Nós! Hein?
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Quando eu fui amanuense da
Secretaria de... — contava-me um amigo —, certa vez aconteceu-me um fato bem
interessante. Era tido eu como empregado vagabundo, relapso e, como particular,
poeta e boêmio, de modo que eles me preteriam em toda a vaga de promoção que se
viesse a dar. No começo, exasperei-me; mas, no fim, conformei-me, e fiquei
ainda mais relapso e vagabundo. O diretor era o conselheiro Flores Teles, que
vinha do tempo do Império: e também era, talvez, o funcionário público mais
antigo da República. Não tinha faltas, nem licenças; era pé de boi. Entrava às
dez e saía às três. Quando ele fazia anos, havia zumbaias na Secretaria: quando
completava 45 anos de serviço — bumba! —, festanças, discursos; quando era
aniversário de sua entrada na secretaria, festas; de modo que ele andava no
noticiário dos jornais, durante o ano inteiro, e toda a gente pensava cá fora
que fosse mesmo uma sumidade. Concorri várias vezes para a sua glória, pois
mais de uma vez fiz-lhe discursos por ocasião dos seus variados aniversários;
mas isso não impediu que...
— Engrossava? — perguntei eu.
— Talvez — respondeu-me o
camarada —, mas não a ele, certamente a meu chefe de seção que era meu amigo:
escondia-me as faltas. Um belo dia, o conselheiro que parecia não querer
morrer, adoece e morre. Eu tinha deixado de ir à repartição, durante os
primeiros dias de sua moléstia, porque sabia que não me seria descontado nada;
mas cansando-me de vadiar, certa manhã cismei e fui. Despertei muito tarde e só
tive tempo de lavar o rosto, mudar o colarinho e ir para lá. Entrei e, logo que
penetrei nas seções, tive a impressão de que havia alguma coisa de anormal.
Grupos de empregados cochichavam; outros estavam de luto fechado; o substituto
do diretor, quando entrou, veio envolvido numa respeitável sobrecasaca e
deu-nos bons-dias com uma cartola imprevista, na sua habitual modéstia. Soube
afinal que tinha morrido o conselheiro e todos faziam roda em torno do seu
imediato, lembrando providências: carros, coroas, comissão etc. Um lembrou: é
preciso escrever alguma coisa no livro do ponto. É verdade, acudiram todos.
Quem escreve? Lembraram o Dr. Aldovrando, bacharel tido como pessoa competente
da redação de mensagens e outras difíceis peças oficiais; o Dr. Aldovrando,
porém, excusou-se, porquanto tinha muito serviço. Lembraram em seguida o Dr.
Samuel Ponte, cirurgião-dentista, que acabara o seu curso de medicina. Como o Dr.
Aldovrando, o Dr. Samuel excusou-se porque não era dado a essas tolices e
futilidades de literatura. Ele só cuidava de ciência e até hoje eu estou à
espera dos seus trabalhos a tal respeito. Foi quando alguém se lembrou de mim,
cuja disposição para isso era nenhuma. Acedi, sentei-me a uma mesa e redigi o
rascunho. Reli, emendei e vi que a coisa não estava má.
— Como era?
— Não posso me recordar aqui, mas
tenho a coisa num retalho do Diário do
Congresso.
— Aí?
— É verdade. Explico-me. No dia
seguinte ao do enterro, o senador P. solicitou da sua câmara a inserção de um
voto de pesar, pela morte do conselheiro, fazendo dele, senador, as palavras do
substituto de Flores Teles, na Secretaria de...
— Eram as de você, não?
— Eram.
— Engraçado!
— Você vai ouvir o resto.
— Ainda há?
— Há. Quando fui assinar o ponto,
no dia seguinte, encontrei-me logo com o substituto de Flores Teles que foi
logo gritando para mim: viste T., como nós fizemos figura no Senado. Nós! hein?
Demos a letra!
— Que disse você?
— Eu?... Nada.
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