O Asa-Negra
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Quando, em 185... poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua
mãe curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos
móveis e às paredes, mandaram chamar a toda pressa a única parteira que naquele
tempo havia na pequena cidade de Alcântara.
A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte
hipotética à mãe de Aureliano, que era mais rica.
Só algumas horas mais tarde pôde acudir ao chamado; mas já não era
tempo: a mãe sucumbira à eclampsia; o filho salvara-se por um milagre, que
ficou até hoje gravado na tradição obstétrica de Alcântara.
O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis
consequências, não só da inépcia das mulheres que assistiram a sua mãe, como do
falecimento desta. Era aleijado, entanguescido, e tinha a cabeça singularmente
achatada, nas cavidades frontais, pela pressão grosseira de dedos imperitos. Um
menino feio, muito feio.
***
Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou Aureliano,
rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas uma antipatia invencível afastou-o
logo desse causador involuntário dos infortúnios que lhe cercaram o berço.
Aureliano, que era de um natural orgulhoso, não perdia ensejo de
vingar-se da antipatia do outro. Não houve diabrura de que o não acusasse
falsamente, e, como Raimundo não era estimado, por ser feio, não encontrava
defesa, e estendia resignado a mão pequenina às palmatoadas estúpidas do mestre
escola. Isto acontecia diariamente.
O mestre, afinal, cansado de castigá-lo em pura perda, pois que as
acusações continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola; e, como não
houvesse outra em Alcântara, o bode expiatório cresceu à bruta, sem instrução,
não tendo achado no mundo espírito compadecido que lhe levasse um raio de luz à
treva da inteligência medíocre.
Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a
capital, consignado a uma casa de comércio.
Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou
ensinar primeiras letras e rudimentos de escrituração mercantil. A prática
faria o resto.
Dentro de algum tempo o menino, que já contava dezesseis anos,
deveria entrar, corno ajudante de guarda-livros, para certo escritório de
comissões; mas oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego,
morreu inesperadamente o seu protetor.
Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprazado, em casa do
futuro patrão.
— Cá estou eu.
— Quem é você?
— O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F.
— Ah! sim... lembra-me... mas o meu amiguinho chore na cama que é
lugar quente; o serviço não podia esperar, e eu tive que admitir outra pessoa.
E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de camisa, a uma
carteira elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita.
— Ah! murmurou despeitado o infeliz alcantarense.
O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o: era Aureliano,
que tinha os lábios arqueados por um sorriso verdadeiramente satânico.
***
Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua
penúria pelas ruas de São Luís. Andava maltrapilho e quase descalço.
Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa agência de
leilões. Só quatro anos mais tarde julgou prudente trocá-lo por um lugar de
condutor de bonde.
Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra, moveu-lhe
toda a guerra possível. Diariamente lhe chegavam aos ouvidos os impropérios
gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patrício.
Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz simpático e
geralmente estimado na sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento
em que ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o seu
asa-negra.
***
Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e
inquietos de Leopoldina.
Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena bonita,
cujos contornos opulentos causariam inveja às louras napeias de Rúbens. A
rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita das
mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se, enrolado no
descuido artístico das velhas estátuas gregas, deixando ver um cachaço que
estava a pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas
dentadas de um gigante.
Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo dia conduziu
ao altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia esteve, coitado, vê
não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de trás do altar-mor,
para arrebatar-lhe a noiva.
Infelizmente assim não sucedeu.
Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil maravilhas;
mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se tornando flagrante. O seu
organismo fazia prodígios para corresponder às exigências da esposa, cuja
natureza não lhe indagava das forças.
As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe
faltam os maridos com a dosimetria do amor, confundem a miséria do sangue com a
pobreza da casa. Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar o abstrato ao
concreto. Leopoldina, que até então se contentara com a aurea mediocritas relativa do condutor de bonde, começou um dia a
manifestar apetites de luxo, a sonhar frandulagens e modas.
De então em diante tornou-se um inferno a existência doméstica de
Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivência da esposa,
jantava com os amigos, e só aparecia em casa para pedir ao sono forças para o
trabalho do dia seguinte.
***
Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa em hora desacostumada,
surpreendeu Leopoldina nos braços hercúleos de Aureliano.
Excitado pelo desespero, cresceu para eles frenético, espumante;
mas os quatro braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delícias, e repeliram-no vigorosamente.
O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa,
estatelado, sem sentidos.
Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido.
Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo para o
trabalho.
Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço repreendeu-o,
fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensível. Despedi-lo-ia, se não
fosse empregado antigo, que tão boas provas dera até então de si.
O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados saltavam-lhe
das órbitas com lampejos estranhos. E respondeu coisas incoerentes. Estava
doido.
Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por um tio,
derradeiro destroço de toda a família.
Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente, saiu de casa
uma noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças nas águas da
Baía de São Marcos.
***
Dois dias depois deste suicídio, a Ilha do Livramento, árido
promontório situado perto de Alcântara, em frente àquela Baia de São Nilarcos,
regurgitava alegremente de povo. Realizava-se a festa de Nossa Senhora, e os
fiéis afluíam, tanto da capital como de Alcântara, à velha ermida solitária.
Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada de todas as
festas e romarias, compareceu também ao arraial, exibindo publicamente a sua
personalidade, que se tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina.
No Maranhão as paredes não têm somente ouvidos, como diz o adágio:
têm também olhos.
***
Conquanto o céu anunciasse próxima borrasca, Aureliano resolveu
deixar a Ilha do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa, em
demanda de Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem dúvida
arriscada; mas lá, na colina escura que se refletia vagamente nas águas negras
da baía, esperam-no os braços roliços da viúva do doido.
Embarcou.
Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manhã tomara a seu
serviço.
***
Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o mar, que
até então se conservara plácido e próspero, encapelou-se raivoso. Em três
minutos as ondas esbravejavam já terrivelmente, e a canoa, erguida a grande
altura, e de novo arremessada ao pélago, num estardalhaço de vagas, recebia no
bojo quantidade de água suficiente para metê-la a pique.
— Cada um cuide de si! bradou o remador, atirando-se ao mar, e
oferecendo combate heroico à impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro.
Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não sabia nadar,
o desgraçado! Preparou-se para morrer...
A embarcação submergiu-se.
O náufrago agitava instintivamente os braços e as pernas,
esperando talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que
nunca aprendera.
Debalde!
Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo à tona d'água,
chamado à vida pelo seu sangue de moço. Bracejou... tentou bracejar... A sua
mão encontrou alguma coisa fria, muito fria... que flutuava. Agarrou-se a esse
objeto salvador... boiou muito tempo com ele... e com ele finalmente foi
arremessado à praia...
O cadáver de Raimundo salvara Aureliano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...