O
Capitão Mendonça
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO
1
Estando um pouco arrufado com a dama dos meus
pensamentos, achei-me eu uma noite sem destino nem vontade de preencher o tempo
alegremente, como convém em tais situações. Não queria ir para casa porque
seria entrar em luta com a solidão e a reflexão, duas senhoras que se
encarregam de pôr termo a todos os arrufos amorosos.
Havia espetáculo no Teatro de São Pedro. Não
quis saber que peça se representava; entrei, comprei uma cadeira e fui tomar
conta dela, justamente quando se levantava o pano para começar o primeiro ato.
O ato prometia; começava por um homicídio e acabava por um juramento. Havia uma
menina, que não conhecia pai nem mãe, e era arrebatada por um embuçado que eu
suspeitei ser a mãe ou o pai da menina. Falava-se vagamente de um marquês
incógnito, e aparecia a orelha de um segundo e próximo assassinato na pessoa de
uma condessa velha. O ato acabou com muitas palmas.
Apenas caiu o pano houve a balbúrdia do
costume; os espectadores marcavam as cadeiras e saíam para tomar ar. Eu, que
felizmente estava em lugar onde não podia ser incomodado, estendi as pernas e
entrei a olhar para o pano da boca, no qual, sem esforço da minha parte,
apareceu a minha arrufada senhora com os punhos fechados e ameaçando-me com
olhos furiosos.
— Que lhe parece a peça, Sr. Amaral?
Voltei-me para o lado de onde ouvira proferir
o meu nome. Estava à minha esquerda um sujeito, já velho, vestido com uma
sobrecasaca militar, e sorrindo amavelmente para mim.
— Admira-se de lhe saber o nome? perguntou o
sujeito.
— Com efeito, respondi eu; não me lembro de o
ter visto...
— A mim nunca me viu; cheguei ontem do Rio
Grande do Sul. Também eu nunca o tinha visto, e no entanto conheci-o logo.
— Adivinho, respondi; dizem-me que me pareço
muito com meu pai. Conheceu-o, não?
— Pudera! fomos companheiros d’armas. O
coronel Amaral e o capitão Mendonça passavam no exército por ser a imagem da
perfeita amizade.
— Agora me recordo de que meu pai me falava
muito no capitão Mendonça.
— Sou eu.
— Falava-me com muito interesse; dizia que
era o seu melhor e mais fiel amigo.
— Era injusto o coronel, disse o capitão
abrindo a caixa de rapé, eu fui mais do que isso, fui o único amigo fiel que
ele teve. Mas seu pai era cauteloso, talvez não quisesse ofender ninguém. Era
um tanto fraco seu pai; a única rixa que tivemos foi por eu uma noite chamar-lhe
tolo. O coronel reagiu, mas convenceu-se finalmente... Quer uma pitada?
— Obrigado.
Admirou-me que o mais fiel amigo de meu pai
tratasse tão desdenhosamente a sua memória, e entrei logo a suspeitar da
amizade que os ligara no exército. Confirmou-me esta suspeita a lembrança de
que meu pai, quando falava no capitão Mendonça, dizia ser um excelente homem...
com uma aduela de menos.
Contemplei o capitão enquanto ele sorvia a
pitada e sacudia com o lenço a camisa ligeiramente maculada por um clássico e
legítimo pingo. Era um homem de boa presença, gesto militar, olhar um tanto
vago, barba de fonte a fonte, passando por baixo do queixo, como convém a um
militar que se respeita. A roupa era toda nova, e o velho capitão mostrava
estar acima das necessidades da vida.
A expressão da cara não era má; mas o olhar
vago e as sobrancelhas espessas e salientes transtornavam o rosto.
Conversamos do passado; o capitão contou-me a
campanha contra Rosas, e a parte que nela tomou com meu pai. A sua conversa era
animada e pitoresca; lembrava-se de muitos episódios, entremeava tudo com
anedotas engraçadas.
Ao cabo de vinte minutos o público começou a
inquietar-se com a extensão do intervalo e a orquestra dos tacões executou a
sinfonia do desespero.
Justamente nesse momento veio um sujeito
chamar o capitão para ir a um camarote. O capitão quis adiar a visita para
outro intervalo, mas, instando o sujeito, cedeu e apertou-me a mão dizendo:
— Até já.
Fiquei outra vez só; os tacões cederam lugar
às rabecas, e ao cabo de alguns minutos começou o segundo ato.
Como aquilo para mim não era distração nem
ocupação, acomodei-me o melhor que pude na cadeira e cerrei os olhos ouvindo um
monólogo do protagonista, que cortava o coração e a gramática.
Não tardou que fosse despertado pela voz do
capitão. Abri os olhos e vi-o de pé.
— Quer saber de uma coisa? perguntou ele. Eu
vou cear; acompanha-me?
— Não posso, queira desculpar-me, respondi.
— Não admito desculpa; faça de conta que eu
sou o coronel e digo: Pequeno, vamos cear!
— Mas é que eu espero...
— Não espera ninguém!
O diálogo provocou alguns murmúrios à roda de
nós. Vendo a disposição anfitriônica do capitão, achei prudente acompanhá-lo
para não dar lugar a uma manifestação pública.
Saímos.
— Cear a esta hora, disse o capitão, não é
próprio de um rapaz como o senhor; mas eu cá sou velho e militar.
Não repliquei.
A falar verdade eu não tinha preferência pelo
teatro nem por coisa nenhuma; queria passar o tempo. Conquanto não me
arrastasse nenhuma simpatia para o capitão, a maneira por que me tratava e a
circunstância de ter sido companheiro d’armas de meu pai, faziam com que a
companhia dele fosse naquele momento mais aceitável que a de outro qualquer.
Além destas razões todas, a vida que eu
levava era tão monótona que a diversão do capitão Mendonça devia encher uma boa
página com matéria nova. Digo a diversão do capitão Mendonça, porque o meu
companheiro tinha não sei que no gesto e nos olhos que me parecia excêntrico e
original. Encontrar um original ao meio de tantas cópias de que anda farta a
vida humana, não é uma fortuna?
Acompanhei, portanto, o meu capitão, que
continuou a falar durante o caminho todo, arrancando-me apenas de longe em
longe um monossílabo.
No fim de algum tempo paramos defronte de uma
casa velha e escura.
— Vamos entrar, disse Mendonça.
— Que rua é esta? perguntei eu.
— Pois não sabe? Oh! como anda com a cabeça a
juros! Esta é a Rua da Guarda Velha.
— Ah!
O velho bateu três pancadas; daí a alguns
segundos rangia a porta nos gonzos e nós entrávamos num corredor escuro e
úmido.
— Então não trouxeste luz? perguntou Mendonça
a alguém que eu não via.
— Vim com pressa.
— Bem; fecha a porta. Dê cá a mão, Sr. Amaral;
esta entrada é um pouco esquisita, mas lá em cima estaremos melhor.
Dei-lhe a mão.
— Está trêmula, observou o capitão Mendonça.
Eu tremia, com efeito; pela primeira vez
surgiu-me no espírito a suspeita de que o pretendido amigo de meu pai não fosse
mais que um ladrão, e aquilo uma ratoeira armada aos néscios.
Mas era tarde para retroceder; qualquer
demonstração de medo seria pior. Por isso, respondi alegremente:
— Se lhe parecer que não há de tremer quem
entre por um corredor como este, o qual, haja de perdoar, parece o corredor do
inferno.
— Quase acertou, disse o capitão, guiando-me
pela escada acima.
— Quase?
— Sim; não é o inferno, mas é o purgatório.
Estremeci ao ouvir estas últimas palavras;
todo o meu sangue precipitou-se para o coração, que começou a bater apressado.
A singularidade da figura do capitão, singularidade da casa, tudo se acumulava
para encher-me de terror. Felizmente chegamos acima e entramos para uma sala
iluminada a gás, e mobiliada como todas as casas deste mundo.
Para gracejar e conservar toda a
independência do meu espírito, disse sorrindo:
— Está feito, o purgatório tem boa cara; em
vez de caldeiras tem sofás.
— Meu rico senhor, respondeu o capitão,
olhando fixamente para mim, coisa que pela primeira vez acontecia, porque o seu
olhar era sempre vesgo; meu rico senhor, se pensa que desse modo arranca o meu
segredo está muito enganado. Convidei-o para cear; contente-se com isto.
Não respondi; as palavras do capitão
desvaneceram as minhas suspeitas acerca da intenção com que ele ali me
trouxera, mas criaram outras impressões; suspeitei que o capitão estivesse
doido; e o menor incidente confirmava-me a suspeita.
— Moleque! disse o capitão; e, quando o
moleque apareceu, continuou: prepara a ceia; tira vinho da caixa nº 25; vai;
quero tudo pronto em um quarto de hora.
O moleque foi executar as ordens de Mendonça.
Este, voltando-se para mim, disse:
— Sente-se e leia alguns destes livros. Vou
mudar de roupa.
— Não volta ao teatro? perguntei eu.
— Não.
CAPÍTULO
2
Poucos minutos depois caminhávamos para a
sala de jantar, que ficava nos fundos da casa. A ceia era farta e apetitosa; no
centro campeava um soberbo assado frio; pastelinhos, doces, velhas botelhas de
vinho, completavam a ceia do capitão.
— É um banquete, disse eu.
— Qual! é uma ceia ordinária... não vale
nada.
Havia três cadeiras.
— Sente-se aqui, disse-me ele indicando a do
meio, e sentando-se ele próprio na que ficava à minha esquerda. Compreendi que
havia mais um conviva, mas não perguntei. Também não era preciso; daí a poucos
segundos saía de uma porta em frente uma moça alta e pálida, que me
cumprimentou e se dirigiu para a cadeira que ficava à minha direita.
Levantei-me, e fui apresentado pelo capitão à
menina, que era filha dele, e acudia ao nome de Augusta.
Confesso que a presença da moça me
tranquilizou um pouco. Não só deixara de estar a sós com um homem tão singular
como o capitão Mendonça, mas também a presença da moça naquela casa indicava
que o capitão, se era doido como eu suspeitava, era ao menos um doido manso.
Tratei de ser amável com a minha vizinha,
enquanto o capitão trinchava o peixe com uma habilidade e destreza que bem
indicavam a sua proficiência nos misteres da boca.
— Devemos ser amigos, disse eu a Augusta,
pois que nossos pais o foram também.
Augusta levantou para mim dois belíssimos
olhos verdes. Depois sorriu e abaixou a cabeça com ar de casquilhice ou de
modéstia, porque ambas as coisas podiam ser. Contemplei-a nessa posição; era
uma formosa cabeça, perfeitamente modelada, um perfil correto, uma pele fina,
cílios longos, e cabelos cor de ouro, áurea coma, como os poetas dizem do sol.
Durante esse tempo Mendonça tinha concluído a
tarefa; e começava a servir-nos. Augusta brincava com a faca, talvez para
mostrar-me a finura da mão e o torneado do braço.
— Estás muda, Augusta? perguntou o capitão
servindo-a de peixe.
— Qual, papai! estou triste.
— Triste? Então que tens?
— Não sei; estou triste sem causa.
Tristeza sem causa traduz-se muitas vezes por
aborrecimento. Eu traduzi assim o dito da moça, e senti-me ferido no meu
amor-próprio, aliás sem razão fundada. Para alegrar a moça tratei de alegrar a
situação. Esqueci o estado do espírito do pai, que me parecia profundamente
abalado, e entrei a conversar como se estivesse entre amigos velhos.
Augusta pareceu gostar da conversa; o capitão
também entrou a rir como um homem de juízo; eu estava num dos meus melhores
dias; acudiam-me os ditos engenhosos e as observações de algum chiste. Filho do
século, sacrifiquei ao trocadilho, com tal felicidade que inspirei o desejo de
ser imitado pela moça e pelo pai.
Quando a ceia acabou reinava entre nós a
maior intimidade.
— Quer voltar ao teatro? perguntou-me o
capitão.
— Qual! respondi.
— Quer dizer que prefere a nossa companhia,
ou antes... a companhia de Augusta.
Esta franqueza do velho pareceu-me um pouco
indiscreta. Estou certo de que fiquei rubro. Não aconteceu o mesmo a Augusta,
que sorriu dizendo:
— Se assim é, não lhe devo nada, porque eu
também prefiro agora a sua companhia ao melhor espetáculo deste mundo.
A franqueza de Augusta admirou-me ainda mais
que a de Mendonça. Mas não era fácil mergulhar-me em reflexões profundas quando
os belos olhos verdes da moça estavam pregados nos meus, parecendo dizer-me:
— Seja amável como até agora.
— Vamos para a outra sala, disse o capitão
levantando-se.
Fizemos o mesmo. Dei o braço a Augusta,
enquanto o capitão nos guiava para outra sala, que não era a de visitas.
Sentamo-nos, menos o velho, que foi acender um cigarro numa das velas do
candelabro, enquanto eu lançava um olhar rápido pela sala, que me pareceu de
todo ponto estranha. A mobília era antiga, não só no molde, senão também na
idade. No centro havia uma mesa redonda, grande, coberta com um tapete verde.
Numa das paredes havia pendurados alguns animais empalhados. Na parede
fronteira a essa havia apenas uma coruja, também empalhada, e com olhos de
vidro verde, que, apesar de fixos, pareciam acompanhar todos os movimentos que
a gente fazia.
Aqui voltaram os meus sustos. Olhei,
entretanto, para Augusta, e esta olhou para mim. Aquela moça era o único laço
que havia entre mim e o mundo, porque tudo naquela casa me parecia realmente
fantástico; e eu já não duvidava do caráter purgatorial que me fora indicado
pelo capitão.
Estivemos silenciosos alguns minutos; o
capitão fumava o cigarro passeando com as mãos atrás das costas, posição que
pode indicar a meditação de um filósofo ou a taciturnidade de um néscio.
De repente parou defronte de nós, sorriu, e
perguntou-me:
— Não acha formosa esta pequena?
— Formosíssima, respondi.
— Que lindos olhos, não são?
— Lindíssimos, com efeito, e raros.
— Faz-me honra esta produção, não?
Respondi com um sorriso aprovador. Quanto a
Augusta, limitou-se a dizer com adorável simplicidade:
— Papai é mais vaidoso do que eu; gosta de
ouvir dizer que sou bonita. Quem não sabe disso?
— Há de notar, disse-me o capitão
sentando-se, que esta pequena é franca demais para o seu sexo e idade...
— Não lhe acho defeito...
— Nada de evasivas; a verdade é essa. Augusta
não se parece com as outras moças que pensam muito bem de si, mas sorriem quando
lhes fazem algum cumprimento, e franzem o sobrolho quando não lhos fazem.
— Direi que é uma adorável exceção, respondi
eu sorrindo para a moça, que me agradeceu sorrindo também.
— Isso é, disse o pai; mas exceção completa.
— Uma educação racional, continuei eu, pode
muito bem...
— Não só a educação, tornou Mendonça, mas até
a origem. A origem é tudo, ou quase tudo.
Não entendi o que queria dizer o homem.
Augusta parece que entendeu, porque entrou a olhar para o teto sorrindo
maliciosamente. Olhei para o capitão; o capitão olhava para a coruja.
Reanimou-se a conversa por espaço de alguns
minutos, ao cabo dos quais o capitão, que parecia ter uma ideia fixa,
perguntou-me:
— Então acha esses olhos bonitos?
— Já lho disse; são tão formosos quanto raros.
— Quer que lhos dê? perguntou o velho.
Inclinei-me dizendo:
— Seria muito feliz em possuir tão raras
prendas; mas...
— Nada de cerimônias; se quer, dou-lhos;
senão, limito-me a mostrar-lhos.
Dizendo isto, levantou-se o capitão e
aproximou-se de Augusta, que inclinou a cabeça sobre as mãos dele. O velho fez
um pequeno movimento, a moça ergueu a cabeça, o velho apresentou-me nas mãos os
dois belos olhos da moça.
Olhei para Augusta. Era horrível. Tinha no
lugar dos olhos dois grandes buracos como uma caveira. Desisto de descrever o
que senti; não pude dar um grito; fiquei gelado. A cabeça da moça era o que
mais hediondo pode criar a imaginação humana; imaginem uma caveira viva,
falando, sorrindo, fitando em mim os dois buracos vazios, onde pouco antes nadavam
os mais belos olhos do mundo. Os buracos pareciam ver-me; a moça contemplava o
meu espanto com um sorriso angélico.
— Veja-os de perto, dizia o velho diante de
mim; palpe-os; diga-me se já viu obra tão perfeita.
Que faria eu senão obedecer-lhe? Olhei para
os olhos que o velho tinha na mão. Aqui foi pior; os dois olhos estavam fitos
em mim, pareciam compreender-me tanto quanto os buracos vazios do rosto da
moça; separados do rosto, não os abandonara a vida; a retina tinha a mesma luz
e os mesmos reflexos. Daquele modo as duas mãos do velho olhavam para mim como
se foram um rosto.
Não sei que tempo se passou; o capitão tornou
a aproximar-se de Augusta; esta abaixou a cabeça, e o velho introduziu os olhos
no seu lugar.
Era horrível tudo aquilo.
— Está pálido! disse Augusta, obrigando-me a
olhar para ela, já restituída ao estado anterior.
— É natural... balbuciei eu; vejo coisas...
— Incríveis? perguntou o capitão esfregando
as mãos.
— Efetivamente, incríveis, respondi; não
pensava...
— Isto é nada! exclamou o capitão; e eu folgo
muito que ache incríveis essas coisas poucas que viu, porque é sinal de que eu
vou fazer pasmar o mundo.
Tirei o lenço para limpar o suor que me caía
em bagas. Durante esse tempo Augusta levantou-se e saiu da sala.
— Vê a graça com que ela anda? perguntou o
capitão. Aquilo tudo é obra minha... é obra do meu gabinete.
— Ah!
— É verdade; é por ora a minha obra-prima; e
creio que não há que dizer-lhe; pelo menos o senhor parece estar encantado...
Curvei a cabeça em sinal de assentimento. Que
faria eu, pobre mortal sem força, contra um homem e uma rapariga que me
pareciam dispor de forças desconhecidas aos homens?
Todo o meu empenho era sair daquela casa; mas
por maneira que os não molestasse. Desejava que as horas tivessem asas; mas é
nas crises terríveis que elas correm fatalmente lentas. Dei ao diabo os meus
arrufos, que foram a causa do encontro com semelhante sujeito.
Parece que o capitão adivinhara aquelas
minhas reflexões, porque continuou, depois de algum silêncio:
— Deve estar encantado, ainda que um tanto
assustado e arrependido da sua condescendência. Mas isso é puerilidade; nada
perdeu em vir aqui, antes ganhou; fica sabendo coisas que só mais tarde saberá
o mundo. Não lhe parece melhor?
— Parece, respondi sem saber o que dizia.
O capitão continuou:
— Augusta é a minha obra-prima. É um produto
químico; gastei três anos para dar ao mundo aquele milagre; mas a perseverança
vence tudo, e eu sou dotado de um caráter tenaz. Os primeiros ensaios foram
maus; três vezes saiu a pequena dos meus alambiques, sempre imperfeita. A
quarta foi esforço de ciência. Quando aquela perfeição apareceu caí-lhe aos
pés. O criador admirava a criatura!
Parece que eu tinha pintado o pasmo nos
olhos, porque o velho disse:
— Vejo que se espanta de tudo isto, e acho
natural. Que poderia o senhor saber de semelhante coisa?
Levantou-se, deu alguns passos, e sentou-se
outra vez. Nesse momento entrou o moleque trazendo café.
A presença do moleque fez-me criar alma nova;
imaginei que fosse ali dentro a única criatura verdadeiramente humana com quem
me pudesse entender. Entrei a fazer-lhe sinais, mas não consegui ser entendido.
O moleque saiu, e fiquei a sós com o meu interlocutor.
— Beba o seu café, meu amigo, disse-me ele,
vendo que eu hesitava, não por medo, mas porque realmente não tinha vontade de
tomar coisa nenhuma.
Obedeci como pude.
Augusta tornou à sala.
CAPÍTULO
3
O velho voltou-se para contemplá-la; nenhum
pai olhou ainda para sua filha com mais amor do que aquele. Via-se bem que o
amor era realçado pelo orgulho; havia no olhar do capitão uma certa altivez que
em geral não acompanha a ternura paterna.
Não era um pai, era um autor.
Quanto à moça, parecia também orgulhosa de
si. Sentia bem quanto o pai a admirava. Conhecia que todo o orgulho do velho
estava nela, e por compensação todo o orgulho dela estava no autor dos seus
dias. Se a Odisseia tivesse a mesma forma, teria o mesmo sentir, quando Homero
a contemplasse.
Coisa singular! Impressionava-me aquela
mulher, apesar da sua origem misteriosa e diabólica; eu sentia ao pé dela uma
sensação nova, que não sei se era amor, se admiração, se fatal simpatia.
Quando fitava os olhos dela dificilmente
podia afastar os meus, e contudo já tinha visto os seus lindíssimos olhos nas mãos
do pai, já tinha contemplado com terror os buracos vazios como os olhos da
morte.
Ainda que lentamente, adiantava-se a noite;
ia amortecendo o ruído de fora; entrávamos no silêncio absoluto que tão
tristemente quadrava com a sala em que me eu achava e os interlocutores com
quem me entretinha.
Era natural retirar-me; levantei-me e pedi
licença ao capitão para sair.
— Ainda é cedo, respondeu.
— Mas eu voltarei amanhã.
— Voltará amanhã e quando quiser; mas por
hoje é cedo. Nem sempre se encontra um homem como eu; um irmão de Deus, um deus
na terra, porque eu também posso criar como ele; e até melhor, porque eu fiz
Augusta e ele nem sempre faz criaturas como esta. Os hotentotes, por exemplo...
— Mas, disse eu, tenho pessoas que me esperam...
— É possível, disse o capitão sorrindo, mas
por agora não há de ir...
— Por que não? interrompeu Augusta. Acho que
pode ir, com a condição de que volta amanhã.
— Voltarei.
— Jura-me?
— Juro.
Augusta estendeu-me a mão.
— Está dito! disse ela; mas se faltar...
— Morre, acrescentou o pai.
Senti um calafrio ao ouvir a última palavra
de Mendonça. Entretanto, saí, despedindo-me o mais alegre e cordialmente que
pude.
— Venha à noite, disse o capitão.
— Até amanhã, respondi.
Quando cheguei à rua respirei. Estava livre.
Acabara-se-me aquela tortura que nunca havia imaginado. Apressei o passo e
entrei em casa, meia hora depois.
Foi-me impossível conciliar o sono. A cada
instante via o meu capitão com os olhos de Augusta nas mãos, e a imagem da moça
flutuava entre o nevoeiro da minha imaginação como uma criatura de Ossian.
Quem era aquele homem e aquela menina? A
menina era realmente um produto químico do velho? Ambos mo haviam afirmado, e
até certo ponto tive a prova disso. Podia supô-los doidos, mas o episódio dos
olhos desvanecia essa ideia. Estaria eu ainda no mundo dos vivos, ou começara
já a entrar na região dos sonhos e do desconhecido?
Só a fortaleza do meu espírito resistiu a
tamanhas provas; outro, que fosse mais fraco, teria enlouquecido. E seria
melhor. O que tornava a minha situação mais dolorosa e impossível de suportar
era justamente a perfeita solidez da minha razão. Do conflito da minha razão
com os meus sentidos resultava a tortura em que me eu achava; os meus olhos
viam, a minha razão negava. Como conciliar aquela evidência com aquela
incredulidade?
Não dormi. No dia seguinte saudei o sol como
um amigo ansiosamente esperado. Vi que estava no meu quarto; o criado trouxe-me
o almoço, que era todo composto de coisas deste mundo; cheguei à janela e dei
com os olhos no edifício da câmara dos deputados; não tinha que ver mais; eu
estava ainda na terra, e na terra estava ainda aquele maldito capitão e mais a
filha.
Então refleti.
Quem sabe se eu não podia conciliar tudo?
Lembrei-me de todas as pretensões da química e da alquimia. Ocorreu-me um conto
fantástico de Hoffmann em que um alquimista pretende ter alcançado o segredo de
produzir criaturas humanas. A criação romântica de ontem não podia ser a
realidade de hoje? E se o capitão tinha razão não era para mim grande glória
denunciá-lo ao mundo?
Há em todos os homens alguma coisa da mosca
do carroção; confesso que, prevendo o triunfo do capitão, lembrei-me logo de ir
agarrado às abas da sua imortalidade. Era difícil crer na obra do homem; mas
quem acreditou em Galileu? quantos não deixaram de crer em Colombo? A
incredulidade de hoje é a sagração de amanhã. A verdade desconhecida não deixa
de ser verdade. É verdade por si mesma, não o é pelo consenso público.
Ocorreu-me a imagem dessas estrelas que os astrônomos descobrem agora sem que
elas tenham deixado de existir muitos séculos antes.
Razões de coronel ou razões de cabo de
esquadra, o certo é que eu as dei a mim próprio e foi em virtude delas, não
menos que pela fascinação do olhar da moça, que eu lá me apresentei em casa do
capitão à rua da Guarda Velha apenas anoiteceu.
O capitão estava à minha espera.
— Não saí de propósito, disse-me ele; contava
que viesse, e queria dar-lhe o espetáculo de uma composição química. Trabalhei
o dia todo para preparar os ingredientes.
Augusta recebeu-me com uma graça
verdadeiramente adorável. Beijei-lhe a mão como se fazia antigamente às
senhoras, costume que se trocou pelo aperto de mão, aliás digno de um século
grave.
— Tive saudades suas, disse-me ela.
— Sim?
— Aposto que as não teve de mim?
— Tive.
— Não acredito.
— Por quê?
— Porque eu não sou filha bastarda. Todas as
outras mulheres são filhas bastardas, eu só posso gabar-me de ser filha
legítima, porque sou filha da ciência e da vontade do homem.
Não me admirava menos a linguagem que a
beleza de Augusta. Evidentemente era o pai quem lhe incutia semelhantes ideias.
A teoria que ela acabava de expor era tão fantástica como o seu nascimento. O
certo é que a atmosfera daquela casa já me punha no mesmo estado que os dois
habitantes dela. Foi assim que alguns segundos depois repliquei:
— Conquanto eu admire a ciência do capitão,
lembro-lhe que ainda assim ele não fez mais do que aplicar elementos da
natureza à composição de um ente que até agora parecia excluído da ação dos
reagentes químicos e dos instrumentos de laboratório.
— Tem razão até certo ponto, disse o capitão;
mas acaso sou eu menos admirável?
— Pelo contrário; e nenhum mortal até hoje
pode gabar-se de ter ombreado com o senhor.
Augusta sorriu agradecendo-me. Notei
mentalmente o sorriso, e parece que a ideia transluziu no meu rosto, porque o
capitão, sorrindo também, disse:
— A obra saiu perfeita, como vê, depois de
muitos ensaios. O penúltimo ensaio era completo, mas faltava uma coisa à obra;
e eu queria que ela saísse tão completa como a que o outro fez.
— Que lhe faltava então? perguntei eu.
— Não vê, continuou o capitão, como Augusta
sorri de contente quando lhe fazem alguma alusão à beleza?
— É verdade.
— Pois bem, a penúltima Augusta que me saiu
do laboratório não tinha isso; esquecera-me incutir-lhe a vaidade. A obra podia
ficar assim, e estou que seria, aos olhos de muitos, mais perfeita do que esta.
Mas eu não penso assim; o que eu queria era fazer uma obra igual à do outro.
Por isso, reduzi outra vez tudo ao estado primitivo, e tratei de introduzir na
massa geral uma dose maior de mercúrio.
Não creio que o meu rosto me traísse naquele
momento; mas o meu espírito fez uma careta. Estava disposto a crer na origem
química de Augusta, mas hesitava ouvindo os pormenores da composição.
O capitão continuou, olhando ora para mim,
ora para a filha, que parecia extasiada ouvindo a narração do pai:
— Sabe que a química foi chamada pelos
antigos, entre outros nomes, ciência de Hermes. Acho inútil lembrar-lhe que
Hermes é o nome grego de Mercúrio, e mercúrio é o nome de um corpo químico.
Para introduzir na composição de uma criatura humana a consciência, deita-se no
alambique uma onça de mercúrio. Para fazer a vaidade dobra-se a dose do
mercúrio, porque a vaidade, segundo a minha opinião, não é mais que a
irradiação da consciência; à contração da consciência chamo eu modéstia.
— Parece-lhe então, disse eu, que homem
vaidoso é aquele que recebeu uma grande dose de mercúrio no seu organismo?
— Sem dúvida nenhuma. Nem pode ser outra
coisa; o homem é um composto de moléculas e corpos químicos; quem os souber
reunir tem alcançado tudo.
— Tudo?
— Tem razão; tudo, não; porque o grande
segredo consiste em uma descoberta que eu fiz e constitui por assim dizer o
princípio da vida. Isso é que há de morrer comigo.
— Por que não o declara antes para
adiantamento da humanidade?
O capitão levantou os ombros desdenhosamente;
foi a única resposta que obtive.
Augusta tinha-se levantado e foi ao piano
tocar alguma coisa que me pareceu ser uma sonata alemã. Eu pedi licença ao
capitão para fumar um charuto, enquanto o moleque veio receber ordens relativas
ao chá.
CAPÍTULO
4
Acabado o chá, disse-me o capitão:
— Doutor, preparei hoje uma experiência em
honra sua. Sabe que o diamante não é mais que o carvão de pedra cristalizado.
Há tempos tentou um sábio químico reduzir o carvão de pedra a diamante, e li
num artigo de revista que conseguiria apenas compor um pó de diamante, e nada
mais. Eu alcancei o resto; vou mostrar-lhe um pedaço de carvão de pedra e
transformá-lo em diamante.
Augusta bateu palmas de contente. Admirado
dessa alegria súbita, perguntei-lhe sorrindo a causa.
— Gosto muito de ver uma operação química,
respondeu ela.
— Deve ser interessante, disse eu.
— E é. Não sei até se papai era capaz de me
fazer uma coisa.
— O que é?
— Eu lhe direi depois.
Daí a cinco minutos estávamos todos no
laboratório do capitão Mendonça, que era uma sala pequena e escura, cheia dos
instrumentos competentes. Sentamo-nos, Augusta e eu, enquanto o pai preparava a
transformação anunciada.
Confesso que, apesar da minha curiosidade de
homem de ciência, dividia a minha atenção entre a química do pai e as graças da
filha. Augusta tinha efetivamente um aspecto fantástico; quando entrou no
laboratório respirou largamente e com prazer, como quando se respira o ar
embalsamado dos campos. Via-se que era o seu ar natal. Travei-lhe da mão, e ela
com esse estouvamento próprio da castidade ignorante, puxou a minha mão para
si, fechou-a entre as suas, e pô-las no regaço. Nesse momento passou o capitão
ao pé de nós; viu-nos e sorriu à socapa.
— Vê, disse-me ela inclinando-se ao meu
ouvido, meu pai aprova.
— Ah! disse eu, meio alegre, meio espantado
de ver aquela franqueza da parte de uma menina.
No entanto, o capitão trabalhava ativamente
na transformação do carvão de pedra em diamante. Para não ofender a vaidade do
inventor fazia-lhe eu de quando em quando alguma observação, a que ele
respondia sempre. A minha atenção, porém, estava toda voltada para Augusta. Não
era possível ocultá-lo; eu já a amava; e por cúmulo de ventura era amado
também. O casamento seria o desenlace natural daquela simpatia. Mas deveria eu
casar-me, sem deixar de ser bom cristão? Esta ideia transtornou um pouco o meu
espírito. Escrúpulos de consciência!
A moça era um produto químico; seu único
batismo foi um banho de súlfur. A ciência daquele homem explicava tudo; mas a
minha consciência recuava. E por quê? Augusta era tão bela como as outras
mulheres — talvez mais bela —, pela mesma razão que a folha da árvore pintada é
mais bela que a folha natural. Era um produto de arte; o saber do autor
despojou o tipo humano de suas incorreções para criar um tipo ideal, um
exemplar único. Ar triste! era justamente essa idealidade que nos separaria aos
olhos do mundo!
Não sei dizer que tempo gastou o capitão na
transformação do carvão; eu deixava correr o tempo olhando para a moça e
contemplando os seus belos olhos em que havia todas as graças e vertigens do
mar.
De repente o cheiro acre do laboratório
começou a aumentar de intensidade; eu que não estava acostumado senti-me um
pouco incomodado, mas Augusta pediu-me que ficasse ao pé dela, sem o que teria
saído.
— Não tarda! não tarda! exclamou o capitão
com entusiasmo.
A exclamação era um convite que nos fazia; eu
deixei-me estar ao pé da filha. Seguiu-se um silêncio prolongado. Fui
interrompido no meu êxtase pelo capitão, que dizia:
— Pronto! aqui está!
E efetivamente trouxe um diamante na palma da
mão, perfeitíssimo e da melhor água. O volume era metade do carvão que servira
de base à operação química. Eu, à vista da criação de Augusta, já me não
admirava de nada. Aplaudi o capitão; quanto à filha, saltou-lhe ao pescoço e
deu-lhe dois apertadíssimos abraços.
— Já vejo, meu caro Sr. capitão, que deste
modo deve ficar rico. Pode transformar em diamante todo o carvão que lhe
parecer.
— Para quê? perguntou-me ele. Aos olhos de um
naturalista o diamante e o carvão de pedra valem a mesma coisa.
— Sim, mas aos olhos do mundo...
— Aos olhos do mundo o diamante é a riqueza,
bem sei; mas é a riqueza relativa. Suponha, meu rico Sr. Amaral, que as minas
de carvão do mundo inteiro, por meio de um alambique monstro, se transformam em
diamante. De um dia para outro o mundo caía na miséria. O carvão é a riqueza; o
diamante é o supérfluo.
— Concordo.
— Faço isto para mostrar que posso e sei; mas
não o direi a ninguém. É segredo que fica comigo.
— Não trabalha então por amor à ciência?
— Não; tenho algum amor à ciência, mas é um
amor platônico. Trabalho para mostrar que sei e posso criar. Quanto aos outros
homens, importa-me pouco que saibam ou não. Chamar-me-ão egoísta; eu digo que
sou filósofo. Quer este diamante como prova da minha estima e amostra do meu
saber?
— Aceito, respondi.
— Aqui o tem; mas lembre-se sempre que esta
pedra rutilante, tão procurada no mundo, e de tanto valor, capaz de lançar a
guerra entre os homens, esta pedra não é mais que um pedaço de carvão.
Guardei o brilhante, que era lindíssimo, e
acompanhei o capitão e a filha que saíam do laboratório. O que naquele momento
me impressionava mais que tudo era a moça. Eu não trocaria por ela todos os
diamantes célebres do mundo. Cada hora que passava ao pé dela aumentava a minha
fascinação. Sentia invadir-me o delírio do amor; mais um dia e eu estaria unido
àquela mulher irresistivelmente; separar-nos seria a morte para mim.
Quando chegamos à sala, o capitão Mendonça
perguntou à filha, batendo uma pancada na testa:
— É verdade! Não me disseste que tinhas de
pedir-me uma coisa?
— Sim; mas agora é tarde; amanhã. O doutor
aparece, não?
— Sem dúvida.
— Afinal, disse Mendonça, o doutor há de
acostumar-se aos meus trabalhos... e acreditará então...
— Já creio. Não posso negar a evidência; quem
tem razão é o senhor; o resto do mundo não sabe nada.
Mendonça ouvia-me radiante de orgulho; o seu
olhar, mais vago que nunca, parecia refletir a vertigem do espírito.
— Tem razão, disse ele, depois de alguns
minutos; eu estou muito acima dos outros homens. A minha obra-prima...
— É esta, disse eu apontando para Augusta.
— Por ora, respondeu o capitão; mas eu medito
coisas mais pasmosas; por exemplo, creio que descobri o meio de criar gênios.
— Como?
— Pego num homem de talento, notável ou
medíocre, ou até num homem nulo, e faço dele um gênio.
— Isso é fácil...
— Fácil, não; é apenas possível. Aprendi isto...
Aprendi? não, descobri isto, guiado por uma palavra que encontrei num livro
árabe do século décimo sexto. Quer vê-lo?
Não tive tempo de responder; o capitão saiu e
voltou daí a alguns segundos com um livro in-fólio
na mão, grosseiramente impresso em caracteres árabes feitos com tinta vermelha.
Explicou-me a sua ideia, mas por alto; eu não lhe prestei grande atenção; os
meus olhos estavam embebidos nos de Augusta.
Quando sair era meia-noite. Augusta com voz
suplicante e terna disse-me:
— Vem amanhã?
— Venho!
O velho estava de costas; eu levei a mão dela
aos meus lábios e imprimi-lhe um longo e apaixonado beijo.
Depois saí correndo: tinha medo dela e de
mim.
CAPÍTULO
5
No dia seguinte recebi um bilhete do capitão
Mendonça, logo de manhã:
Grande notícia! Trata-se da nossa felicidade,
da sua, da minha e da de Augusta. Venha à noite sem falta.
Não faltei.
Fui recebido por Augusta, que me apertou as
mãos com fogo. Estávamos sós; ousei dar-lhe um beijo na face. Ela corou muito,
mas retribuiu-me imediatamente o beijo.
— Recebi hoje um bilhete misterioso de seu
pai...
— Já sei, disse a moça; trata-se com efeito
da nossa felicidade.
Passava-se isto no patamar da escada.
— Entre! entre! gritou o velho capitão.
Entramos.
O capitão estava na sala fumando um cigarro e
passeando com as mãos nas costas, como na primeira noite em que o vira.
Abraçou-me, e mandou que me sentasse.
— Meu caro doutor, disse-me ele depois que nos
sentamos ambos, ficando Augusta de pé encostada à cadeira do pai; meu caro
doutor, raras vezes a fortuna cai a ponto de fazer a completa felicidade de
três pessoas. A felicidade é a mais rara coisa deste mundo.
— Mais rara que as pérolas, disse eu sentenciosamente.
— Muito mais, e de maior valia. Dizem que
César comprou por seis milhões de sestércios uma pérola, para presentear Sevilia.
Quanto não daria ele por essa outra pérola, que recebeu de graça, e que lhe deu
o poder do mundo?
— Qual?
— O gênio. A felicidade é o gênio.
Fiquei um pouco aborrecido com a conversa do
capitão. Eu cuidava que a felicidade de que se tratava para mim e Augusta era o
nosso casamento. Quando o homem me falou no gênio, olhei para a moça com olhos
tão aflitos, que ela veio em meu auxílio
dizendo ao pai:
— Mas, papai, comece pelo princípio.
— Tens razão; desculpa se o sábio faz
esquecer o pai. Trata-se, meu caro amigo — dou-lhe este nome —, trata-se de um
casamento.
— Ah!
— Minha filha confessou-me hoje de manhã que
o ama loucamente e é igualmente amada. Daqui ao casamento é um passo.
— Tem razão; amo loucamente sua filha, e
estou pronto a casar-me com ela, se o capitão consente.
— Consinto, aplaudo e agradeço.
Preciso acaso dizer que a resposta do
capitão, ainda que prevista, encheu de felicidade o meu coração ambicioso?
Levantei-me e apertei alegremente a mão do capitão.
— Compreendo! compreendo! disse o velho; já
passaram por mim essas coisas. O amor é quase tudo na vida; a vida tem duas
grandes faces: o amor e a ciência. Quem não compreender isto não é digno de ser
homem. O poder e a glória não impedem que a caveira de Alexandre seja igual à
caveira de um truão. As grandezas da terra não valem uma flor nascida à beira
dos rios. O amor é o coração, a ciência a cabeça; o poder é simplesmente a
espada...
Interrompi esta enfadonha preleção acerca das
grandezas humanas dizendo a Augusta que desejava fazer a sua felicidade e
ajudar com ela a tornar tranquila e alegre a velhice do pai.
— Lá por isso não se incomode, meu genro. Eu
hei de ser feliz, quer queiram quer não. Um homem de minha têmpera nunca é
infeliz. Tenho a felicidade nas mãos, não a faço depender de vãos preconceitos
sociais.
Poucas palavras mais trocamos neste assunto,
até que Augusta tomou a palavra dizendo:
— Mas, papai, ainda lhe não falou das nossas
condições.
— Não te impacientes, pequena; a noite é
grande.
— De que se trata? perguntei eu.
Mendonça respondeu:
— Trata-se de uma condição lembrada por minha
filha; e que o doutor naturalmente aceita.
— Pois não!
— Minha filha, continuou o capitão, deseja
uma aliança digna de si e de mim.
— Não lhe parece que eu possa?...
— É excelente para o caso, mas falta-lhe uma
pequena coisa...
— Riqueza?
— Ora, riqueza! isso tenho eu de sobra... se
quiser. O que lhe falta, meu rico, é justamente o que me sobra.
Fiz um gesto de compreender o que ele dizia,
mas simplesmente por formalidade, porque eu não compreendia nada.
O capitão tirou-me do embaraço.
— Falta-lhe gênio, disse.
— Ah!
— Minha filha pensa muito bem que a
descendente de um gênio, só de outro gênio pode ser esposa. Não hei de entregar
a minha obra às mãos grosseiras de um hotentote; e posto que, na planta geral
dos outros homens, o senhor seja efetivamente um homem de talento — aos meus
olhos não passa de um animal muito mesquinho —, pela mesma razão de que quatro
candelabros alumiam uma sala e não poderiam alumiar a abóbada celeste.
— Mas...
— Se lhe não agrada a figura, dou-lhe outra
mais vulgar: a mais bela estrela do céu nada vale desde que aparece o sol. O
senhor será uma bonita estrela, mas eu sou o sol, e diante de mim vale tanto
uma estrela como um fósforo, como um vaga-lume.
O capitão dizia isto com um ar diabólico, e o
olhar mais vago que nunca. Receei que realmente o meu capitão, apesar de sábio,
tivesse um acesso de loucura. Como sair-lhe das garras? e teria eu ânimo de
fazê-lo diante de Augusta, a quem me prendia uma simpatia fatal?
Interveio a moça.
— Bem sabemos de tudo isto, disse ela ao pai;
mas não se trata de dizer que ele nada vale; trata-se de dizer que há de valer
muito... tudo.
— Como assim? perguntei.
— Introduzindo-lhe o gênio.
Apesar da conversa que a este respeito
tivemos na noite anterior, não compreendi logo a explicação de Mendonça; mas
ele teve a caridade de me expor claramente a sua ideia.
— Depois de profundas e pacientes
investigações, cheguei a descobrir que o talento é uma pequena quantidade de
éter encerrado numa cavidade do cérebro; o gênio é o mesmo éter em porção
centuplicada. Para dar gênio a um homem de talento basta inserir na referida
cavidade do cérebro mais noventa e nove quantidades de éter puro. É justamente
a operação que vamos fazer.
Deixo a imaginação do leitor calcular a soma
de espanto que me causou este feroz projeto do meu futuro sogro; espanto que
redobrou quando Augusta disse:
— É uma verdadeira felicidade que papai
houvesse feito esta descoberta. Faremos hoje mesmo a operação, sim?
Seriam dois loucos? ou andaria eu num mundo
de fantasmas? Olhei para ambos; ambos estavam risonhos e tranquilos como se
houvessem dito a coisa mais natural deste mundo.
Tranquilizou-se-me o ânimo a pouco e pouco;
refleti que era um homem robusto, e que não seria um velho e uma moça débil que
me haviam de forçar a uma operação que eu considerava um simples e puro
assassinato.
— A operação será hoje, disse Augusta depois
de alguns instantes.
— Hoje, não, respondi; mas amanhã a esta hora
com toda a certeza.
— Por que não hoje? perguntou a filha do
capitão.
— Tenho muito que fazer.
O capitão sorriu com ar de quem não engolia a
pílula.
— Meu genro, eu sou velho e conheço todos os
recursos da mentira. O adiamento que nos pede é uma evasiva grosseira. Pois não
é muito melhor ser hoje um grande luzeiro da humanidade, um êmulo de Deus, do
que ficar até amanhã simples homem como os outros?
— Sem dúvida; mas amanhã teremos mais tempo...
— Eu apenas lhe peço meia hora.
— Pois bem, será hoje; mas eu desejo
simplesmente dispor agora de uns três quartos de hora, findos os quais volto e
fico à sua disposição.
O velho Mendonça fingiu aceitar a proposta.
— Pois sim; mas para ver que eu não me
descuidei do senhor, ande cá ao laboratório ver a soma de éter que pretendo
introduzir-lhe no cérebro.
Fomos ao laboratório; Augusta ia pelo meu
braço; o capitão caminhava adiante com uma lanterna na mão. O laboratório
estava iluminado com três velas em forma de triângulo. Noutra ocasião
perguntaria eu a razão daquela disposição especial das velas; mas naquele
momento todo o meu desejo era estar longe de semelhante casa.
E contudo uma força me prendia, e
dificilmente poderia eu arrancar-me dali; era Augusta. Aquela moça exercia
sobre mim uma pressão a um tempo doce e dolorosa; sentia-me escravo dela, a
minha vida como que se fundia na sua; era uma fascinação vertiginosa.
O capitão sacou de um caixão de madeira preta
um frasco contendo éter. Disse-me ele que havia no frasco, porque eu não vi
coisa nenhuma, e fazendo esta observação, respondeu-me ele:
— Pois precisa ver o gênio? Afirmo-lhe que há
aqui dentro noventa e nove doses de éter, as quais, juntas à única dose que a
natureza lhe deu, formarão cem doses perfeitas.
A moça pegou no frasco e o examinou contra a
luz. Pela minha parte, limitei-me a convencer o homem por meio da minha
simplicidade.
— Afirma-me, disse-lhe eu, que é gênio de
primeira ordem?
— Afirmo-lho. Mas por que se há de fiar em
palavras? O senhor vai saber o que é.
Dizendo isto puxou-me pelo braço com tamanha
força que eu vacilei. Compreendi que era chegada a crise fatal. Procurei
desvencilhar-me do velho, mas senti cair-me na cabeça três ou quatro gotas de
um líquido gelado; perdi as forças, fraquearam-me as pernas; caí no chão sem
movimento.
Aqui não poderei descrever cabalmente a minha
tortura; eu via e ouvia tudo sem poder articular uma palavra nem fazer um
gesto.
— Queria lutar comigo, maganão? dizia o
químico; lutar com aquele que te vai fazer feliz! Era ingratidão antecipada;
amanhã tu me hás de abraçar contentíssimo.
Voltei os olhos para Augusta; a filha do
capitão preparava um longo estilete, enquanto o velho tratava de introduzir
sutilmente no frasco um finíssimo tubo de borracha destinado a transportar o
éter do frasco para o interior do meu cérebro.
Não sei que tempo durou a preparação do meu
suplício; sei que ambos se aproximaram de mim; o capitão trazia o estilete e a
filha o frasco.
— Augusta, disse o pai, toma cuidado não se
derrame éter nenhum; olha, traz aquela luz; bem; senta-te aí no banquinho. Eu
vou furar-lhe a cabeça. Apenas sacar o estilete, introduze-lhe o tubo e abre a
pequena mola. Bastam dois minutos; aqui tens o relógio.
Ouvi aquilo tudo banhado em suores frios. De
repente os olhos foram-se-me enterrando; as feições do capitão assumiram
proporções descomunais e fantásticas; uma luz verde e amarela enchia todo o
quarto; pouco a pouco os objetos iam perdendo as formas, e tudo em volta de mim
ficou mergulhado numa penumbra crepuscular.
Senti uma dor agudíssima no alto do crânio;
corpo estranho penetrou até o interior do cérebro. Não sei de mais nada. Creio
que desmaiei.
Quando dei acordo de mim o laboratório estava
deserto; pai e filha tinham desaparecido. Pareceu-me ver em frente de mim uma
cortina. Uma voz forte e áspera soou aos meus ouvidos:
— Olá! acorde!
— Que é?
— Acorde! quem tem sono dorme em casa, não
vem ao teatro.
Abri de todo os olhos; vi em frente de mim um
sujeito desconhecido; eu achava-me sentado numa cadeira no teatro de São Pedro.
— Ande, disse o sujeito, quero fechar as
portas.
— Pois o espetáculo acabou?
— Há dez minutos.
— E eu dormi esse tempo todo?
— Como uma pedra.
— Que vergonha!
— Realmente, não fez grande figura; todos que
estavam perto riam de o ver dormir enquanto se representava. Parece que o sono
foi agitado...
— Sim, um pesadelo... Queira perdoar; vou-me
embora.
E saí protestando não recorrer, em casos de
arrufo, aos dramas ultrarromânticos: são pesados demais.
Quando ia pôr o pé na rua, chamou-me o
porteiro, e entregou-me um bilhete do capitão Mendonça. Dizia assim:
Meu caro doutor.
Entrei há pouco e vi-o dormir com tão boa
vontade que achei mais prudente ir-me embora pedindo-lhe que me visite quando
quiser, no que me dará muita honra.
10 horas da noite.
Apesar de saber que o Mendonça da realidade
não era o do sonho, desisti de o ir visitar. Berrem os praguentos, embora — tu
és a rainha do mundo, ó superstição.
---
Imagem:
Revista Tico-Tico, edição de 02/07/1941. Biblioteca Nacional Digital - Hemeroteca.
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