O André Canoeiro
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Com os bois
por diante — porque o caminho aí corria
ainda em declive suave contra a falda do morro — o
André, sentado ao cabeçalho do carro, as pernas bamboleando aos solavancos das
rodas, a aguilhada em punho reluzindo ao alto o aguçado ferrão, fizera calar de
repente a singela cantiga rústica que ia assobiando para olhar embevecidamente,
ao longe, sobre o mar muito manso, a rareada casaria da Ponta Grossa,
branquejando além, sob o primeiro clarão da madrugada, pelos montes da outra
banda.
Era pelo
tempo das farinhadas. Vinham chegando as manhãs de Escócia, álgidas, e as
noites sem nuvens, esgazeadas, de junho. Colhiam-se as primeiras roças de
mandioca, nas planícies, nas encostas e nas altas chapadas. Havia por todos os
sítios um labor alegre e cantado. E em todos os engenhos, à beira das estradas
claras e debruadas de verdura espessa, no início dos pastos ou junto ao sopé
das montanhas, entre laranjais, o rumor doméstico e plácido das famílias
reunidas, sob os tetos baixos de palha, em volta dos braseiros de inverno, na
faina festival do trabalho.
Naquele
arraial dos Ganchos, um dos engenhos que mais cedo começavam a farinhar, todos
os anos, era o do velho Eliseu Brito, padrinho do André e um dos mais abastados
lavradores do lugar. Chefe de numerosa família, com filhos e filhas casados,
cercado de ninhadas de netos, a maior parte habitando conjuntamente o mesmo
vasto prédio que havia abrigado durante quase dois séculos a geração forte de
seus antepassados, este bom homem obscuro possuía em si o encanto, a doçura, a
bondade cândida de um antigo patriarca. Ali e nas circunvizinhanças o seu nome
e as suas virtudes exerciam no povo, em geral, como um prestígio e uma
fascinação, grandemente corroborados pelas liberalidades benfazejas e fecundas
que continuamente recaíam sobre essa boa população. De toda a parte, por isso,
nessa época, muita gente acorria ao seu engenho para o ajudar, enxameando
sonoramente o enorme edifício situado a algumas braças do mar, na Baixada
Grande. E, durante esses meses frios mas encantadores, em que as cevadeiras
cantam deliciosamente, uma alegria marulhosa e campestre estalava em redor,
panteisticamente, pelas sebes cheias de aves, pelos cafezais tufados que
abrigam amores, e pelas laranjeiras frondentes todas salpicadas de ouro. Das
pessoas de fora que tomavam parte mais ativa na faina, o André distinguia-se
entre todas, porque, a bem dizer, de menino que não saía da Baixada Grande,
onde se criara quase até o dia tristíssimo em que o pai perecera, por um
descuido desastroso, na moagem da cana. Fora pela festa de São João. Tinha ele
treze anos. E a mãe, muito aflita e coberta de luto, inconsolável na sua grande
amargura, nessa mesma noite, com ele, deixara essas terras, para ir morar com
uma tia, no outro extremo dos Ganchos. Mas ele vinha sempre, uma vez por
semana, à grande habitação do padrinho, para tomar-lhe a bênção e ganhar o
costumado quinhão. E as farinhadas, passava-as sempre no engenho, ajudando a
gente da casa, numa labuta constante, com a sua índole intrépida e mansa de bom
trabalhador, ora acarretando a mandioca e lidando com o gado, ora cevando e
forneando.
Assim, ali
ia agora, monte acima, pacificamente, cheio de paz e cheio de felicidade, para
as primeiras carradas da manhã. E como daquelas alturas já se desvendassem
luminosamente, num colorido, o imenso panorama, a longa faixa litoral do
continente toda rendilhada de branco, e os cômoros cor de ocre esbatido, e as
pontas de rochas em novelos espumantes, da outra costa de ilha, onde ele há
muito trazia preso o coração — acometeu-o
repentinamente a lembrança deliciosa de que naquele dia, à noite, começavam as
primeiras novenas da coroa em casa do João Sant'Ana. E quedou-se a cismar, a
meditar intimamente, na chegada que
ia dar, ao anoitecer, até à outra banda. Sim, porque não podia perder aquelas
novenas, por nada do mundo! Prometera à Terezinha não faltar a nenhuma. Ela o
esperava e, decerto, àquela hora, no terreiro alegre de casa, a debulhar milho
às galinhas, num alvoroço feliz, pensava nele, toda rosada e sorrindo sob o
esplendor glorioso da luz. Não podia, pois, faltar. No entanto, os trabalhos do
engenho reclamavam-no.
Que diabo!
Mas arranjar-se-ia, como da feita em que o pai da rapariga estivera a decidir
da “pontada”, saindo todos os dias, às
Ave-Marias, para a Ponta Grossa, na sua bela canoa a Toninha, e voltando sempre alta noite ou pela madrugada. Se Deus
quisesse, ele faria o mesmo agora, sem se apertar,
porque desta vez coubera-lhe felizmente o serviço dos carros, que findava
sempre à noitinha. Quanto à distância e ao mar, isso pouco se lhe dava: tinha
bons pulsos para o remo, quando não pudesse velejar. O tempo, esse não o
inquietava, não o amedrontava nas águas, porque estava afeito de criança a
todas as suas variantes. Depois, contava infinitas travessias, mesmo para o
Arvoredo e para o Rapa, sob ventos desfeitos, vagalhões desesperados. No mar
poucos o venceriam, tinha uma “boa estrela”, as ondas o amavam... Que chegasse a noite, era o que ele queria,
para ir gozar o coroado.
E, embalado
nesta ideia, iluminando-lhe e consolando-lhe a alma como uma longa carícia de
amante, voltou a assobiar com bravura, expansivamente, as notas amorosas da Tirana. Os animais puxavam, lançando
baforadas de fumo na frescura matinal, toda impregnada de aromas. Na frente do
carro, presa à haste rija de peroba, a canga rangia, de vez em quando, nas suas
grossas guascas de couro. E, sobre os largos lombos arqueados e os pescoços
possantes dos bois, cujas cabeças sumiam-se, para além dos canzis, quase rentes
com a terra no esforço da subida, as quatro pontas aguçadas dos chifres,
oscilando, enfiadas ao ajoujo.
Mas o
caminho aí empinava-se numa volta brusca onde se cavava fundo uma grota
pedregosa e abrupta, rolando lá embaixo, entre sebes úmidas, a prata viva e
viajora de um fio d'água cantante, e o André imediatamente saltou para o chão,
tomando a dianteira do veículo. Nessas alturas, o mar perdia-se de vista,
porque as chapadas onde estavam as roças voltavam-se todas para a outra banda.
Agora descortinavam-se somente as planuras verdejantes das Tijucas,
alongando-se para todos os lados, orladas nervosamente de finas barras de tule,
que se perdiam e ondulavam à distância. E à proporção que o carro avançava, o
terreno se ia horizontando, até que de repente caiu numa esplanada magnífica,
toda coalhada de ramas. Era o mandiocal do morro chamado, um mandiocal gigante,
o mais custoso de todos pela sua situação, mas o que melhores resultados
deixava ao fim de cada ano. O velho Eliseu Brito, quando às vezes ia vê-lo, na
sua guecha branca, pelo tempo da capinação, enchia os olhos de gozo e exclamava
num júbilo, o belo rosto radiante:
— É o meu tesouro! É o meu melhor quinhão!...
Quando o
André entrou a fazer a volta, num perímetro de terreno limpo, onde se erguia
uma espécie de rancho para abrigar o pessoal da roça nas longas estadias da
colheita e da plantação, o Hortêncio e o Luís Brito, que o tinham precedido ali
ainda nem se anunciava a manha para a faina de arrancar as raízes e arrumar a
boa rama, gritaram-lhe logo:
— Ó André, ó brejeiro, pois ainda agora, homem! Descanga, descanga esses
bois. Olha, amarra-os lá para aquele outro lance. E anda, demônio! que a
mandioca já está aqui a “apodrecer...”
O André, que
nesse instante colocava o muchaco e desabrochava os bois, volveu lentamente,
com a voz constrangida pela aplicação da força:
— Ora aguardem lá, seus quebras! Isto aqui não é ir variar
parelheiros lá para o Capão, nem dar as pernas à ufa nos fandangos da Maria
Biana... Temos tempo, o dia é grande. Nem tudo vai a matar...
Mas eles
romperam de novo:
— E que é dos outros carros, hein? Por onde deixaste o
João Candinha e o Romão! Que diabo! Parece que tudo hoje anda levado da breca!
Ora queira Deus o velho não lhes passe por aí um sermão!...
— Os outros? fez o André erguendo-se. Ficaram ainda lá
embaixo, atrás de um dos bois, o Veludo, que
fugira de noite para o campo. Mas decerto já vinham em caminho, pois, ao passar
pela grota, lhe parecera ouvir, para os lados do Viana, a toada grossa do Romão
cantando a Flor lageana.
E como
falara até ali sem dar com os rapazes, lançou os olhos então sobre aquele vasto
mar de folhas verdejantes, onde eles arrancavam a mandioca afogados até o
pescoço, ora erguendo-se, ora abaixando-se. E a muito custo descobriu-lhes os
bustos alvos, vestidos em camisas de algodão, boiando além, no seio da verdura,
como os de náufragos nadando. Em volta, por um amplo rombo na rama, perdido
nessa superfície infinita ondulando ao vento, negrejavam já ilhotas de raízes,
arrancadas de fresco, tortas, empoeiradas e nodosas, à maneira de estranhos
montões de répteis. E, pondo a corda nos bois, foi amarrá-los a pequena
distância, para um recanto do morro em que havia grama. Daí a instantes voltou
correndo, muito alegre, na direção dos rapazes, o belo rosto imberbe corado
pelo frio, o largo chapéu de palha à banda:
— Então, seus patifes, vocês não se movem dessa “cocha” da arrancação? Toca a carregar o carro! Pra ali! Vamos!
Vamos!...
E
atirava-se, aos pinchos, por cima dos montões de mandioca, às gargalhadas, como
um escolar de dez anos. Nisso, surgiram na chapada os dois carros, a cuja
frente vinham o João Candinha e o Romão. Os rapazes gritaram-lhes logo, a uma,
num alvoroço:
— Cheguem, cheguem, rapazes! Isto é uma vadiação. A estas
horas já era pra haver mandioca no engenho. A gente lá há de estar furiosa pela
raspação...
E enquanto
os outros calçavam os carros e arrumavam os bois, eles entraram a carregar os
balaios grandes de mandioca, que despejavam ruidosamente no carro do André,
armado já de sebe. Dentro em pouco, e com presteza admirável, os veículos
estavam pejados até os arcaveiros, fechando no alto os fueiros com densos
molhos de rama. Em seguida, com o de André à frente, os veículos romperam em
marcha, os eixos chiando sob o peso da carga, morro abaixo, lentamente na
descida íngreme.
Eram seis
horas. O sol maravilhoso galgava o firmamento, vitoriosamente, derramando por
tudo uma morna pulverização de ouro.
II
Caía o
crepúsculo esmaecido e dolente por detrás das montanhas longínquas do Cubatão
esbatendo-se nostalgicamente no Azul, quando o André parou, com a última
carrada de mandioca, no largo terreiro do engenho. Mais atrás vinham chegando
também os outros carros, num chiado prolongado e monótono, pelos lados da
porteira.
Em
torno, sob o laranjal copado e os cafeeiros densos, em nichos recolhidos de
sombra, havia um rumor aninhante de asas, agitando as folhas, em procura dos
poleiros. Dentre as moitas baixas, pelo capim ou no meio das sebes bastas, os
grilos, retirados já às suas celas de inverno, picavam o silêncio elegíaco das
Ave-Marias, com o seu tic-tic de prata. E pelo alto das frondes, abanando ao
verto as ramagens trêmulas, por onde espiam as estrelas, sentia-se, aqui e
além, um piar gemente de pássaros retardados demandando a paina quente. Pela
larga porta do engenho viam-se já arder confortavelmente lá dentro os toros
grossos do braseiro. Candeias de quatro bicos, suspensas das traves e dos
esteios, a distância umas das outras, abriam, no meio das trevas que se
adensavam no alto, sob as vastas telhas, curtas chamas azuis, que iluminavam
frouxamente, à maneira dessas lâmpadas que se acendem nas igrejas. No centro de
tudo, os grandes paus do aparelho moviam-se continuamente, na sua grossa
engrenagem, impelidos pela almanjarra rangente. A um ângulo, mulheres, homens e
crianças, de cócoras, junto aos cochos da cevadeira, raspavam destramente a
mandioca, numa algazarra animada, de boa gente palreira. Próximo, no recanto do
forno, os carregadores de tipitis faziam mover com estrépito os braços fortes
da prensa; e, de vez em quando, dominando tudo sonoramente com uma voz de comando,
o grito másculo do cevador, espicaçando a lentidão preguiçosa do boi: — Eh, Estrela! Eh, Estrela!
O André
agora não parava, numa preocupação, fazendo tudo nervosamente, com o pensamento
preso à sua viagem à Ponta Grossa. Já por vezes olhara investigadoramente o
céu, que se cobria no alto de flocos brancos espessos. Eram os primeiros sinais
do vento sul, prestes a cair. E, após haver destravado as sebes e os fueiros,
com os bois pela corda, em direção ao pasto, enquanto os outros carros fastavam
à porta do engenho, ia pensando consigo: — “É verdade, ainda mais esta! Vento pela proa! Vou tê-la do fino,
não há que ver!...”
E voltando,
sem mesmo dar “boas noites” e pedir a
bênção ao velho Eliseu, como sempre fazia, mal pegara a sua camisola de baeta
vermelha que deixara numa das empenas do engenho, tomara às pressas o atalho
que levava ao caminho, gritando de longe e para os amigos ainda às voltas com a
mandioca no terreiro:
— Ó rapazes, por hoje não contem mais comigo. Tenho muito
que fazer. Vou para longe, para a outra banda. Mas pela madrugada, se Deus
quiser, hei de estar por aqui rente...
E sumiu-se,
no meio dos vassourais das areias, marginando ali a estrada até o Rio de Meio.
Quando
entrou em casa — uma meia água situada num recanto
da larga praia branca, que virava para a Caeira — o
mar apresentou-se diante dele, na sua vastidão imensa, todo plano e
em calma, mas com essa reluzência espelhante e argêntea onde se arrastam
esfuminhadas negras e frêmitos rápidos de aguaceiros, que precede os grandes
ventos.
Mas o André
era um canoeiro como não havia segundo naquelas redondezas, e se estava
contrariado era só porque a viagem agora ia custar-lhe o dobro do tempo. Quanto
ao mais, “o fim do mundo que fosse”, como costumava dizer, não lhe metia medo. Era memorável, ali e em toda a
costa catarinense, a travessia arrojada que ele realizara, sozinho na sua Toninha, sob uma lestada terrível, para
o farol do Arvoredo, quando a mãe estivera a “espichar”,
com as maleitas.
Apenas
tomara a bênção à mãe e à velha tia Silvéria, o rapaz fora mudar de roupa e,
num relance, com a palamenta às costas, enveredou para o pequeno rancho onde
tinha a canoa.
Nesse
instante, sobre as águas, ao longe, o cordão branco do vento apontara pelo sul,
como uma grossa barra de gesso. Em cima, no céu, grossas felpas das nuvens
prometendo mau tempo uniam-se e condensavam-se já, tapando de todo as abertas
azul ferretes em que tremiam as estrelas.
Daí a pouco,
com a vela branca erguida, como a asa de uma gaivota gigantesca e fantástica,
perdida na calma taciturna e pressaga da noite densa, sugestiva de sinistros
estranhos e alucinadoras ideações dantescas, o André largou, mar em fora, na
sua máscula, inabalável afoiteza...
III
Na Ponta
Grossa, a casa do João Sant’Ana, às Ave-Marias,
começara a reluzir, toda acesa. E desde essa hora que de toda a parte, em
redor, as famílias acudiam, em grupos alegres e palradores, ao longo das Praias
e pelas estradas pedregosas dos morros, debruadas de espinheiros. A gente das
proximidades, essa, desde meia-tarde, a bem dizer, enxameava a casa, ajudando a
arrumação e os enfeites. A sala para as novenas estava arranjada com a mais
florida e eucantadora simpleza. Tinha sido a Terezinha quem, com um bando
gracioso de amigas e as filhas do Sant'Ana, se encarregara especialmente desses
ornamentos, mesmo porque o coroado era também obra sua, pois o ajudara a
prometer quando a bexiga, havia meses, caíra sobre o arraial, ceifando vidas e
vidas, com uma fúria inclemente.
A adorável
rapariga, nesse dia, amanhecera trinante e radiosa e, toda em festa, nas suas
vestes frescas, de uma inefável simplicidade roceira, presa às tranças escuras
uma bela camélia branca, desde cedo cruzava no terreiro, em pequenas voltas
caseiras, alegrando tudo com o seu grande esplendor de morena. Uma ideia
encantadora alvoroçava-a na manhã resplendente, e era que dali em diante,
durante aquele mês, ia ter ao seu lado, todas as noites, o mais amado dos
homens, o escolhido e eleito do seu coração. E depois era por esse tempo que o
André ia pedi-la em casamento, como prometera. Ele jurara fazê-lo na última
noite do coroado, logo que findasse o terço. Como ela, ansiava por aquele
momento, Nossa Senhora! E agora, mais do que nunca, o rapaz lhe não deixava o
pensamento. Experimentava como uma emoção e um prazer, só em lembrar-se que,
volvidas horas, ia vê-lo aparecer, junto a si, humilde e carinhoso, muito forte
e vermelho, com os seus meigos olhos castanhos e o fino buço negro, que lhe
ficava tão bem! E parecia-lhe estar ouvindo as suas costumadas palavras, que a
entonteciam como beijos, sempre tartamudeadas a medo, em algum recanto isolado:
— “Então, querida, esse coração ainda é
meu?...”
Mas a noite
chegara, cheia de nuvens espessas. Para o sul, o horizonte, esgazeado e como
batido de uma claridade alvacenta, expunha a temerosa e torva cenografia das
mudanças de tempo. Ficara, a princípio, aborrecida, contrariada, mas conhecia
bem o André e sabia que por sua causa ele arrostaria tudo, custasse o que
custasse. De resto, aquilo talvez não desse em nada, como acontecia às vezes.
E, no intuito de verificar se andaria alguma vela lá pela terra firme, em
demanda da ilha, convidou as amigas a darem uma chegadinha à Ponta, de onde se
descortinava ainda o litoral da outra banda, sob a primeira névoa da noite.
Muito tempo, então, no meio da algazarra sonora das raparigas em bando, sobre o
alto descoberto e gramoso do velho promontório, erguido num supedâneo de rochas
onde o mar escachoa noite e dia turbilhonando, esquadrinhou longamente, com os
seus doces olhos melancólicos, a faixa d'água reluzente da enseada dos Ganchos.
E como nada descobrisse, sob a cinza crepuscular que aumentava, sepultando cada
vez mais os longes, retirou-se silenciosamente com as outras, num desânimo, o
peito opresso, sob a ameaça do temporal perturbando o seu amor.
No terreiro
do Sant'Anna, onde já muita gente se aglomerava palrando, encontrou o João
Veiga, que vinha chegando de Sambaqui pelo morro, e que lhe declarou ter visto,
do alto do Maltão, uma canoa largando dos Ganchos. Pela altura em que andava,
muito junto ao Recanto, lhe parecera a Toninha,
que vinha singrando naquele rumo. E acrescentou, sorrindo maliciosamente:
— Aquilo há de ser o André, que não quer perder o coroado... Mas que
loucura, uma travessia daquelas, sob a tormenta pintando-se ao sul! Só mesmo
aquele demônio! Você me perdoe, Terezinha, mas eu é que não me arriscava nem
por um milhão!...
Ela, mais
tranquila e satisfeita, respondeu toda risonha:
— É o que você diz, primo Veiga; eu queria ver aquele
tempo do namoro com a Ana. O que isso não foi! E o que não sofreu, o que não se
consumiu, para assistir àqueles fandangos aonde ela ia sempre, lá para os lados
de Santo Antônio! Pensa que eu não sei! Pois olhe, eu me lembro ainda daquela
feita em que você perdeu o alazão, num braço do rio, pisando-se todo e gramando
cinco meses de cama...
Ele ainda
retrucou, gracejando:
— Qual! Terezinha; são tolices. Eu nunca fui dessas coisas, Deus me
livre! A Ana que te conte...
E
desapareceu, por entre um grupo de homens idosos, onde estava o Sant’Ana.
A rapariga,
então, numa pressa galante, enfiou-se pela porta com as outras, porque avistara
as Teixeiras e as Nunes, que tinham vindo do Ratones: e foi logo todo um trinar
amoroso de vozes, por entre os abraços e os beijos.
Pouco apouco
a sala inteira encheu-se. Uma aglomeração de homens tomava a entrada, os
corredores, a saleta. E assim que o capelão entrou, alguns rapazes, que ainda
se detinham a falar no terreiro, correram imediatamente para casa...
Quando a
reza começou, lá fora, sobre as águas, o tufão caía, varrendo as ondas, em
rajadas doidas. A noite tornara-se medonha. E agora, de espaço a espaço,
relâmpagos cortavam a treva, com grandes látegos de fogo.
O prédio
todo fechou-se, sob as lufadas rijas. Em volta, envolvia-o lugubremente a
zoeira prolongada e monótona do laranjal ramalhando; pelas telhas, peneirando
uma frialdade cortante, passava, às vezes, quando o sul rebojava furioso, como
um vago rumor de naufrágios, o esfrolar tumultuoso de lonas ao vento.
A Terezinha
empalidecera de súbito, num susto, numa palpitação, com o pensamento apegado ao
André, rolando agora em meio ao turbilhão; e, baixinho, diante do altar
iluminado, onde resplandecia ricamente, sobre um fundo de colcha escarlate, a
coroa de prata de Espírito Santo, fazia promessas fervorosas, pelo noivo, à
milagrosa Senhora dos Navegantes.
Em roda
dela, mulheres e homens comentavam, com palavras piedosas, a tardança do rapaz,
naquele instante, colhido pela ventania no seio desabrigado das ondas. O
Sant'Ana, a um canto, com o Veiga e o Manuel Secundino, pai da Terezinha,
ocupava-se também do André, exclamando apreensivo:
— Ora, queira Deus esse rapaz não vá sofrer por aí alguma! Isso há mar
no canal que é uma coisa sem termo... Também atirar-se a uma travessia entre
pontas por um tempo daqueles! Só de louco, só de quem perdeu a cabeça...
Os outros
apoiavam-no sacudindo os ombros tristemente:
É verdade. O
André era aquilo mesmo... Sempre com o diabo das suas afoitezas! Olhe que ainda
não havia muito tempo apanhara a do Arvoredo... E não lhe servira de
escarmento! Não lhe servira de escarmento!...
Mas o terço
prosseguia, na sua melopeia engrolada e monótona, enquanto lá fora, uivava rijo
na noite o vendaval desfeito.
IV
Fora pela
ilhota, de Anhato-Mirim que a Toninha recebera
de proa as primeiras rajadas de vento. Momentos antes vinha ela de pano a
bater, em meio à calmaria, e o André, vendo a maré de vazante e a distância a
vencer, aguentara duro para o largo, a toda força de remo.
Nessas
alturas, quando os ventos berravam do sul, as maretas, deslocadas e erguidas,
sacudiam-se em fúria rebentando de través, em novelos roladores de espuma, e as
correntes, subindo para o norte com a velocidade de milhas, naquela época invernosa,
punham sob um risco constante as pequenas embarcações que singravam ali. O
André, porém, não se importava com isso no seu arrojo de canoeiro perito,
dominando o mar, afrontando-lhe a cólera desenvolta com uma audácia feliz.
Nessa
ocasião, contudo, ao deixar o remanso da ilhota, sob a noite que cerrara de
todo, numa negrura espessa, de instante a instante cortada pela iluminação dos
fuzis, ficara de repente aturdido, pois não julgara o pampeiro o colhesse ainda
ali. Mas isto fora instantâneo, porque a sua grande calma marítima voltara-lhe
imediatamente, e ele passou a encarar o perigo com a costumada frieza. E agora,
sob a orquestração descompassada da ventania indômita, desmontando tudo sobre a
vastidão do oceano, a canoa rolava violentamente numa carreira de desastre,
agredida e sacudida incessantemente pelo embate gigantesco das vagas.
Sentado à
popa, com o tronco todo para fora da borda, escorando a embarcação na bordada
difícil, um dos braços possantes segurando o remo que servia de leme enterrado
nas águas, o André, firme e inalterável, deixava o casco correr, às cegas, no
meio do nevoeiro denso, sentindo as ondas golfarem, por debaixo da quilha,
vertiginosamente. E a Toninha aguentava-se,
bolinando como um bote quase na linha do vento, com o seu enorme
patilhão corrido, atravessando-a de proa à popa. Veleira e esguia, naquelas
águas ásperas do sul, realizava verdadeiros prodígios de singraduras e
travessias, que faziam a adoração e o encanto daquelas populações vigorosas e
intrépidas de arraiais marítimos. Por isso o rapaz, dentro dela, não se temia
de tempo nenhum, atirando-se a tudo sobre o mar, arcando sempre triunfalmente
com o vendaval bravio.
Naquele
instante terrível, com os vagalhões crescendo de minuto a minuto como imensas
dunas movediças sob o simoum marinho, pressentindo a praia ao pé pelo estrépito
e o recuo monstruoso da rebentação hostil, preparou-se para a virada, metendo
em rumo da terra firme. A vela murchou, então, de repente, num ruído de folhas
em ventania, e golpes de mar consecutivos esbarravam tumultuosamente à proa,
abatendo-se e desfazendo-se em fofos colossais de escumilha, que tinham uma
reluzência fosforejante de barras líquidas de níquel. O casco atravessou aos
trancos, todo alagado e sacudindo-se em pinchos rangentes, como um irado corcel
que se empina, e quando a rajada formidável caiu sobre o pano frouxo e vazio
que a escota prendia, a pequena embarcação arrancou, num ímpeto, deitada a fio
nas águas, rasourando as ondas crespas com o seu bojo fugidio. O vento cada vez
se tornava mais rijo e a noite mais carregada e retinta, atravessada
continuamente pelos relâmpagos recrudescendo em ziguezagues sinistros,
clareando instantaneamente o oceano, que se agitava embaixo, num estranho
espetáculo de estepe polar, sob a luz hiperbórea e fantástica de um chuveiro de
bólides.
Quando a
canoa, já beirando a outra costa, virou de novo na bordada da ilha, um
aguaceiro despegou-se do alto, no meio de fortes descargas elétricas, que
sublevavam a amplidão, com o seu grosso troar de artilharia.
Então, o
André, furioso por se achar ao desabrigo e ter de chegar todo molhado à Ponta
Grossa, prorrompeu em pragas rudes, sob as grossas bátegas caindo:
— Diabo! ainda mais este estupor de aguaceiro. Raios partam o
caiporismo!...
E considerava,
numa contrariedade íntima, como havia de se apresentar no terço, diante de
todos, com a roupa ensopada e em desalinho. Era uma vergonha. Mas que havia de
fazer, santo Deus! Voltar dali não podia. Com o pé quase em terra! Depois,
prometera à Terezinha. Não! Entraria assim mesmo no terço! Ora, todos o
desculpariam...
E, enquanto
assim se absorvia nessas reflexões recolhidas de espírito, a Toninha voava, saltando as ondas bravas
com uma marcha inaudita. De repente, um medonho turbilhão envolveu-a, rolos
gigantescos de espuma cobriram-na, fragorosamente, e grandes choques
consecutivos abalaram-lhe poderosamente o bojo e a quilha. A vela, presa ainda
à escota, abria-se toda sobre as bordas, deixando uma multidão de frangalhos a
tremular no ar, contra o mastro partido. E os vagalhões, atirando-se em
assaltos bramantes, apossavam-se totalmente da embarcação vencida, fazendo-a
rolar aos tombos sobre a penedia.
O André,
logo à primeira esbarrada, medindo a situação e tomando o pulso ao perigo,
lançara-se ao mar, gritando por entre o torvelinho:
— São as
pedras da Ponta, são as pedras da Ponta! Malditas!...
E,
abandonando a canoa, botou-se a rijas braçadas para o largo, fugindo à
rebentação desenvolta, estourando e sacudindo-se clamorosamente sobre a rocha
viva. Após alguns instantes de luta vigorosa e renhida, corpo a corpo com as
vagas, os seus braços robustos e destros de nadador insigne levaram-no à praia,
aonde chegou já exausto, todo roto, o rosto e o peito feridos.
Entretanto o
tempo amainava e, em pouco, o André, erguendo os olhos e vendo reluzirem no
alto as luzes da casa do Sant'Ana, galgou com esforço e cantando, o caminho do
outeiro. Ao chegar ao terreiro, como já houvesse terminado o terço e
reconhecessem-lhe ao longe a voz forte e viril, a porta abriu-se e todos
correram ao seu encontro, num alarido de prazer. E a Terezinha, com o coração
aos saltos, num alvoroço de afeto, foi a primeira que lhe surgiu à frente,
exclamando:
— Olha o André aí! Olha o André aí!...
Ele,
apertando a mão da noiva fortemente e dando boa noite a todos, penetrou na
sala, pálido e desfigurado, o largo tórax ferido, a roupa a escorrer.
Então as
pessoas presentes, aglomeradas em torno dele, numa grande admiração, começaram
a inquiri-lo
— Mas como escapaste, ó André? Como pudeste vencer a
tormenta? Só por um milagre, filho! Só por um milagre de Deus! Olha que
chegamos a pensar que morresses!...
O rapaz
tentou responder logo, mas a emoção e a fadiga o turbavam fundamente; e, mal
articulara algumas sílabas, foi cair sobre um banco, ofegante e quase a
desfalecer. E só momentos depois, com a Terezinha ao lado e o coração em
êxtase, é que pôde dizer claramente, com o ar vitorioso de um antigo guerreiro:
— É verdade, gente, aqui estou; perdi a canoa, mas, escapei. Desta vez,
ainda o mar não venceu!
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