Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
O califa Schacabac era muito estimado de seus
súditos, não só pelas virtudes que o adornavam, como pelos talentos que faziam
dele um dos varões mais capazes de Platina. Os benefícios de seu califado,
aliás curto, eram já grandes. Ele iniciara e fundara a política de conciliação
entre as facções do Estado, animava as artes e as letras, protegia a indústria
e o comércio. Se havia alguma rebelião, tratava de vencer os rebeldes; em
seguida perdoava-lhes. Finalmente, era moço, crente, empreendedor e patriota.
Uma noite, porém, estando a dormir,
apareceu-lhe em sonhos um anão amarelo, que, depois de o encarar
silenciosamente alguns minutos, proferiu estas palavras singulares:
— Comendador dos crentes, teu califado tem
sido um modelo de príncipes; falta-lhe, porém, originalidade; é preciso que
faças alguma coisa original. Dou-te um ano e um dia para cumprir este preceito:
se o não cumprires, voltarei e irás comigo a um abismo, que há no centro da
Tartaria, no qual morrerás de fome, sede, desespero e solidão.
O califa acordou sobressaltado, esfregou os
olhos e reparou que era apenas um sonho. Contudo, não pôde dormir mais;
levantou-se e foi ao terraço contemplar as últimas estrelas e os primeiros
raios da aurora. Ao almoço, serviram-lhe peras de Damasco. Tirou uma e quando
ia a trincá-la, a pera saltou-lhe das mãos e saiu de dentro o mesmo anão
amarelo, que lhe repetiu as mesmas palavras da noite. Imagina-se o terror com
que Schacabac as ouviu. Quis falar, mas o anão desaparecera. O eunuco que lhe
servira a pera estava ainda diante dele, com o prato nas mãos.
— Viste alguma coisa? perguntou o califa,
desconfiado e pálido.
— Vi que Vossa Grandeza comeu uma pera, muito
tranquilo, e, ao que parece, com muito prazer.
O califa respirou; depois recolheu-se ao mais
secreto de seus aposentos, onde não falou a ninguém durante três semanas. O
eunuco levava-lhe a comida, com exclusão das peras. Não lhe aproveitou a
exclusão, porque no fim de três semanas, apetecendo-lhe comer tâmaras, viu sair
de dentro de uma o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmíssimas palavras
de intimação e ameaça. Schacabac não se pôde ter; mandou chamar o vizir.
— Vizir, disse o califa, logo que este acudiu
ao chamado, quero que convoques para esta noite os oficiais do meu conselho, a
fim de lhes propor alguma coisa de grande importância e não menor segredo.
O vizir obedeceu prontamente à ordem do
califa. Naquela mesma noite, reuniram-se os oficiais, o vizir e o chefe dos
eunucos; todos estavam curiosos de saber o motivo da reunião; o vizir, porém,
mais curioso ainda que os outros, simulava tranquilamente achar-se na posse do
segredo.
Schacabac mandou vir caramelos, cerejas, e
vinhos do Levante; os oficiais do conselho refrescaram as goelas, avivaram o
intelecto, sentaram-se comodamente nos sofás e cravaram os olhos no califa, que
depois de alguns minutos de reflexão, falou nestes termos:
— Sabeis que tenho feito alguma coisa durante
o meu curto califado; contudo, ainda não fiz nada que verdadeiramente se possa
dizer original. Foi o que me observou um anão amarelo, que me apareceu há três
semanas e ainda hoje de manhã. O anão ameaçou-me com a mais afrontosa das
mortes, em um abismo da Tartaria, se no fim de um ano e um dia, eu não tiver
feito alguma coisa positivamente original. Tenho cogitado dia e noite, e
confesso que ainda não achei coisa que merecesse essa qualificação. Por isso
vos convoquei; espero de vossas luzes o concurso necessário à minha salvação e
à glória da nossa pátria.
O conselho ficou boquiaberto, ao passo que o
vizir, a mais e mais espantado, não movia um único músculo do rosto. Cada
oficial do conselho fincou a cabeça nas mãos, a ver se descobria uma ideia
original. Schacabac interrogava o silêncio de todos, e sobre todos, o do vizir,
cujos olhos, fitos no magnífico tapete da Pérsia que forrava o chão da sala,
parecia ter perdido a vida própria, tal era a grande concentração dos
pensamentos.
Ao cabo de meia hora, um dos oficiais, Muley—
Ramadan, encomendando-se a Allah, falou nestes termos:
— Comendador dos crentes, se quereis uma ideia
extremamente original, mandai cortar o nariz a todos os vossos súditos, adultos
ou menores, e ordenai que a mesma operação seja feita a todos os que nascerem
de hoje em diante.
O chefe dos eunucos e diversos oficiais
protestaram logo contra semelhante ideia, que lhes pareceu excessivamente
original. Schacabac, sem a rejeitar de todo, objetou que o nariz era um órgão
interessante e útil ao Estado, porquanto fazia florescer a indústria dos lenços
e ministrava anualmente alguns defluxos à medicina.
— Que razão poderia levar-me a privar o meu
povo desse natural ornamento? concluiu o califa.
— Saiba Vossa Grandeza, respondeu Muley— Ramadan,
que, fundado na predição de um sábio astrólogo de meu conhecimento, tenho por
certo que, daqui a um século, há de ser descoberta uma erva fatal ao gênero
humano. Essa erva, que se chamará tabaco, será usada de duas formas — em rolo
ou em pó. O pó servirá para entupir o nariz dos homens e prejudicar a saúde
pública. Desde que os vossos súditos não tenham nariz serão preservados de tão
pernicioso costume...
Esta razão foi triunfalmente combatida pelo
vizir e todo o conselho, a tal ponto que o califa, aliás inclinado a ela,
deixou-a inteiramente de mão. Então o chefe dos eunucos, depois de pedir
licença a Schacabac para exprimir um voto, que lhe parecia muito mais original
que o primeiro, propôs que dali em diante o pagamento dos impostos passasse a
ser voluntário, clandestino e anônimo. Desde que assim for, concluiu ele, estou
certo de que o erário regurgitará de sequins; o contribuinte crescerá cem
côvados ante a própria consciência; algum haverá que, levado de legítimo
excesso, pague duas e três vezes a mesma taxa; e afinado deste modo o
sentimento cívico, melhorarão, e muito, os costumes públicos.
A maioria do conselho concordou em que a ideia
era prodigiosamente original, mas o califa achou-a prematura, e aventou a
conveniência de a estudar e pôr em execução nas proximidades da vinda do
Anticristo. Cada um dos oficiais propôs a sua ideia, que foi julgada original,
mas não tanto que merecesse ser aceita de preferência a todas. Um propôs a
invenção da clarineta, outro a proscrição dos legumes, até que o vizir falou
nestes termos:
— Seja-me dado, Comendador dos crentes,
propor uma ideia que vos salvará dos abismos da Tartaria. É esta: mandai
trancar as portas de Platina a todas as caravanas que vierem de Brasilina; que
nenhum camelo, se ali recebeu mercadoria ou somente bebeu água, que nenhum
camelo, digo eu, possa penetrar as portas da nossa cidade.
Espantado com a proposta, o califa ponderou
ao vizir:
— Mas que motivo... sim, é preciso que haja
um motivo... para...
— Nenhum, tornou o vizir, e nisto consiste a
primeira originalidade da minha ideia. Digo a primeira, porque há outra maior.
Peço-vos, e ao conselho, que acompanheis atentamente o meu raciocínio...
Todos ficaram atentos.
— Logo que a notícia de semelhante medida
chegar a Brasilina, haverá grande reboliço e estupefação. Os mercadores ficarão
pesarosos com o ato, porque são os que mais perdem. Nenhuma caravana, nem ainda
as que vêm de Meca, quererá mais parar naquela cidade maldita, a qual
(permita-me o conselho uma figura de retórica) ficará bloqueada pelo vácuo. Que
acontece? Condenados os mercadores a não mercar para cá, serão obrigados a
fechar as portas, ao menos aos domingos. Ora, como há em Brasilina uma classe
caixeiral, que suspira pelo fechamento das portas aos domingos, para ir fazer
suas orações nas mesquitas, acontecerá isto: o fechamento das portas de cá
produzirá o fechamento das portas de lá, e Vossa Grandeza terá assim a glória
de inaugurar o calembour nas relações
internacionais.
Apenas o vizir concluiu este discurso, todo o
conselho reconheceu, unânime, que a ideia era a mais profundamente original de
quantas tinham sido propostas. Houve abraços, expansões. O chefe dos eunucos
disse poeticamente que a ideia do vizir era “o loto da sapiência brotando junto
ao Nilo das necessidades públicas”. O califa manifestou o seu entusiasmo ao
vizir, dando-lhe de presente uma cimitarra, uma bolsa com cinco mil sequins e a
patente de coronel da guarda nacional.
No dia seguinte, todos os cadis leram ao povo
o decreto que mandava fechar as portas da cidade às caravanas de Brasilina. A
notícia excitou a curiosidade pública e causou certa estranheza, mas o vizir
tivera o cuidado de espalhar pela boca pequena a anedota do anão amarelo, e a
opinião pública aceitou a medida como um sinal visível da proteção de Allah.
Daí em diante, por espaço de alguns meses, um
dos recreios da cidade era subir às muralhas a ver chegar as caravanas. Se
estas vinham de Damasco, de Jerusalém, do Cairo ou de Bagdá, abriam-se-lhe as
portas, e elas entravam sem a mínima objeção; mas se alguma confessava que
tocara em Brasilina, o oficial das portas dizia-lhe que passasse de largo. A
caravana voltava no meio dos apupos da multidão.
Entretanto o califa indagava todos os dias do
vizir se constava que em Brasilina se houvesse procedido ao fechamento das
portas aos domingos; ao que o vizir invariavelmemte respondia que não, mas que
a medida não tardaria a ser proclamada como consequência rigorosa da ideia que
havia proposto. Nessa esperança, iam voando as semanas e os meses.
— Vizir, disse um dia Schacabac, quer-me
parecer que estamos enganados.
— Descanse Vossa Grandeza, retorquiu
friamente o vizir; o fato vai consumar-se; assim o exige a ciência.
Pela sua parte, o povo cansou de apupar as
caravanas e começou a notar que a ideia do vizir era simplesmente amoladora.
Não vinham da Brasilina as mercadorias do costume, nem o povo mandava para lá
as suas cerejas, os seus vinagres e os seus colchões. Ninguém ganhava com o
decreto. Começou-se a murmurar contra ele. Um boticário (ainda não havia
farmacêutico) arengou ao povo, dizendo que a ideia do vizir era simplesmente
vã; que jamais o trocadilho das portas fechadas chegaria a ter a mínima sombra
de realidade científica. Os doutores eclesiásticos não acharam no Corão um só
versículo que pudesse justificar tais induções e esperanças. Lavrava a descrença
e descontentamento; começava a soprar uma aragem de revolução.
O vizir não teve só de lutar contra o povo,
mas também contra o califa, cuja boa fé começou a desconfiar do acerto do
decreto. Três dias antes de chegar o prazo fatal, o califa intimou o vizir a
dar-lhe notícia do resultado que prometera ou a substituí-lo por uma ideia
verdadeiramente original.
Nesse apertado lance, o vizir chegou a
desconfiar de si, e a persuadir-se que aventara aquela ideia, levado do único
desejo de desbancar os outros oficiais. Disso mesmo o advertiu Abracadabro,
varão exímio na geomancia, a quem consultou sobre o que lhe cumpria fazer.
— Esperar, disse Abracadabro, depois de
traçar algumas linhas no chão; esperar até o último dia do prazo fatal marcado
ao califa. O que há de acontecer nesse dia, não o pode descortinar a ciência,
porque há muita coisa que a ciência ignora. Mas faze isso. No último dia do
prazo, à noite, tu e o califa deveis recolher-vos ao mais secreto aposento,
onde vos serão servidos três figos de Alexandria. O resto lá saberás; e podes
ficar certo de que será coisa boa.
Deu-se pressa o vizir em contar ao califa as
palavras de Abracadabro, e, fiados na geomancia, aguardaram o dia último. Veio
este, e depois dele a noite. Sós os dois, no mais secreto aposento de
Schacabac, mandaram vir três figos de Alexandria. Cada um dos dois tirou o seu
e abriu-o; o do califa deu um pulo, subiu ao teto e caiu logo no chão, sob a
forma do famoso anão amarelo. Vizir e califa tentaram fugir, correndo às
portas; mas o anão os deteve com gesto amigo.
— Não é preciso fugir, disse ele; não venho
buscar-te; venho somente declarar que achei verdadeiramente original a ideia do
fechamento das portas. Certo é que não deu de si tudo o que o vizir esperava;
mas nem por isso perdeu de originalidade. Allah seja convosco.
Livre da ameaça, o califa mandou logo que
todas as portas se abrissem às caravanas de Brasilina. O povo aquietou-se; o
comércio votou mensagens de agradecimento. E porque o califa e o vizir eram
homens instruídos, práticos e dotados de boas intenções, e apenas tinham cedido
ao medo, sentiram-se contentes com repor as coisas no antigo pé, e não se
encontravam nunca sem dizer ao outro, esfregando as mãos:
— Aquele anão amarelo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...