(Os Contos de Belazarte)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Belazarte me contou:
Pois eu acho que tem. Você já
sabe que sou cristão... Essas coisas de felicidade e infelicidade não têm
significado nenhum, se a gente se compara consigo mesmo. Infelicidade é
fenômeno de relação, só mesmo a gente olhando pro vizinho é que diz o “atendite
et videte”. Macaco, olhe seu rabo! isso sim, me parece o cruzamento da
filosofia cristã com a precisão de felicidade neste mundo duro. Inda é bom
quando a gente inventa a ilusão da vaidade, e, em vez de falar que é mais
desinfeliz, fala que é mais feliz... Toquei em rabo, e estou lembrando o caso
do elefante, você sabe?... Pois não vê que um dia o elefante topou com uma
penuginha de beija-flor caída numa folha, vai, amarrou a penuginha no rabo com
uma corda grossa, e principiou todo passeando na serrapilheira da jungia. Uma
elefanta mocetona que já estava carecendo de senhor pra cumprir seu destino,
viu o bicho tão bonito, mexe pra cá, mexe pra lá, ondulando feito onda quieta,
e se engraçou. Falou assim: “Que elefante mais bonito, porca la miséria!” Pois
ele virou pra ela encrespado e: “Dobre a língua, sabe! Elefante não senhora!
sou beija-flor.” E foi-se. Eis aí um tipo que ao menos soube criar felicidade
com uma ilusão sarapintada. É ridículo, é, mas que diabo! nem toda a gente
consegue a grandeza de se tomar como referência de si mesmo. Quanto a que lhe
suceda como com a Nízia, homem! isso estou imaginando que só com ela mesmo...
Que Nízia?
...se chamava... não me lembro
bem se Ferreira, Figueira... qualquer coisa em “eira”, creio que era Nízia
Figueira. Essa sim, de família nacional da gema, carijó irumoguara com Figueira
ascendente até o século dezessete.
Quando em 1886, tendo vendido o
sítio porcaria perto de Pinda, o pai dela veio pra S. Paulo, virou mexeu até
que teve coragem de comprar com o dinheiro guardado esse fiapo de terra baixa,
então bem longe da cidade, no hoje bairro da Lapa. Em 88 Nízia com dezesseis
anos de mocidade, guardada com olho de Figueira pai sempre em casa, foi com o
velho e a criada preta que tinham, morar na chacrinha recém-comprada. Figueira
pai, nem bem mudou, deu com o rabo na cerca, por causa dum antraz que o panema
dum boticário novato imaginou que era furúnculo. Resultado: antraz tomou conta
de Figueira que morreu apodrecido. Dores tamanhas, que se tivesse vizinho
perto, não podia dormir de tanto gemido que todo o orgulho daquela carne
tradicional não podia que não saísse, arrancado do coração meio com bastante
vergonha até.
Nízia se via só neste mundo,
contando apenas dezessete anos e uma inocência ofensiva, bimbalhando estupidez,
valha a verdade. Só, mais a “prima Rufina”, como ela desde criancinha se
acostumara a chamar a criada preta. Prima Rufina tinha vinte e muitos, e era
bem enérgica... Plantaram pereira, pessegueiro, uma horta grande. Nízia
tricotava, tricotava, fazendo sapatinho, palitozinho, touquinha de lã pros
filhos desses homens. Prima Rufina vendia tudo na cidade, couve hoje, pêssego
verde pra doce amanhã, trabalhinho de lã todos os dias. Eu sei que chegava
muito pra elas viverem e até Nízia guardar um pouco pra velhice.
Prima Rufina saía com o baú na
mão, ia na casa dum, na casa doutro, se afreguesou num instante, com tanta
lábia... Pera de presente pra filha de dona Maria, bala-de-açúcar pros filhos
de seu Guimarães, saber seu Quitinho como passou: trazia sempre dinheiro para o
sustento. Menos o tostão ficado na venda, está claro, em troca de boa pinga de
Deus.
Nízia olhava a dinheirama se
engrossando, porém não sabia que dinheiro se gasta noutras coisas; e os mil-réis
continuavam empilhados na gavetinha da cômoda. Prima Rufina é que aprendeu a
vida... Não contava nada, quieta, preparando a janta, cachimbo no beiço grosso.
No entanto bem que aprendeu...
Não durou muito, se enrabichou
por um canhambora safado que vivia ali mesmo, nas barbas da cidade. O
filho-da-mãe abusou dela quanto quis, deixou prima Rufina barriguda e inda por
cima desapareceu de repente, levando trinta-e-seis mil-réis que pedira de
emprestado pra ela. Nízia olhava aquela barriga redondinha que nem arandela,
afinal perguntou:
— Uai! nhá Nízia, é doença! estamo
trabaia má, barriga empina. A muié de nhô Marconde já me premeteu limão-brabo
pra mim, limão-brabo sara eu!
Nízia pensava no antraz do pai e
tinha medo.
Barriga, de tanto crescer, teve
um dia em que careceu de botar o desgraçadinho pra fora. Prima Rufina veio
correndo pra chacra, deixou o baú por aí, nem sabia mais na casa de quem, só
portando na venda pra comprar a garrafa de caninha.
— Olha que tu vais por bom
caminho, rapariga!
— Cuide de seus negóçu, viu!
Chegou, fechou-se por dentro no
quarto, e o filho veio vindo sem que prima Rufina desse um gemido, tal-e-qual
os animais do mato. Nízia mandava ela preparar a janta. “Não posso! perpare
mecê!” ela roncava apertado. Que seria que tinha sucedido pra prima Rufina!...
era o antraz, na certa... Nízia teve mortes, do medo de ficar sozinha.
— Mecê se deite, num s’incomode
cum eu! escutava, quando vinha chamada
por aqueles guinchos abalados, que nem choro de criança. Não era choro não,
naturalmente prima Rufina que sofria com o antraz... Que havia de fazer? a
outra mandava ela deitar, deitou. Perguntou pra escuridão. Não tinha nem
guincho mais no outro quarto. Decerto não era nada. Meia inquieta adormeceu.
Prima Rufina quando viu que não
tinha mais vida na casa, se levantou. Pinga já estava toda no lugar do tiziu
saído e sonhando na capa de xadrez. Carecia de coragem. Pois foi na
guarda-comida buscar o espírito-de-vinho e mamou na garrafa mesmo. Enrolou bem
a criancinha e saiu, saiu sim! De vez em quando sentava no caminho, suor
correndo bica de dor, vista feito vidraça de neblina...
Não era madrugada ainda, a preta
já não tinha mais filho no braço. Dinheiro? não vê que se esquecera de trazer!
primeira venda entreaberta, pronto: entrou. Foi um pifão daqueles. Só dia
velho, empurrou a porta da casa, rindo boba, com os olhos derretidos num choro
sem querer, cantando o “Nossa gente já tá livre, toca zumba zumba zumba”...
Nízia até chorou de susto, pensando que prima Rufina estava maluca, que maluca
nada! era mas era a desgraça, saindo de mistura com bebida.
Prima Rufina ficou doente uns
dias. Depois sarou e aprendeu. Quando tinha vontade, ia nas vendas procurando
homem disposto. Porém não sei como fazia, sei que nunca mais teve antraz. E foi
desde aquela noite que ela pegou chamando Nízia de “mia fia”.
Nízia, vinte, vinte-e-um,
vinte-e-dois anos, continuava esquecida naquela chacrinha sem norte. Não tinha
nada de feia, principiou se enfeitando, foi na cidade algumas vezes... Ficava
no portão parada, sempre de hora em hora alguém havia de passar... Passava
porém mal reparava em Nízia.
Pois até, uma feita, ela foi numa
loja concorrida da cidade, se encostou no balcão esperando. Os caixeiros
passavam, serviam todo mundo, pois não é que esqueceram de servir Nízia!
esqueceram, meu caro! não estou fantasiando não! Então ela chamou um e pediu
entremeio.
— Sim, senhora, já trago.
Outro pediu que ele endireitasse
a pilha de chita quase caindo, começou a endireitar, endireitou, não sei quem
pediu entremeio pra ele, serviu a outra freguesa e esqueceu Nízia. Ela ficou
ali muito serena, esperando. Quando viu que entremeio não vinha mesmo, desolada
foi-se embora. E prima Rufina continuou comprando tudo quanto Nízia precisava.
Desejos, não posso dizer que não
tivesse desejos, teve. Olhava os homens passando, alguns eram bem simpáticos,
havia de ser bom com eles... Mas iam tão distraídos na rua republicana já!...
Nízia voltava murcha pra dentro, sempre matutando que havia de ser bom com
eles. Porém isso era fogo-de-palha, sapatinho de lã toma atenção senão a gente
erra o número dos pontos. Que-dê tempo pra imaginar nos homens?...
O que cresceu foi a intimidade
com prima Rufina, principiaram conversando mais. Nízia inventava curiosidades
depois do jantar, ali sentadas na varanda: a filha de nhô Guimarães enfim tinha
casado com o moço médico; o caso da mulher que matou o marido na rua Major
Quedinho, e assim. Então quando teve aquela dor-de-dente, por causa duns limões
verdes que andou chupando e comeram o esmalte dum canino, prima Rufina fez ela
beber um trago importante de cachaça. Nízia quase morreu de angústia, ficou
tonta, lançou que foi um horror. Prima Rufina sempre junto dela, consolando,
limpando a blusa suja, deitando a bêbeda com tanto carinho... A dor-de-dente
passou, isso é que eu sei. E a intimidade entre as duas aumentou muito. Nunca
mais Nízia bebeu, mas a outra contava as razões da pinga, e Nízia acabou
sabendo as tristezas do nosso mundo.
Teve um momento em que a
humanidade pareceu se lembrar dessa apartada, foi com seu Lemos o caso. Seu
Lemos era Fluminense não sei donde, meio pálido, com bigodinho torcido e cabelo
crespo repartido do lado. Vinha pela estrada, sem custo carregando o corpo
baixote, saber duas, três vezes por semana o protetor como passou, lá num sítio
enorme que ficava mais ou menos onde é o bairro do Anastácio agora. Assim
também o graúdo, que já dera pistolão pra ele entrar como carteiro do Correio
nem bem chegadinho do Estado do Rio, não se esquecia de arranjar coisa melhor.
Homem... será mesmo que seu Lemos queria coisa melhor?... Indivíduo macio, fala
rara, não olhando. Sentava, ficava ali uma boa meia-hora, respondendo se perguntavam, que ele ia bem, que mamãe também ia passando bem, que o serviço ia
mui to bem... tudo ia bem pra seu Lemos! Depois pegava no chapéu, ia-se embora
pra casinha, alugada debaixo do viaduto do Chá.
— Sua bênção, mamãe.
— Como vai seu Anastácio?
— Bem.
Comiam. Estou pensando que foi
esse Anastácio que decerto deu nome ao bairro, não?... Depois seu Lemos ia
palitar o dente na janela baixa. A noite vinha descendo, tapando o Anhangabaú
com uma escureza solitária. Os quintais molhados do vale, botavam uma paininha
de névoa sobre o corpo e ficavam bem quietinhos pra esquentar. Era um
silêncio!... Poc, pocpoc... Alguém passando no viaduto. Sapo, que era uma
quantidade. Luzinha aqui, luzinha ali, mais sapo querendo assustar o silêncio,
qual o que! silêncio matava São Paulo cedinho, não eram nem nove horas. Seu
Lemos não tinha mais no que imaginar. Ia direito botar o restico de palito
mastigado no lixo, fazia o Nome-do-Padre e caía na cama já dormindo.
A mãe inda ficava rezando, uns
pares de horas, pra cada santo esquisito que ela escarafunchava lá de quanta
alcova tem o Paraíso. Santo Anastácio mártir; novena de S. Nicolau; oração pra
evitar mordedura de cobra; oração pra evitar esbarro-de-estômago; oito
Cre’m-dos-padres pra não pegar fogo na cidade. Acabava rezando a missa das
almas do outro mundo, de que ela tinha um bruto dum pavor. Vela também se
acabava. Era um despesão de vela naquela casa, porém São Paulo nunca pegou
fogo, ninguém não teve esbarro-de-estômago na família, e seu Lemos nunca foi
mordido de cobra quando ia na rua do Carmo, rua de Santa Teresa, por ali,
entregando carta.
Filho bom ele não era não...
Respeitar a mãe, respeitava nisso da gente tomar a bênção, não fumar na frente
dela, falar bom-dia, boa-noite, levar ela ver Senhor Morto na noite de
Sexta-feira Santa. Mas a pobre que cozinhava, inda lavava e engomava toda a
roupa do filho, etc. Nem conversa. Aliás seu Lemos não conversava mesmo com
ninguém. E quando a mãe morreu de repente, o que sentiu foi o vazio inquieto de
quem nunca lidara com pensão nem lavadeira.
E foi então que, palitando dente
na janela, ele afinal principiou reparando naquela moça do portão. No dia seguinte,
francamente, foi até lá só pra ver se tinha mesmo moça no portão daquela
chacra. Nízia estava lá meia lânguida, mui mansa, não pedindo nada, só por
costume duma esquecida que não esperava mais ninguém.
Quando palitou de novo a
barulhada dos sapos nesta noite, seu Lemos começou a pensar que ali estava uma
moça boa pra casar com ele. Não refletiu, não comparou, não julgou, não
resolveu nem nada, seu Lemos pensava por decretos espaçados. Pois um decreto
apareceu em letras vagarentas no bestunto dele: “Ali está uma moça boa pra
casar com você.” Na palitação do dia seguinte, estava escrito na cabeça dele:
“Você vai casar com a moça do portão.” Então seu Lemos foi visitar o Anastácio
e, passando, cumprimentou a moça do portão. Nízia estava já tão esquecida de si
mesma que nem se assustou com o cumprimento, respondeu. Seu Lemos, que não via
razão pra visita todo dia na chácara do padrinho, passava, cumprimentava,
andava mais meio quilômetro pra disfarçar, ficava por ali dando com o pé na
tiririca poeirenta, olhava qualquer pé de agarra-compadre do caminho, voltava,
e cumprimentava de novo, rumo do Anhangabaú.
Depois de mês e meio de tanto
bate-perna, seu Lemos, palitando, soletrou o decreto novo aparecido de repente
na cachola: “Amanhã é domingo pé-de-cachimbo, e você vai pedir a mão da moça da
chácara.” Note bem a graça desses decretos: de primeiro só falavam em moça do
portão, mas agora vinham falando em moça da chacra, mais útil pra casar.
Ali pelo meio-dia, prima Rufina
muito espavorida veio ver quem que estava batendo, era seu Lemos. Prima Rufina
quase que dá o suíte no indivíduo, mas enfim dona Nízia havia de saber o que
era aquilo. Decerto encomenda...
— Mecê entre!
Seu Lemos não esperou nem dois
minutos no copiar, veio Nízia, assim como estava, com o trabalhinho no colo.
Ele falou que vinha pedir a mão dela em casamento, ela respondeu que estava
bom. Foi lá dentro dizer que prima Rufina preparasse também uns bolinhos pro
café e voltou. Entraram na varanda. Nízia continuando o sapatinho principiado.
— Como é a sua graça?
Olhou pra ele espantada,
perguntar como era a graça dela... decerto que ela é que não sabia! Seu Lemos
esclareceu:
— Me chamo Lemos, José Lemos, seu
criado. Queria também saber o nome da senhora.
— Nízia Figueira, sua criada.
— Sim senhora.
Seu Lemos parou de brincar com os
dedos em cima das pernas.
— A senhora gosta muito de fazer
sapatinho, dona Nízia?
— Já estou muito acostumada.
— Muito bonito esse que a senhora
está fazendo, é presente?
— Não senhor, eu vendo.
— Ahn...
— Quantos eu faço, prima Rufina
vende nas casas.
— Sei... Quem é prima Rufina?
Seu Lemos recomeçou brincando com
os dedos em cima das pernas.
— A preta que recolheu o senhor.
— Ahn... mas ela não é prima da
senhora, não?
— É minha criada. Me acostumei
chamando ela de prima Rufina desde criança. E ficou.
— Engraçado.
Trinta-e-seis, trinta-e-nove,
quarenta-e-oito, pronto, acabava mais uma carreira.
— Está um dia bonito hoje, não?
— Está mesmo.
— Que sol mais claro, não?
— Quem sabe se está incomodando o
senhor? eu fecho a janela...
— Não senhora, até nem me
incomoda.
Veio o café-com-leite e bolinhos.
Tomaram café-com-leite e comeram dois bolinhos cada um. Fazia uma tarde sublime
lá fora, claro, claro, com o sol quente jiboiando sobre os campos. E por esse
instinto de domingo que a natureza parece ter, aquela baixada estava num
sossego imenso, tomava um ar de repouso largado, voluptuosamente largado,
esparramado no chão. Eles ficaram ali fechados naquela sala-de-jantar, seu
Lemos palitava, Nízia tricotava, até que enxergaram os primeiros ruivores
passarem longe no horizonte, entardecendo o dia.
— Bom, já vou indo.
Então Nízia percebeu a ventura
inconcebível que lhe trazia aquele seu Lemos. Olhou. Viu na frente o bigode e o
topete simpático, sorriu pra eles. O vestido de cassa recortava as redondezas
do corpo dela, feito como era costume naquele tempo, quase gordo, mais gordo
que magro, peitos enchumaçados, pernas grossas, curtas, mãos parando no meio.
Na cara, os olhos castanhos embaçavam o rubor liso que vinha empalidecendo até
um queixo feito barrete frígio. Nariz simples, com as narinas quase grandes,
ondulando nas mesmas curvas dos bandós castanhos. A boca sorrindo era pálida,
com dentes cerrados e monótonos. Falou um “Já vai” meio pergunta, meio
aceitação, duma calma dominical.
— Já vou sim, dona Nízia, são
horas. Tive muito prazer em conhecê-la. Inquietação antiga desmanchou a cara
dela:
— E o senhor volta!
— Volto. Não volto sempre porque
creio que vou mudar de emprego, trabalho no Correio, é. Meu padrinho parece que
vai arranjar qualquer coisa pra mim na Secretaria do Tesouro, mas volto. Passe
bem.
Ele entregou-lhe a mão e a vida:
— Passe bem.
Acompanhou-o até o portão. Ficou
ali, enquanto ele partiu pelo caminho ruim. Tomando a estrada larga, seu Lemos
nem se voltou pra dizer outro adeus. Nízia entrou. Andava meia sem serviço pela
casa.
— Essas toalhinhas-de-crochê
estão carecendo lavar, prima Rufina.
— Antão num lavei elas na semana
retrasada mêmo!
— Mas olhe como estão!
— Num inxergo nada não, porém
mecê qué eu lavo! Tou vendo mas é que seu Leme veio atrapaiá tuda a vida nesta
casa! Mecê inté parece que nem num sabe adonde assentá! cadera num farta!
Sente, fique sussegada que é mió!
— Você não gostou de eu ficar
noiva, é?
— Até que gostei bem. Mecê carece
dum home nesta casa que lhe proteja mas porém ansim! premero que aparece, vai
ficando noiva! nem num sabe si seu Lemes quem é, arre credo! Será que anda de
bem cum os puliça! isso é que num posso assigurá pra mecê!
— Como você está braba comigo,
prima Rufina! ele é empregado no Correio!
— Isso antão é imprego que se
tenha! Gente boa num carece di andá iscrevendo carta não! véve que nem nois
mêmo, bem assussegado no seu canto! Mia fia, vassuncê num cunhece nada desse
mundo, mundo é mais ruim que bão... Essa história di sê impregado no Correio,
num mi parece que seja coisa dereita não, infim...
Foram deitar. A felicidade de
Nízia fizera dela uma desgraçada. Do passado e esquecimento de dantes não se lembrava,
mas o agora é que fazia ela sofrer. Noivo, seu Lemos achou que não carecia mais
de passar todo santo dia pela casa tão longe da noiva, a tarde veio e seu Lemos
não veio. Nízia vivia num deslumbramento simultâneo de felicidade e amargura.
Que amasse não digo, mas tinha alguém que se lembrava da existência dela. Isso
lhe dava um gosto inquieto, gosto de comparação, gosto de mais de um, não sei
se explico bem. De repente ficara desgraçada. “Vem amanhã”, murmurejou sofrendo
de prazer. E repetiu “Vem amanhã” até na quinta-feira.
Seu Lemos chegou não eram bem
seis horas, jantado. Entregou pra ela o brochinho de ouro, escrito LEMBRANÇA.
— Muito obrigado, seu Lemos.
— A senhora tem passado bem? Etc.
Ficou lá até oito, creio. Nízia
trabalhando, sob o lampião de querosene, ele assuntando as assombrações do
teto. Falavam de vez em quando aquelas frases de companheiro que não esperam
resposta, só pra reconhecimento de existência junta, um pouco de Correio, um
pouco de trabalhinho de lã. Prima Rufina pitando na cozinha. Seu Lemos afirmou
que voltava no domingo e então haviam de combinar o casório.
Não veio no domingo, veio na
terça-feira. Que andara muito atrapalhado por causa duma visita que fora
obrigado a fazer. Depois tivera de levar uma carta do tal pra um graúdo, estava
quase arranjado o lugar na Secretaria. Trazia aquela meia-dúzia de lencinhos,
desculpasse. Nízia foi lá dentro e voltou, feliz duma vez, com o cachenê feito
por ela na mão. Seu Lemos agradeceu e achou que estava muito bonito. Estava.
Era pardo, todo com listas pretas, barra de lã-com-seda.
Seu Lemos levou uma semana sem
aparecer. Só na outra terça-feira estourou na chacrinha, muito afobado, apenas
tivera tempo pra arranjar aquelas cravinas, de tão atrapalhado que andava,
desculpasse. Saíra a nomeação, e no dia seguinte tomava posse.
— Custou mas enfim!...
— Quem espera sempre alcança.
— É mesmo mas custou. Já ia
desanimado.
Seu Lemos estava mais tagarela.
Nesse dia sapatinho de lã não entrou na conversa, era só serviço ruim do Correio,
serviço bom da Secretaria, ordenado bem melhor, seu Chefe de seção, “me
disseram” e outras coisas nessa toada.
Nízia escutando. As palavras
caíam dentro dela talqualmente flor de paina, roseando a alma devagar. Foi-se
embora mais cedo? Não fazia mal! Nem soube que eram nove horas, que eram dez e
muito mais, ficou sozinha no trabalho, sem saber que trabalhava, acabando
carreira numa conta, acabando sapatinho, acabando outro sapatinho, escutando.
Não tinha nem bulha na noite fora. Os homens estavam dormindo em São Paulo. Nem
poeira nem grilo nem vento, que nada! um silêncio de matar gesto do braço.
Nízia tricotando sem saber. A luz do lampião mariposava em volta da cabeça dela
e, no calor seco da sala, as palavras de seu Lemos se pronunciavam ainda, sonorosas
de verdade, como afago doce de companheiro. Nízia sofreu que você não imagina.
Sofreu aquele sapatinho de lã; sofreu por causa de prima Rufina que estava
envelhecendo muito depressa; sofreu aqueles vestidos de cassa eternamente os
mesmos, carecia fazer outros; as toalhinhas de crochê não ficaram bem lavadas;
ela era um poucadinho bem mais gorda que seu Lemos; também prima Rufina nunca
trouxera uns pés de cravina pra plantar no jardim! flor tão bonita...
Todas essas infelicidades que
nunca sentira, e que doem tanto pra quem não pode ter outras: era a voz de seu
Lemos que trazia, pondo como espelho diante dela o corpo do companheiro. Foi
pro quarto e pela primeira vez depois do antraz da preta, não dormiu logo.
Pensar não pensou, era também do gênero dos decretos. Como decreto não vinha,
ficou espalhada na escuridão, sentindo apenas que vivia, feliz, encostada na
vida do companheiro.
Seu Lemos levou duas semanas sem
aparecer.
— Puis é! si mecê já tivesse
priguntado pra ele adonde que ele mora, eu ia inté lá sabê si é duença...
Numa quarta-feira seu Lemos
apareceu. Vinha com barba por fazer e de mãos vazias, puxa! que serviceira!
estava arrependido. Depois, tanta responsabilidade!... Entregar carta, a gente
entrega e pronto, agora? escreve número aqui, escreve número noutra parte, e
não se pode errar porque livro de Secretaria não é coisa que a gente ande
rabiscando nem raspando. Depois: ainda não estava bem enfronhado do serviço que
barafunda! nunca imaginei que fosse tão difícil!...
O engraçado é que ali mesmo,
diante de Nízia, sem se lembrar dela, seu Lemos estava lendo os decretos da
cabeça. E não pense que lia todos em voz alta que nem estou fazendo, não!
Parava de falar às vezes, e lia só consigo. E que diferença agora a cabeça de
seu Lemos! Antigamente era um vazio grande sem nada, só de três em cinco
palitações um decretinho curto. Agora? era ver página do Correio Paulistano
"que barafunda!”, como ele dizia... Foi-se embora remoendo decreto sem
parada.
Nízia ficou na porta, metade do
corpo na noite, metade dentro de casa, partida pelo meio. Bem sentiu que seu
Lemos, coitado!
não era por querer, porém, estava
escapando dela. Voltou pra dentro, e custava se lembrar do que seu Lemos
falara. Quis sossegar-se, coitado! tanta ocupação... Sossegou-se, mas num
sossego sozinho, de morte e de desagregação. Quando ficou bem só, não sofreu
mais, dormiu.
Seu Lemos só apareceu vinte dias
depois, vinha magro, passando. Viu Nízia no portão, parou pra saudar. Tinha que
ir ver o protetor, por causa duma embrulhada que sucedera lá na repartição. Ela
meia que ficou até espantada com a figura do estrangeiro. Teve uma dor
horrível.
— Na volta o senhor entra sempre,
seu Lemos?
— Pra falar verdade, dona Nízia,
não sei se posso parar, se puder, paro. Mas não se incomode por minha causa
não. Passe bem.
— Passe bem.
Seu Lemos tinha revivido nela uma
infelicidade pesada. Mas não desejou que seu Lemos não voltasse, como seria melhor
pra ela e foi. Seu Lemos não voltou. Padrinho deu o estrilo com ele por causa
da tal encrenca, seu Lemos zangou com o padrinho, seu Lemos saiu da Secretaria,
seu Lemos banzou sem decretos uma porção de dias, seu Lemos arranjou emprego
numa loja de fazendas... O coitado não queria riqueza, queria era sossego...
Arranjou uma mulata gorda pra cozinhar, dormiu uma noite no quarto da
Sebastiana e depois todas as noites a Sebastiana no quarto dele, que era mais
espaçoso. Sebastiana cozinhava, porém não era cozinheira mais: dona-de-casa,
sempre querendo chinela nova no pé cor-de-sapota.
Nízia... Teve um homem que veio
morar bem perto da chacrinha dela. Não durou muito uma família vizinhou com o
tal. E aos poucos foi se fazendo a rua Guaicurus, foi se fazendo mais um bairro
desta cidade ilustre. Uns se davam com os outros; uns não se davam com os
outros; ninguém não se dava com Nízia; prima Rufina se dava com todos. Nízia
serenamente continuava esquecida do mundo.
Deu mas foi pra beber. Banzando
pela casa, quis matar uma barata e encontrou debaixo da cama de prima Rufina a
garrafa que servia pra de-noite. Roubou um pouco por curiosidade. Muito
pouquinho, com vergonha da outra. A primeira sensação é ruim, porém o calor que
vem depois é bom.
Não levou nem mês, prima Rufina
percebeu. Não falou nada, só que trouxe um garrafão de pinga, e principiaram
bebendo juntas, cada mona!... Não digo que fosse todo dia, pelo contrário.
Nízia trabalhava, prima Rufina vendia, sempre as mesmas. Trintonas,
quarentonas, isto é, prima Rufina, sempre muito mais velha que a outra. Dera
pra envelhecer rápido, essa sim, uma coitada que não o mundo porém a vida
esquecera, quase senil, arrastando corpo sofrido, cada nó destamanho no
tornozelo, por causa do artritismo. Quando a dor era demais, lá vinha o
garrafão pesado:
— Mecê tambem qué, mia fia?
— Me dá um bocadinho pra
esquentar.
— Puis é, mia fia, beba mêmo!
Mundo tá ruim, cachaça dexa mundo bunito pra nóis.
Era dia de bebedeira. Prima
Rufina dava pra falar e chorar alto. Nízia bebia devagar, serenamente. Não
perdia a calma, nem os traços se descompunham. A boca ficava mais aberta um
pouco, e vinha uma filigrana vermelha debruar a fímbria das narinas e dos olhos
embaçados. Punha a mão na cabeça e o bandó do lado esquerdo se arrepiava.
Ficava na cadeira, meia recurvada, com as mãos nos joelhos, balanceando o corpo
instável, olhar fixo numa visão fora do mundo. Prima Rufina, se encostando em
quanta parede achava, dando embigada nos móveis, puxava Nízia. Nízia se erguia,
agarrava o garrafão em meio, e as duas, se encostando uma na outra, iam pro
quarto.
Prima Rufina quase que deixou
cair a companheira. Rolou na cama, boba duma vez, chorando, perna pendente, um
dos pés, arrastando no assoalho. Nízia sentava no chão e recostava a cabeça na
perna de prima Rufina. Bebia. Dava de beber pra outra. Prima Rufina punha a mão
sem tato na cabeça de Nízia e consolava a serena:
— E isso mêmo, mia fia... num
chore mais não! A gente toma pifão, pifão dá gosto e bota disgraça pra fora...
Mecê pensa que pifão num é bom... é bão sim! pifão... pifãozinho... pra
esquentá desgraça desse mundo duro... O fio de mecê, num sei que-dele ele não.
Fio de mecê deve de andá pur aí, rapaiz, dicerto home feito... Dicerto mecê já
isbarrô cum ele, mecê num cunheceu seu fio, seu fio num cunheceu mecê... Num
chore mais ansim não!... Pifão faiz mecê esquecê seu fio, pifão... pifão...
pifãozinho...
Nízia piscava olhos secos,
embaçados, entredormindo. Escorregava. Ia babar num beijo mole sobre o pezão de
prima Rufina. Esta queria passar a mão na outra pra consolar, vinha até a borda
da cama e caía sobre Nízia, as duas se misturando num corpo só. Garrafão,
largado, rolava um pouco, parava no meio do quarto. Prima Rufina inda se mexia,
incomodando Nízia. Acabava se aconchegando entre as pernas desta e fazendo
daquela barriga estufada um cabeceiro cômodo. Falava “pifão” não sei quantas
vezes e dormia. Dormia com o corpo todo, engruvinhado de tanta vida que passara
nele, gasta, olhos entreabertos, chorando.
Nízia ficava piscando, piscando
devagar, mansamente. Que calma no quarto sem voz, na casa... Que calma na terra
inexistente pra ela... Piscava mais. Os cabelos meio soltos se confundiam com o
assoalho na escureza da noitinha. Mas inda restava bastante luz na terra, pra
riscar sobre o chão aquele rosto claro. Muito sereno, um reflexo leve de baba
no queixo, rubor mais acentuado na face conservada, sem uma ruga, bonita. Os
beiços entreabriam pro suspiro de sono sair. Adormecida calma, sem nenhum sonho
e sem gestos.
Nízia era muito feliz.
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