Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Nunca houve talvez nesta boa cidade quem
melhor empunhasse a vara de almotacé que o ativo e sagaz Custódio Marques,
morador defronte da sacristia da Sé durante o curto vice-reinado do conde de
Azambuja. Era homem de seus quarenta e cinco anos, cheio de corpo e de alma — a
julgar pela atenção e fervor com que desempenhava o cargo, imposto pela
vereança da terra e pelas leis do Estado. Os mercadores não tinham mais figadal
inimigo do que esse olho da autoridade pública. As ruas não conheciam maior vigilante.
Assim como uns nascem pastores e outros príncipes, Custódio Marques nascera
almotacé; era a sua vocação e apostolado.
Infelizmente, como todo o excesso é vicioso,
Custódio Marques, ou por natureza, ou por hábito, transpôs a fronteira de suas
atribuições, e passou do exame das medidas ao das vidas alheias, e tanto curava
de pesos como de costumes. Dentro de poucos meses, tornou-se o maior indagador
e sabedor do que se passava nas casas particulares com tanta exação e
individuação, que, uma sua comadre, assídua devota do Rosário, apesar da fama
longamente adquirida, teve de lhe ceder a primazia.
— Mas, senhor compadre — dizia ela
trespassando no alvo seio volumoso o seu lenço de algodão do tear de José Luís,
à Rua da Vala; não, senhor compadre, justiça, justiça. Eu tinha presunção de me
não escapar nada ou pouca coisa; mas confesso que você é muito mais fino do que
eu.
— E ainda não sei tudo o que queria, comadre
Engrácia, replicou ele com modéstia; há, por exemplo, uma coisa que me quebra a
cabeça há quinze dias. Pois olhe que não tenho perdido tempo!
— O que é, compadre? — disse ela piscando-lhe
os olhos de curiosidade e impaciência. Não é certamente o namoro do
sargento-mor Fagundes com a irmã daquele mercador da Rua da Quitanda...
— Isso é coisa velha e re-velha, respondeu
Custódio levantando os ombros com desdém. Se até o irmão da sujeita já deu pela
coisa, e mandou dizer ao Fagundes que fosse cuidar dos filhos, se não queria
apanhar uma sova de pau. Afinal, são lérias do mercador. Quem não sabe que a
irmã vivia, ainda há pouco tempo... Cala-te, boca!
— Diga, compadre!
— Nada, não digo. É quase meio-dia, e o
feijão lá está a minha espera.
A razão dada pelo almotacé tinha só de
verdadeira a coincidência cronológica. Era exato estar próxima a hora do
jantar. Mas o verdadeiro motivo de interromper a conversa, que se passava à
porta da casa da Sra. Engrácia foi ter visto o nosso almotacé, ao longe, a
esbelta figura do juiz de fora. Custódio Marques espediu-se da comadre e seguiu
no encalço do juiz. Logo que se achou a umas oito braças dele, afrouxou o passo
e assumiu o ar distraído que até então ninguém pudera imitar. Olhava para o
chão, para o interior das lojas, para trás, para todos os lados, menos para a
pessoa que era objeto da espionagem e contudo não a perdia de vista, não lhe
escapava um único movimento.
O juiz, entretanto, dirigia-se pela Rua da
Mãe dos Homens abaixo até à Rua Direita, que era onde morava. Custódio Marques
viu-o entrar em casa e retrocedeu para a rua.
— Diabo! dizia ele consigo. Naturalmente,
vinha de lá... se é que lá vai de dia... Mas onde é?... Ficará para outra vez.
O almotacé seguiu a passo rápido para casa,
não sem parar alguns minutos nas esquinas, a varrer a rua transversal com o seu
par de olhos de lince. Ali chegando, achou efetivamente o jantar na mesa, um
jantar corretamente nacional, puro dos deliciosos galicismos que nos trouxe a
civilização.
Vieram para a mesa D. Esperança, filha do
almotacé, e D. Joana da Purificação, sua irmã, a quem, por morte da mulher de Custódio
Marques, coube a honra de reger a casa. Esperança possuía os mais belos olhos
negros da cidade. Haveria cabelos mais lindos, boca mais graciosa, tez mais
pura. Olhos, não; nesse particular, podia Esperança medir-se com os mais
afamados da colônia. Eram pretos, grandes, rasgados; sobretudo tinham um certo
jeito de despedir as setas, capaz de deitar abaixo o mais destro guerreiro. A
tia, que a amava em extremo, trazia-a muito abençoada e coberta de mimos;
servia-lhe de mãe, camareira e mestra; levava-a às igrejas e procissões, a
todas as festas, quando porventura o irmão, por motivo do cargo oficial ou do
cargo oficioso, não as podia acompanhar.
Esperança beijou a mão ao pai, que a
contemplou com olhos cheios de ternura e projetos. Eram estes casá-la, e
casá-la nada menos que com um sobrinho do juiz de fora, homem da nobreza da
terra, e noivo muito ambicionado de solteiras e viúvas. O almotacé não
alcançara até então enredar o moço nas graças da filha; mas forcejava por isso.
Uma coisa o tranquilizava: é que de suas pesquisas não colhera notícia de
nenhuma pretensão amorosa da parte do rapaz. Era já muito não ter adversários
que combater.
Esperança, entretanto, fazia cálculos muito
diferentes, e tratava igualmente de os pôr em execução. Seu coração, ao passo
que se não rendia à nobreza do sobrinho do juiz, sentia notável inclinação para
o filho do boticário José Mendes — o jovem Gervásio Mendes, com quem se
carteava e palestrava à noite, à janela, quando o pai andava em suas indagações
por fora, e a tia jogava a bisca com o sacristão da Sé. Esse namoro de uns
quatro meses não tinha ares de ceder aos planos de Custódio Marques.
Abençoada a filha, e comido o jantar, foi
Custódio Marques cochilar a sesta durante meia hora. A tarde gastou-a ao gamão,
na botica vizinha, cujo dono, mais insigne naquele jogo que no preparo das
drogas, estatelava igualmente os parceiros e os fregueses. A diferença entre os
dois é que para o boticário o gamão era um fim, e para o almotacé um meio. Os
dedos corriam e o almotacé ia misturando os remoques próprios do jogo com mil
perguntas, ora claras, ora disfarçadas, acerca das coisas que lhe convinha
saber; o boticário não hesitava em lhe dar conta das novidades.
Naquela tarde não havia nenhuma. Em
compensação, havia um pedido.
— Você, Sr. Custódio, é que me podia fazer um
grande favor, disse o boticário.
— Qual?
— Aquele negócio dos chãos da Lagoa. Sabe que
o senado da Câmara embirra em os tomar para si, quando é positivo que pertencem
a meu filho José. Se o juiz de fora quisesse, podia fazer muito neste negócio;
e você que é tão íntimo dele...
— Homem, amigo sou, disse Custódio Marques
lisonjeado com as palavras do boticário; mas seu filho, deixe-me que lhe diga...
sei tudo.
— Tudo o quê?
— Ora! Sei que quando o conde da Cunha tinha
de organizar os terços de infantaria auxiliar, seu filho José, não alcançando a
nomeação de oficial que desejava, e vendo-se ameaçado de ser alistado na tropa,
foi lançar-se aos pés daquela mulher espanhola, que morou na Rua dos Ourives...
Pois deveras não sabe?
— Diga, diga, Sr. Custódio.
— Lançou-se-lhe aos pés para lhe pedir
proteção. A sujeita namorou-se dele; e, não lhe digo nada, foi ela quem lhe
emprestou o dinheiro com que ele comprou um privilégio da redenção dos cativos,
mediante o qual seu filho livrou-se da farda.
— Que peralta! A mim disse-me ele que o
cônego Vargas...
— Isto, Sr. José Mendes, foi muito malvisto
pelos poucos que o souberam. Um deles é o juiz de fora, que é homem severo,
apesar...
Custódio Marques engoliu o resto da frase,
concluiu-a por outro modo, e saiu prometendo que, em todo caso, iria falar ao
juiz. Efetivamente ao anoitecer lá estava em casa deste. O juiz de fora tratava
o almotacé com particular distinção. Era ele o melhor remédio das suas
melancolias, o mais serviçal sujeito para tudo quanto fosse de seu agrado. Logo
que ele entrou, disse-lhe o dono da casa:
— Ora, venha cá, Sr. espião, porque me andou
você hoje a acompanhar um longo pedaço de tempo?
Custódio Marques empalideceu; mas foi rápida
a impressão.
— O que havia de ser? disse ele sorrindo.
Aquilo... aquilo que eu lhe disse uma vez, há dias...
— Há dias?
— Sim, senhor. Ando a ver se descubro uma
coisa. vossa senhoria, que sempre gostou tanto de moças, é impossível que não
tenha por aí alguma aventura...
— Deveras? perguntou rindo o juiz de fora.
— Há de haver alguma coisa; e eu hei de
descobri-la. vossa senhoria sabe se eu tenho faro para tais empresas. Só se me
jurar que...
— Não juro, que não é caso disso; mas posso
tirar-te o trabalho da pesquisa. Vivo com recato, como todos sabem; tenho
deveres de família...
— Qual! tudo isso é nada quando um rosto
bonito... que ele há de ser bonito por força; nem vossa senhoria é pessoa que
se deixe aí levar por qualquer figura... Eu verei o que há. Olhe, o que eu
posso afiançar é que o que descobrir cá vai comigo para a sepultura. Nunca fui
homem de dar com a língua nos dentes.
O juiz de fora riu muito, e Custódio Marques
passou daquele assunto para o do filho do boticário, mais por descargo de
consciência que por verdadeiro interesse. Contudo, é força confessar que a
vaidade de mostrar ao vizinho José Mendes que ele podia influir alguma coisa,
sempre lhe afiou a língua um pouco mais do que queria. A conversa foi
interrompida por um oficial que trazia ao juiz de fora um recado do conde de
Azambuja. O magistrado leu a cartinha do vice-rei e empalideceu um pouco. Não
escapou esta circunstância ao almotacé, cuja atenção encarapitou-se toda nos
seus olhinhos vivos e perspicazes, enquanto o juiz dizia ao oficial que não
tardaria em obedecer às ordens de sua excelência.
— Alguma importunação, naturalmente, disse
Custódio Marques com ar de quem queria ser discreto. São as obrigações do
cargo; ninguém foge a elas. vossa senhoria precisa de mim?
— Não, Sr. Custódio.
— Se precisa, não tenha cerimônia. Bem sabe
que eu nunca estou melhor do que ao seu serviço. Se quiser um recado qualquer...
— Um recado? repetiu o magistrado como quem
efetivamente precisava de mandar algum.
— O que quiser; fale vossa senhoria, que há
de ser logo obedecido.
O juiz de fora refletiu um instante, e
recusou. O almotacé não teve outro remédio senão deixar a companhia de seu
amigo e protetor. Eram nove horas dadas. O juiz de fora preparou-se para acudir
ao chamado do vice-rei; dois escravos, com lanternas, o precederam na rua,
enquanto Custódio Marques volvia para casa, sem lanterna, apesar das instâncias
do magistrado para que aceitasse uma.
A lanterna era um obstáculo para o
funcionário municipal. Se a iluminação pública, que só começou no vice-reinado
do conde de Resende, fosse naquele tempo sujeita ao voto do povo, pode-se
afirmar que o almotacé lhe seria contrário. A escuridão era uma das vantagens
de Custódio Marques. Ele a aproveitava em escutar às portas ou surpreender as
entrevistas dos namorados às janelas. Naquela noite, porém, mais que tudo o
preocupava o chamado do vice-rei e a impressão que ele fez ao juiz de fora. Que
seria? Custódio Marques ia cogitando nisso e pouco no resto da cidade. Ainda
assim, pôde ouvir alguma coisa da conspiração de vários devotos do Rosário, em
casa do barbeiro Matos, para derribar a atual mesa da Irmandade, e viu sair
cinco ou seis indivíduos da casa de D. Emerenciana, à Rua da Quitanda, onde ele
já havia descoberto que se jogava todas as noites. Um deles, pela fala,
pareceu-lhe que era o filho de José Mendes.
— Nisso é que se ocupa aquele peralta! dizia
ele consigo.
Mas enganava-se o almotacé. Justamente à hora
em que da casa de D. Emerenciana saíam os tais sujeitos, despedia-se Gervásio
Mendes da formosa Esperança, com quem conversara à janela, desde as sete horas
e meia. Gervásio queria prolongar a conversa, mas a filha do almotacé pediu-lhe
instantemente que fosse, visto ser hora de voltar o pai. Além disso, a tia de
Esperança, irritada com cinco ou seis capotes que lhe dera o sacristão, jurava
pelas bentas setas do mártir padroeiro nunca mais pegar em cartas. Verdade é
que o sacristão, filósofo e prático, baralhava as cartas com exemplar modéstia,
e vencia o despeito de D. Joana, à força de lhe dizer que a fortuna anda e
desanda, e que a partida seguinte bem lhe podia ser adversa. D. Joana entre as
cartas e as setas escolheu o que lhe parecia ser menos mortífero.
Gervásio cedeu também às rogativas de
Esperança.
— Sobretudo, dizia esta, não fiques zangado
com papai por ele haver dito...
— Oh! se tu souberes o que foi! interrompeu o
filho do boticário. Foi uma calúnia, mas tão torpe que não te posso repetir.
Estou certo de que o Sr. Custódio Marques não a inventou; repetiu-a somente e
fez mal. E foi por culpa dele que meu pai me ameaçou hoje com uma sova de pau.
Pau, a mim! E por causa do Sr. Custódio Marques!
— Mas ele não te quer mal...
— Eu sei lá!
— Não quer, não, insistiu a moça com
meiguice.
— Pode ser que não; mas com os projetos que tem
a teu respeito, se vier a saber que tu gostas de mim... E daí pode ser que tu
mesma cedas e cases com o...
— Eu! Nunca! Antes meter-me freira.
— Juras?
— Gervásio!
Estalou um beijo que fez levantar a cabeça à
tia Joana, e o sacristão explicou dizendo que lhe parecia o chiar de um grilo.
O grilo arrancou-se, enfim, à companhia da gentil Esperança, e tinha já tempo
de estar acomodado na sua alcova, quando Custódio Marques chegou a casa. Achou
tudo em paz. D. Joana levantava a banca do jogo, o sacristão despedia-se,
Esperança recolhera-se ao seu quarto. O almotacé encomendou-se aos santos de
sua devoção, e dormiu na paz do Senhor.
A palidez do juiz de fora não saiu, talvez,
da cabeça do leitor; e, tanto como o almotacé, está ele curioso de saber a
causa do fenômeno. A carta do vice-rei dizia respeito a negócio do Estado. Era
lacônica; mas terminava com uma frase mortal para o magistrado: “Pode ser que o
serviço de Sua Majestade exija de vossa senhoria uma jornada de algumas
semanas. Venha ter comigo imediatamente”. Se o juiz de fora fosse obrigado ao
serviço extraordinário de que lhe falava o conde de Azambuja, interrompia-se um
romance, começado cerca de dois meses antes, em que era protagonista uma
interessante viuvinha de vinte e seis stios. Esta viuvinha era da província de
Minas Gerais; descera da terra natal para entregar em mão do vice-rei uns
papéis que queria submeter a Sua Majestade, e ficou presa nas maneiras
obsequiosas do juiz de fora.
Alugou casa perto do convento da Ajuda, e ali
estava morando, a título de ver a Capital. O romance assumiu proporções
grandes, complicou-se o enredo, avultaram as descrições e as peripécias, e a
obra ameaçava estender-se a muitos volumes. Nestas circunstâncias exigir do
magistrado que se alongasse da Capital algumas semanas, era exigir o mais
difícil e aspérrimo. Imagine-se com que alma saiu dali o magistrado.
Qual fosse o negócio de Estado que obrigou
aquele chamado noturno, não o sei eu, nem importa sabê-lo. O essencial é que
durante três dias ninguém arrancou um sorriso aos lábios do magistrado, e que
no terceiro dia volveu-lhe a alegria mais espontânea e viva, que até ali
tivera. Adivinha-se que a necessidade da jornada desapareceu e que o romance
não ficava truncado.
O almotacé foi dos primeiros que viram esta
mudança. Preocupado com a tristeza do juiz de fora, não menos o ficou ao vê-lo
novamente satisfeito.
— Não sei qual foi o motivo da tristeza de
vossa senhoria, disse ele, mas espero mostrar-lhe quanto me alegro com vê-lo
tornado às suas usuais venturas.
Efetivamente, o almotacé tinha dito à filha
que era necessário dar um mimo qualquer, de suas mãos, ao juiz de fora, com
quem, se a fortuna a ajudasse, viria a ser aparentada. Custódio Marques não viu
o golpe que a filha recebeu com esta palavra; exigia o cargo municipal que ele
fosse dali a serviço, e foi, deixando a alma da menina doente de maior aflição.
Entretanto, a alegria do juiz de fora era
tal, e tão agudo se ia tornando o romance, que já o feliz magistrado observava
menos as costumadas cautelas. Um dia, cerca das seis horas da tarde, passando o
almotacé pela Rua da Ajuda, viu sair de uma casa, de nobre aparência, a
venturosa figura do magistrado. Sua atenção encrespou as orelhas; e os olhos
perspicazes faiscaram de contentamento. Haveria ali um fio? Logo que viu longe
o juiz de fora, aproximou-se da casa, como farejando; dali foi à loja mais
próxima, onde soube que na dita casa morava a interessante viúva mineira. A
eleição de vereador ou um presente de quatrocentos africanos, não o contentaria
mais.
— Tenho o fio! dizia ele consigo. Resta-me ir
ao fundo do labirinto.
Daí em diante, não houve assunto que
distraísse o espírito investigador do almotacé. De dia e de noite, vigiava a
casa da Rua da Ajuda, com pertinácia e dissimulação raras; e tão feliz foi que,
no fim de cinco dias, tinha certeza de tudo. Auxiliou-o nisso a indiscrição de
alguns escravos. Uma vez sabedor da aventura, deu-se pressa em correr à casa do
juiz de fora.
— Ainda agora aparece! exclamou este logo que
o viu entrar.
— vossa senhoria fez-me a honra de mandar
chamar?
— Há meia hora que andam dois emissários em
sua procura.
— Eu estava em serviço de vossa senhoria.
— Como?
— Não lhe dizia eu que havia de descobrir
alguma coisa? perguntou o almotacé piscando os olhos.
— Alguma coisa!
— Sim, aquilo... vossa senhoria sabe a que me
refiro... Meteu-se-me em cabeça que vossa senhoria não podia escapar-me.
— Não compreendo.
— Não compreende vossa senhoria outra coisa,
disse Custódio Marques deliciando-se com o repassar do ferro na curiosidade do
protetor.
— Mas, Sr. Custódio, trata-se...
Trate-se do que se tratar; declaro a vossa
senhoria que sou de segredo, e por isso nada direi a ninguém. Que havia de
haver algum bico d’obra, era verdade; andei à espreita, e afinal descobri a
moça... a moça da Rua da Ajuda.
— Sim?
— É verdade. Fiz a descoberta há dias; mas
não vim logo porque queria certificar-me bem. Agora, posso dizer-lhe que...
sim, senhor... aprovo. É muito bonita.
— Andou então na investigação dos meus
passos?
— vossa senhoria compreende que não há outra
intenção...
Pois, Sr. Custódio Marques, mandei-o chamar
por toda a parte, visto que há cerca de três quartos de hora tive notícia de
que sua filha fugiu de casa...
O almotacé deu um pulo; seus dois olhinhos
cresceram desmesuradamente; a boca, aberta, não ousava proferir uma só palavra.
— Fugiu de casa, continuou o magistrado,
segundo notícia que tenho, e creio que...
— Mas com quem? para onde? articulou enfim o
almotacé.
— Fugiu com o Gervásio Mendes. Vão na direção
da Lagoa da Sentinela...
— Senhor Dr... Peço-lhe perdão, mas, bem sabe...
bem sabe...
— Vá, vá...
Custódio Marques não atinava com o chapéu.
Deu-lho o juiz de fora.
— Corra...
— Olhe a bengala!
O almotacé recebeu a bengala.
— Obrigado! Quem tal diria! Ah! nunca pensei...
que minha filha, e aquele peralta... Deixe-os comigo...
— Não perca tempo.
— Vou... vou.
— Mas, olhe cá, antes de ir. Um astrólogo
contemplava os astros, com tamanha atenção, que caiu num poço. Uma velha da
Trácia, vendo-o cair, soltou esta exclamação: “Se ele não via o que lhe estava
aos pés, para que havia de investigar o que lá fica tão em cima!”
O almotacé compreenderia o apólogo, se
pudesse ouvi-lo. Mas não ouviu nada. Desceu as escadas a quatro e quatro
bufando como um touro.
Il court
encore.
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