando-se que estava perdendo tempo. Acabou de
vestir-se, escovou o chapéu com toda a paciência e cuidado, pô-lo na cabeça
diante do espelho, e saiu. No fim do corredor, reparou que levava a Gazeta, para lê-la ao almoço, mas já
estava lida. Voltou, deitou a folha por baixo da porta do quarto e saiu à rua.
Dirigiu-se para o hotel em que costumava
almoçar, e não era longe. Ia apressado para desforrar o tempo perdido; mas não
tardou que a natureza vencesse, e o passo tornou ao de todos os dias. Talvez a
causa fosse a bela Ermelinda, porque, havendo pensado ainda uma vez no noivo, a
moça veio logo, e a ideia do casamento meteu-se-lhe no cérebro. Não teve outra
até chegar ao hotel.
— Almoço, almoço, depressa! disse ele
sentando-se à mesa.
— Que há de ser?
— Faça-me depressa um filé e uns ovos.
— O costume.
— Não, não quero batatas hoje. Traga petit-pois... Ou batatas mesmo, venha
batatas, mas batatas miudinhas. Onde está o Jornal
do Comércio?
O criado trouxe-lhe o Jornal, que ele começou a ler, enquanto lhe faziam o almoço. Correu
à notícia do assassinato. Quando lhe trouxeram o filé, perguntou que horas
eram.
— Faltam dez minutos para o meio-dia,
respondeu o criado.
— Não me diga isso! exclamou o Barreto
espantado.
Quis comer às carreiras, ainda contra o
costume; despachou efetivamente o almoço o mais depressa que pôde, reconhecendo
sempre que era tarde. Não importa; prometera acabar a cópia, iria acabá-la.
Podia inventar uma desculpa, um acidente, qual seria? Doença, era natural de
mais, natural e gasto; estava farto de dores de cabeça, febres, embaraços gástricos.
Insônia, também não queria. Um parente enfermo, noite velada? Lembrou-se que já
uma vez explicara uma ausência por esse modo.
Era meia hora depois do meio-dia, quando
bebeu o último gole de chá. Ergueu-se e saiu. Na rua parou. A que horas
chegaria? Tarde para acabar a cópia, para que ir à Secretaria tão tarde? O
diabo fora o tal assassinato, três colunas de leitura. Maldito bruto! Matar a
mulher e os filhos. Aquilo foi bebedeira, decerto. Assim reflexionando, ia o
Barreto, caminhando para a Rua dos Ourives, sem plano, levado pelas pernas, e
entrou na charutaria do Brás. Já lá achou dois amigos.
— Então, que há de novo? perguntou ele,
sentando-se. Tem passado muito rabo de saia?
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