O festa da inteligência
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Por especial deferência do Sr.
ministro das Relações Exteriores, foi-me permitido, anteontem, nos
"Diários", tomar parte, como diplomata, nas homenagens prestadas pela
intelectualidade brasileira a Sua Majestade o Rei da Bélgica. Relegado para as
filas destinadas aos jovens funcionários do Itamarati, não foi sem custo que
consegui aproximar-me do local distribuído aos homens de ciências e de letras,
cujos paramentos, tirados às sete cores do arco-íris, davam à solenidade um tom
de magnificência, de luxo, de riqueza, verdadeiramente excepcional. Ao lado dos
fardões acadêmicos, faiscantes de ouro, berravam o vermelho dos capelos, o
verde das murças, o negro das becas, assinalando, no tumulto das cores, os
catedráticos das Faculdades de Medicina e de Direito, os membros do Instituto
Histórico, os doutores da Ordem dos Advogados. E como se não bastasse o aspecto
magnificente das vestimentas, cintilavam por toda a parte as medalhas, os
crachás, as condecorações de todos os países do mundo, como se tivesse caído
sobre aquela assembleia de sábios uma luminosa chuva de pedrarias.
A atual sociedade brasileira,
educada nos costumes igualitários da República, não pode ver, entretanto, a
sério, essas manifestações suntuosas da vaidade humana. Deslumbrados com o que
viam, os espíritos divagavam, tontos, sem compreender a legítima expressão
daquele espetáculo. Dessa verdade lamentável, tive eu vários documentos, que me
causaram a mim verdadeira indignação. A minha primeira desilusão foi à entrada
do Sr. Barão de Ramiz Galvão, o velho e glorioso fidalgo do Império. Trajando
uma casaca irrepreensível, o eminente educador trazia ao peito, do ombro à
cintura, e de ambos os lados, todas as suas condecorações. Eram a da Rosa, do
Brasil; a de Santiago, de Espanha; a da Ordem de Cristo, de Portugal; a da Legião
de Honra, da França; a do Elefante Azul, da Pérsia; a de Estanislau, da
Polônia; a da Ordem do Latrão, do Vaticano; e tudo isso no meio de passadeiras,
bentinhos, cordões, amuletos, fitas, distintivos, medalhas e penduricalhos,
obtidos em sessenta anos de discursos e magistério. À chegada do venerando
professor, houve um deslumbramento; e o primeiro comentário, de uma senhora
colocada nas proximidades do corpo diplomático, foi, logo, este:
— Meu Deus! Parece... porta de
casa de brinquedos!
A entrada do desembargador
Ataulfo de Paiva, da Academia de Letras, causou o mesmo pasmo, o mesmo espanto,
a mesma admiração. Ornamentado com as suas dezenove condecorações, postas em
destaque pela sua faixa vermelha de Cavaleiro de São Maurício e pela
originalidade do seu cordão da Ordem do Dragão, da China, o ilustre magistrado
estava deslumbrante. Sem perder a calma, o primeiro a registrar, com espírito,
a sua situação, foi ele próprio.
— De onde vem, desembargador? —
indagou, com graça, à entrada do salão, a Sra. Santos Lobo.
E ele, sorrindo:
— Da festa da Penha,
excelentíssima!
Dentro, no recinto dos homens
eminentes, destacavam-se, também, pela singularidade, os distintivos de Carlos
Malheiro Dias. Antigo fidalgo da Casa Real Portuguesa o brilhante escritor
vestia uma capa em vermelho e preto, semeada de comendas azuis, de crachás
amarelos, de medalhas reluzentes, a emergirem de um oceano de fitas simbólicas,
pertencentes a vinte ordens diversas. Ao vê-lo indagou uma senhora:
— Que capa é aquela do Dr. Malheiro
Pias?
E a outra explicou:
— É uma capa... da "Revista
da Semana", menina!
A impressão geral daquele público republicano, foi interpretada, porém, entre
tantos episódios, por uma frase, ouvida por mim no termo da festa.
Comprimindo-se com arte, apertando-se com elegância, empurrando-se com
delicadeza, a multidão procurava a porta de saída, quando encontrei à minha
frente um grupo de moças, no meio do qual ia um cavalheiro idoso, afogado até o
pescoço na sua enorme beca de professor de Direito. Oprimido de um lado,
empurrado de outro, o educador defendia-se aflitamente, quando uma das filhas
lembrou, compadecida:
— Porque papai não tira... o
dominó?
E o Carnaval caiu na rua.
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