Numa e a ninfa
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Na rua não havia quem não
apontasse a união daquele casal.
Ela não era muito alta, mas tinha
uma fronte reta e dominadora, uns olhos de visada segura, rasgando as cabeças,
o busto erguido, de forma a possuir não sei que ar de força, de domínio, de
orgulho; ele era pequenino, sumido, tinha a barba rala, mas todos lhe conheciam
o talento e a ilustração.
Deputado há bem duas
legislaturas, não fizera em começo grande figura; entretanto, surpreendendo
todos, um belo dia fez um “brilhareto”, um lindo discurso tão bom e sólido que
toda a gente ficou admirada de sair de lábios que até então ali estiveram
hermeticamente fechados.
Foi por ocasião do grande debate
que provocou, na Câmara, o projeto de formação de um novo estado, com terras
adquiridas por força de cláusulas de um recente tratado diplomático.
Penso que todos os contemporâneos
ainda estão perfeitamente lembrados do fervor da questão e da forma por que a
oposição e o governo se digladiaram em torno do projeto aparentemente
inofensivo. Não convém, para abreviar, relembrar aspectos de uma questão tão
dos nossos dias; basta que se recorde o aparecimento de Numa Pompílio de
Castro, deputado pelo estado de Sernambi, na tribuna da Câmara, por esse tempo.
Esse Numa, que ficou, daí em
diante, considerado parlamentar consumado e ilustrado, fora eleito deputado,
graças à influência do seu sogro, o senador Neves Cogominho, chefe da dinastia
dos Cogominhos que, desde a fundação da República, desfrutava empregos, rendas,
representações, tudo o que aquela mansa satrapia possuía de governamental e
administrativo.
A história de Numa era simples.
Filho de um pequeno empregado de um hospital militar do Norte, fizera-se, à
custa de muito esforço, bacharel em direito. Não que houvesse nele um
entranhado amor ao estudo ou às letras jurídicas. Não havia no pobre estudante
nada de semelhante a isso. O estudo de tais coisas era-lhe um suplício
cruciante; mas Numa queria ser bacharel, para ter cargos e proventos; e
arranjou os exames da maneira mais econômica. Não abria livros; penso que nunca
viu um que tivesse relação próxima ou remota com as disciplinas dos cinco anos
de bacharelado. Decorava apostilas, cadernos; e, com esse saber mastigado,
fazia exames e tirava distinções.
Uma vez, porém, saiu-se mal; e
foi por isso que não recebeu a medalha e o prêmio de viagem. A questão foi com
o arsênico, quando fazia prova oral de medicina legal. Tinha havido sucessivos
erros de cópia nas apostilas, de modo que Numa dava como podendo ser
encontradas na glândula tireoide dezessete gramas de arsênico, quando se tratam
de dezessete centésimos de miligrama.
Não recebeu distinção e o rival
passou-lhe a perna. O seu desgosto foi imenso. Ser formado já era alguma coisa,
mas sem medalha era incompleto!
Formado em direito, tentou
advogar; mas, nada conseguindo, veio ao Rio, agarrou-se à sobrecasaca de um
figurão, que o fez promotor da justiça do tal Sernambi, para livrar-se dele.
Aos poucos, com aquele seu faro
de adivinhar onde estava o vencedor — qualidade que lhe vinha da ausência total
de emoção, de imaginação, de personalidade forte e orgulhosa —, Numa foi
subindo.
Nas suas mãos, a justiça estava a
serviço do governo; e, como juiz de direito, foi na comarca mais um ditador que
um sereno apreciador de litígios.
Era ele juiz de Catimbau, a
melhor comarca do Estado, depois da capital, quando Neves Cogominho foi
substituir o tio na presidência de Sernambi.
Numa não queria fazer mediocremente
uma carreira de justiça de roça. Sonhava a Câmara, a Cadeia Velha, a rua do
Ouvidor, com dinheiro nas algibeiras, roupas em alfaiates caros, passeio à
Europa; e se lhe antolhou, como meio seguro de obter isso, aproximar-se do novo
governador, captar-lhe a confiança e fazer-se deputado.
Os candidatos à chefatura de
polícia eram muitos, mas ele, de tal modo agiu e ajeitou as coisas, que foi o
escolhido.
O primeiro passo estava dado; o
resto dependia dele. Veio a posse, Neves Cogominho trouxera a família para o
Estado. Era uma satisfação que dava aos seus feudatários, pois havia mais de
dez anos que lá não punha os pés.
Entre as pessoas da família,
vinha a filha, a Gilberta, moça de pouco mais de vinte anos, cheia de prosápias
de nobreza, que as irmãs de caridade de um colégio de Petrópolis lhe tinham
metido na cabeça.
Numa viu logo que o caminho mais
fácil para chegar a seu fim era casar-se com a filha do dono daquela “marca”
longínqua do desmedido império do Brasil.
Fez a corte, não deixava a moça,
trazia-lhe mimos, encheu as tias (Coquinho era viúvo) de presentes; mas a moça
parecia não atinar com os desejos daquele bacharelinho baço, pequenino, feio e
tão roceiramente vestido. Ele não desanimou; e, por fim, a moça descobriu que
aquele homenzinho estava mesmo apaixonado por ela. Em começo, o seu desprezo
foi grande; achava até ser injúria que aquele tipo a olhasse; mas vieram o
aborrecimento da vida de província, a sua falta de festas, o tédio daquela
reclusão em palácio, aquela necessidade de namoro que há em toda a moça, e ela
deu-lhe mais atenção.
Casaram-se, e Numa Pompílio de
Castro foi logo eleito deputado pelo estado de Sernambi.
Em começo, a vida de ambos não
foi das mais perfeitas. Não que houvesse rusgas; mas, o retraimento dela e a gaucherie dele toldavam a vida íntima de
ambos.
No casarão de São Clemente, ele
vivia só, calado a um canto; e Gilberta, afastada dele, mergulhada na leitura;
e, não fosse um acontecimento político de certa importância, talvez a
desarmonia viesse a ser completa.
Ela lhe havia descoberto a
simulação do talento e o seu desgosto foi imenso porque contava com um
verdadeiro sábio, para que o marido lhe desse realce na sociedade e no mundo.
Ser mulher de deputado não lhe bastava; queria ser mulher de um deputado notável,
que falasse, fizesse lindos discursos, fosse apontado nas ruas.
Já desanimava, quando, uma
madrugada, ao chegar da manifestação do senador Eufonias, naquele tempo o mais
poderoso chefe da política nacional, quase chorando, Numa dirigiu-se à mulher:
— Minha filha, estou perdido!...
— Mas que há, Numa?
— Ele... O Eufonias...
— Que tem? que há? por quê?
A mulher sentia bem o desespero
do marido e tentava soltar-lhe a língua. Numa, porém, estava alanceado e
hesitava, vexado em confessar a verdadeira causa do seu desgosto. Gilberta,
porém, era tenaz; e, de uns tempos para cá, dera em tratar com mais carinho o
seu pobre marido.
Afinal, ele confessou quase em
pranto:
— Ele quer que eu fale, Gilberta.
— Mas você fala...
— E fácil dizer... Você não vê
que não posso... Ando esquecido... Há tanto tempo... Na faculdade, ainda fiz um
ou outro discurso; mas era lá, e eu decorava, depois pronunciava.
— Faz agora o mesmo...
— É... Sim... Mas preciso de
ideias... Um estudo sobre o novo Estado! Qual!
— Estudando a questão, você terá
ideias...
Ele parou um pouco, olhou a
mulher demoradamente e lhe perguntou de supetão:
— Você não sabe aí alguma coisa
de história e geografia do Brasil?
Ela sorriu indefinidamente com os
seus grandes olhos claros, apanhou com uma das mãos os cabelos que lhe caíam
sobre a testa; e depois de ter estendido molemente o braço meio nu sobre a
cama, onde a fora encontrar o marido, respondeu:
— Pouco... Aquilo que as irmãs
ensinam; por exemplo: que o rio São Francisco nasce na serra da Canastra.
Sem olhar a mulher, bocejando,
mas já um tanto aliviado, o legislador disse:
— Você deve ver se arranja
algumas ideias, e fazemos o discurso.
Gilberta pregou os seus grandes
olhos na armação do cortinado, e ficou assim um bom pedaço de tempo, como a
recordar-se. Quando o marido ia para o aposento próximo, despir-se, disse com
vagar e doçura:
— Talvez.
Numa fez o discurso e foi um
triunfo. Os representantes dos jornais, não esperando tão extraordinária
revelação, denunciaram o seu entusiasmo, e não lhe pouparam elogios. O José
Vieira escreveu uma crônica; e a glória do representante de Sernambi encheu a
cidade. Nos bondes, nos trens, nos cafés, era motivo de conversa o sucesso do
deputado dos Cogominhos: — Quem diria, hein? Vá a gente fiar-se em idiotas. Lá
vem um dia que eles se saem. Não há homem burro — diziam —, a questão é
querer...
E foi daí em diante que a união
do casal começou a ser admirada nas ruas. Ao passarem os dois, os homens de
altos pensamentos não podiam deixar de olhar agradecidos aquela moça que
erguera do nada um talento humilde; e as meninas olhavam com inveja aquele
casamento desigual e feliz.
Daí por diante, os sucessos de
Numa continuaram. Não havia questão em debate na Câmara sobre a qual ele não
falasse, não desse o seu parecer, sempre sólido, sempre brilhante, mantendo a
coerência do partido, mas aproveitando ideias pessoais e vistas novas. Estava
apontado para ministro e todos esperavam vê-lo na secretaria do largo do
Rossio,200 para que ele pusesse em prática as suas extraordinárias ideias sobre
instrução e justiça.
Era tal o conceito de que gozava
que a câmara não viu com bons olhos furtar-se, naquele dia, ao debate que ele
mesmo provocou, dando um intempestivo aparte ao discurso do deputado Cardoso
Laranja, o formidável orador da oposição.
Os governistas esperavam que
tomasse a palavra e logo esmagasse o adversário; mas não fez isso.
Pediu a palavra para o dia
seguinte e o seu pretexto de moléstia não foi bem aceito.
Numa não perdeu tempo: tomou um
tílburi, correu à mulher e deu-lhe parte da atrapalhação em que estava. Pela
primeira vez, a mulher lhe pareceu com pouca disposição de fazer o discurso.
— Mas, Gilberta, se eu não o
fizer amanhã, estou perdido!... E o ministério? Vai-se tudo por água abaixo...
Um esforço... É pequeno... De manhã, eu decoro...
Sim, Gilberta?
A moça pensou e, ao jeito da
primeira vez, olhou o teto com os seus grandes olhos cheios de luz, como a
lembrar-se, e disse:
— Faço; mas você precisa ir
buscar já, já dois ou três volumes sobre colonização... Trata-se dessa questão,
e eu não sou forte. É preciso fingir que se tem leituras disso... Vá!
— E os nomes dos autores?
— Não é preciso... O caixeiro
sabe... Vá!
Logo que o marido saiu, Gilberta
redigiu um telegrama e mandou a criada transmiti-lo.
Numa voltou com os livros; marido
e mulher jantaram em grande intimidade e não sem apreensões. Ao anoitecer, ela
recolheu-se à biblioteca e ele ao quarto.
No começo, o parlamentar dormiu
bem; mas bem cedo despertou e ficou surpreendido em não encontrar a mulher a
seu lado. Teve remorsos. Pobre Gilberta! Trabalhar até àquela hora, para o nome
dele, assim obscuramente! Que dedicação! E — coitadinha! — moça ter que
empregar o seu tempo em leituras árduas! Que boa mulher ele tinha! Não havia
duas... Se não fosse ela...
Ah! onde estaria a sua cadeira?
Nunca seria candidato a ministro... Vou fazer-lhe uma mesura, disse ele
consigo. Acendeu a vela, calçou as chinelas e foi pé ante pé até ao
compartimento que servia de biblioteca.
A porta estava fechada; ele quis
bater, mas parou a meio. Vozes abafadas...
Quem seria? Talvez a Idalina, a
criada... Não, não era; era voz de homem.
Diabo! Abaixou-se e olhou pelo
buraco da fechadura. Quem era? Aquele tipo... Ah! Era o tal primo... Então, era
ele, era aquele valdevinhos, vagabundo, sem eira nem beira, poeta sem poesias,
frequentador de chopes; então, era ele quem lhe fazia os discursos? Por que
preço?
Olhou ainda mais um instante e
viu que os dois acabavam de beijar-se. A vista se lhe turvou; quis arrombar a
porta; mas logo lhe veio a ideia do escândalo e refletiu. Se o fizesse vinha a
coisa a público; todos saberiam do segredo da sua “inteligência” e adeus
câmara, ministério e — quem sabe? — a presidência da República. Que é que se
jogava ali? A sua honra? Era pouco. Que se jogava ali eram a sua inteligência,
a sua carreira; era tudo! Não, pensou ele de si para si, vou deitar-me.
No dia seguinte, teve mais um
triunfo.
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