Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A — Lá vai o Xavier.
Z — Conhece o Xavier?
A — Há que anos! Era um nababo, rico, podre
de rico, mas pródigo...
Z — Que rico? que pródigo?
A — Rico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia
pérolas diluídas em néctar. Comia línguas de rouxinol. Nunca usou papel
mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas
uma certa areia feita de pó de diamante. E mulheres! Nem toda a pompa de Salomão
pode dar ideia do que era o Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha
grega, a tez romana, a exuberância turca, todas as perfeições de uma raça,
todas as prendas de um clima, tudo era admitido no harém do Xavier. Um dia
enamorou-se loucamente de uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe de mimo
três estrelas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador
foi aí qualquer pé-rapado. Não, senhor. O portador foi um dos arcanjos de
Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que ele cortava o azul para levar a
admiração dos homens ao seu velho pai inglês. Era assim o Xavier. Capeava os
cigarros com um papel de cristal, obra finíssima, e, para acendê-los, trazia
consigo uma caixinha de raios do sol. As colchas da cama eram nuvens purpúreas,
e assim também a esteira que forrava o sofá de repouso, a poltrona da
secretária e a rede. Sabe quem lhe fazia o café, de manhã? A Aurora, com
aqueles mesmos dedos cor-de-rosa, que Homero lhe pôs. Pobre Xavier! Tudo o que
o capricho e a riqueza podem dar, o raro, o esquisito, o maravilhoso, o
indescritível, o inimaginável, tudo teve e devia ter, porque era um galhardo
rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna, fortuna! Onde estão agora as pérolas, os
diamantes, as estrelas, as nuvens purpúreas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por
água abaixo; o néctar virou zurrapa, os coxins são a pedra dura da rua, não
manda estrelas às senhoras, nem tem arcanjos às suas ordens...
Z — Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier
há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier que ali vai nunca teve mais de
duzentos mil-réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se com as
galinhas, acorda com os galos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as
tem. Se alguma expede aos amigos é pelo correio. Não é mendigo, nunca foi nababo.
A — Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem
só de pão vive o homem. Você fala de Marta, eu falo-lhe de Maria; falo do
Xavier especulativo...
Z — Ah! — Mas ainda assim, não acho
explicação; não me consta nada dele. Que livro, que poema, que quadro...
A — Desde quando o conhece?
Z — Há uns quinze anos.
A — Upa! Conheço-o há muito mais tempo, desde
que ele estreou na Rua do Ouvidor, em pleno Marquês de Paraná. Era um
endiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possíveis, e até contrárias,
um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma
história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas,
outra à lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e
arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos.
Quem conversava com ele sentia vertigens. Imagine uma cachoeira de ideias e
imagens, qual mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes
sublime. Note que ele tinha a convicção dos seus mesmos inventos. Um dia, por
exemplo, acordou com o plano de arrasar o morro do Castelo, a troco das
riquezas que os jesuítas ali deixaram, segundo o povo crê. Calculou-as logo em
mil contos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que era moeda, mil
contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descreveu minuciosamente os
objetos, deu-me dois tocheiros de ouro...
Z — Realmente...
A — Ah! impagável. Quer saber de outra? Tinha
lido as cartas do Cônego Benigno, e resolveu ir logo ao sertão da Bahia,
procurar a cidade misteriosa. Expôs-me o plano, descreveu-me a arquitetura
provável da cidade, os templos, os palácios, gênero etrusco, os ritos, os
vasos, as roupas, os costumes...
Z — Era então doido?
A — Originalão apenas. Odeio os carneiros de
Panúrgio, dizia ele, citando Rabelais: Comme
vous savez estre du mouton Le naturel, toujours suivre le premier, quelque part
qu'il aille. Comparava a trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e
jurava que antes comer um mau bife em mesa separada.
Z — Entretanto, gostava da sociedade.
A — Gostava da sociedade, mas não amava os
sócios. Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e sabe o que é que
ele respondeu? Respondeu com um apólogo, em que cada sócio figurava ser uma
cuia d’água, e a sociedade uma banheira. — Ora, eu não posso lavar-me em cuias
d’água, foi a sua conclusão.
Z — Nada modesto. Que lhe disse o Pires?
A — O Pires achou o apólogo tão bonito que o
meteu numa comédia, daí a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apólogo no
teatro e aplaudiu-o muito, com entusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a
voz do sangue... Isto leva-me à explicação da atual miséria do Xavier.
Z — É verdade, não sei como se possa explicar
que um nababo...
A — Explica-se facilmente. Ele espalhava ideias
à direita e à esquerda, como o céu chove, por uma necessidade física, e ainda
por duas razões. A primeira é que era impaciente, não sofria a gestação
indispensável à obra escrita. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão
vasta de coisas, que mal poderia fixar-se em qualquer delas. Se não tivesse o
verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era um derivativo. As
páginas que então falava, os capítulos que lhe borbotavam da boca, só
precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem
páginas e capítulos excelentes, alguns admiráveis. Nem tudo era límpido; mas a
porção límpida superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os seus
cochilos. Espalhava tudo, ao acaso, as mãos cheias, sem ver onde as sementes
iam cair; algumas pegavam logo...
Z — Como a das cuias.
A — Como a das cuias. Mas, o semeador tinha a
paixão das coisas belas, e, uma vez que a árvore fosse pomposa e verde, não lhe
perguntava nunca pela semente sua mãe. Viveu assim longos anos, despendendo à
toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia, na rua e em casa, um verdadeiro
pródigo. Com tal regímen, que era a ausência de regímen, não admira que ficasse
pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o espírito têm limites; a não ser
a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço
inesgotável debaixo do sol. O Xavier não só perdeu as ideias que tinha, mas até
exauriu a faculdade de as criar; ficou o que sabemos. Que moeda rara se lhe vê
hoje nas mãos? Que sestércio de Horácio? que drama de Péricles? Nada. Gasta o
seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à mesa redonda, fez-se
trivial, chocho...
Z — Cuia, enfim.
A — Justamente: cuia.
Z — Pois muito me conta. Não sabia nada
disso. Fico inteirado; adeus.
A — Vai a negócio?
Z — Vou a um negócio.
A — Dá-me dez minutos?
Z — Dou-lhe quinze.
A — Quero referir-lhe a passagem mais
interessante da vida do Xavier. Aceite o meu braço, e vamos andando. Vai para a
Praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo. Foi ali por 1869 ou 70, não me
recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdido tudo; trazia o cérebro gasto,
chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer
que um dia chamou rosa a uma senhora, — “uma bonita rosa”; falava do luar
saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos, sem acrescentar ao
menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe. Começara a ficar
hipocondríaco; e, um dia, estando à janela, triste, desabusado das coisas,
vendo-se chegado a nada, aconteceu passar na rua um taful a cavalo. De repente,
o cavalo corcoveou, e o taful veio quase ao chão; mas sustentou-se, e meteu as
esporas e o chicote no animal; este empina-se, ele teima; muita gente parada na
rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a
marcha. Os espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o
sangue-frio, a arte do cavaleiro. Então o Xavier, consigo, imaginou que talvez
o cavaleiro não tivesse ânimo nenhum; não quis cair diante de gente, e isso lhe
deu a força de domar o cavalo. E daí veio uma ideia: comparou a vida a um
cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: Quem não for
cavaleiro, que o pareça. Realmente, não era uma ideia extraordinária; mas a
penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal pareceu-lhe um
diamante. Ele repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vários modos, ora na
ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento; ora dando-lhe
a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão alegre, tão alegre
como casa de pobre em dia de peru. De noite, sonhou que efetivamente montava um
cavalo manhoso, que este pinoteava com ele e o sacudia a um brejo. Acordou
triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu;
meteu-se a ler e a cismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do anel de
Polícrates?
Z — Francamente, não.
A — Nem eu; mas aqui vai o que me disse o
Xavier. Polícrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra;
tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e, para aplacá-la
antecipadamente, determinou fazer um grande sacrifício: deitar ao mar o anel
precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna
andava tão apostada em cumulá-lo de obséquios, que o anel foi engolido por um
peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à
posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me
contou, citando Plínio, citando...
Z — Não ponha mais na carta. O Xavier
naturalmente comparou a vida, não a um cavalo, mas...
A — Nada disso. Não é capaz de adivinhar o
plano estrambótico do pobre-diabo. Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos
se a minha ideia, lançada ao mar, pode tornar ao meu poder, como o anel de
Polícrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca
mais lhe ponha a mão?
Z — Ora essa!
A — Não é estrambótico? Polícrates
experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o caiporismo; intenções
diversas, ação idêntica. Saiu de casa, encontrou um amigo, travou conversa,
escolheu assunto, e acabou dizendo o que era a vida, um cavalo xucro ou
manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça. Dita assim, esta frase era
talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua
tristeza, o desconsolo dos anos, o malogro dos esforços, ou antes os efeitos da
imprevidência, e quando o peixe ficou de boca aberta, digo, quando a comoção do
amigo chegou ao cume, foi que ele lhe atirou o anel, e fugiu a meter-se em
casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se, não é impossível; mas agora começa
a juntar-se à realidade uma alta dose de imaginação. Seja o que for, repito o
que ele me disse. Cerca de três semanas depois, o Xavier jantava pacificamente
no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de
outra mesa a mesma frase sua, talvez com a troca de um adjetivo. “Meu pobre
anel, disse ele, eis-te enfim no peixe de Polícrates.” Mas a ideia bateu as
asas e voou, sem que ele pudesse guardá-la na memória. Resignou-se. Dias
depois, foi convidado a um baile: era um antigo companheiro dos tempos de
rapaz, que celebrava a sua recente distinção nobiliária. O Xavier aceitou o
convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá
ouviu de um grupo de pessoas que louvavam a carreira do Barão, a sua vida
próspera, rígida, modelo, ouviu comparar o Barão a um cavaleiro emérito. Pasmo
dos ouvintes, porque o Barão não montava a cavalo.
Mas o panegirista explicou que a vida não é
mais do que um cavalo xucro ou manhoso, sobre o qual ou se há de ser cavaleiro
ou parecê-lo, e o Barão era-o excelente. — “Entra, meu querido anel, disse o
Xavier, entra no dedo de Polícrates”. Mas de novo a ideia bateu as asas, sem
querer ouvi-lo. Dias depois...
Z — Adivinho o resto: uma série de encontros
e fugas do mesmo gênero.
A — Justo.
Z — Mas, enfim, apanhou-o um dia.
A — Um dia só, e foi então que me contou o
caso digno de memória. Tão contente que ele estava nesse dia! Jurou-me que ia
escrever, a propósito disto, um conto fantástico, à maneira de Edgar Poe, uma
página fulgurante, pontuada de mistérios, — são as suas próprias expressões; —
e pediu-me que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o anel fugira-lhe outra vez.
“Meu caro A, disse-me ele, com um sorriso fino e sarcástico, tens em mim o
Polícrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorário e gratuito”. Daí em
diante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha pôr a mão em cima da ideia,
ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras de um
sonho. Outro peixe a engolia e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos
casos que ele me contou naquele dia, quero dizer-lhe três...
Z — Não posso; lá se vão os quinze minutos.
A — Conto-lhe só três. Um dia, o Xavier
chegou a crer que podia enfim agarrar a fugitiva, e fincá-la perpetuamente no
cérebro. Abriu um jornal de oposição, e leu estupefato estas palavras: “O
ministério parece ignorar que a política é, como a vida, um cavalo xucro ou
manhoso, e, não podendo ser bom cavaleiro, porque nunca o foi, devia ao menos
parecer que o é”.
— “Ah! enfim! exclamou o Xavier, cá estás
engastado no bucho do peixe; já me não podes fugir”. Mas, em vão! a ideia
fugia-lhe, sem deixar outro vestígio mais do que uma confusa reminiscência.
Sombrio, desesperado, começou a andar, a andar, até que a noite caiu; passando
por um teatro, entrou; muita gente, muitas luzes, muita alegria; o coração
aquietou-se-lhe. Cúmulo de benefícios: era uma comédia do Pires, uma comédia
nova. Sentou-se ao pé do autor, aplaudiu a obra com entusiasmo, com sincero
amor de artista e de irmão. No segundo ato, cena VIII, estremeceu. “D. Eugênia,
diz o galã a uma senhora, o cavalo pode ser comparado à vida, que é também um
cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro, deve cuidar de parecer que
o é”. O autor, com o olhar tímido, espiava no rosto do Xavier o efeito daquela
reflexão, enquanto o Xavier repetia a mesma súplica das outras vezes: — “Meu
querido anel...”
Z — Et
nunc et semper... Venha o último encontro, que são horas.
A — O último foi o primeiro. Já lhe disse que
o Xavier transmitira a ideia a um amigo. Uma semana depois da comédia cai o
amigo doente, com tal gravidade que em quatro dias estava à morte.
O Xavier corre a vê-lo; e o infeliz ainda o
pôde conhecer, estender-lhe a mão fria e trêmula, cravar-lhe um longo olhar
baço da última hora, e, com a voz sumida, eco do sepulcro, soluçar-lhe: “Cá
vou, meu Caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou-me ao chão: se
fui mau cavaleiro, não sei; mas forcejei por parecê-lo bom”. Não se ria; ele
contou-me isto com lágrimas. Contou-me também que a ideia ainda esvoaçou alguns
minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de cristal, que ele cria ser
diamante depois estalou um risinho de escárnio, ingrato e parricida, e fugiu
como das outras vezes, metendo-se no cérebro de alguns sujeitos, amigos da
casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio
legado do defunto. Adeus.
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