Nem uma nem outra
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Numa tarde do mês de março de 1860, entrava
no Hotel Ravot um velho mineiro, que, nesse mesmo dia, chegara de Mar de
Espanha. Trazia um camarada consigo e alojou-se num dos aposentos do hotel,
tendo o cuidado de restaurar as forças com um excelente jantar.
O velho representava ter cinquenta anos, e eu
peço perdão aos homens que têm essa idade sem todavia estarem velhos. O
viajante de quem se trata, posto viesse de um clima conservador, estava todavia
alquebrado. Via-se pela cara que não era homem inteligente, mas tinha nos
traços severos do rosto os sinais positivos de uma grande vontade. Era alto, um
pouco magro, tinha os cabelos todos brancos. No entanto, era alegre, e desde
que chegara à Corte divertia-se muito com os espantos do criado que pela
primeira vez saía da sua província para vir ao Rio de Janeiro.
Quando acabaram de jantar, amo e criado
entraram a conversar amigavelmente e com aquela boa franqueza mineira tão
apreciada pelos que conhecem a província. Depois de rememorarem os incidentes
da viagem, depois de comentarem o pouco que o criado conhecia do Rio de
Janeiro, entraram ambos no principal assunto que trouxera o amo ao Rio de
Janeiro.
Amanhã, José, disse o amo, precisamos ver se
descobrimos meu sobrinho. Não vou daqui sem levá-lo comigo.
— Ora, Sr. capitão, respondia o criado, eu
acho bem difícil encontrar seu sobrinho numa cidade tamanha. Só se ficarmos
aqui um ano inteiro.
— Qual, um ano! Basta anunciar no Jornal do Comércio, e se não for
bastante vou à polícia, mas hei de achá-lo. Tu lembras-te dele?
— Não me lembro nada. Vi-o só uma vez e há tanto
tempo...
— Mas não o achas um bonito rapaz?
— Naquele tempo era...
— Há de estar melhor.
O capitão sorriu depois de pronunciar estas
palavras; mas o criado não lhe viu o sorriso, nem lho perceberia, que é
justamente o que acontece aos leitores.
A conversa parou nisto.
No dia seguinte, a primeira coisa em que o
capitão Ferreira cuidou, logo depois do almoço, foi em levar um anúncio ao Jornal do Comércio, concebido nos
seguintes termos:
“Deseja-se
saber onde mora o senhor Vicente Ferreira para negócio do seu interesse.”
Apenas deixou o anúncio, descansou o nosso
capitão e ficou a esperar uma resposta.
Mas, contra a expectativa, não apareceu
resposta nenhuma no dia seguinte, e o capitão foi obrigado a repetir o anúncio.
A mesma coisa.
O capitão fez repetir o anúncio durante oito
dias, sem adiantar um passo, mandou pô-lo em grandes tipos; mas continuava o
mesmo silêncio. Convenceu-se por fim que o sobrinho não estava no Rio de
Janeiro.
— Fizemos a viagem inutilmente, disse o
capitão ao criado; voltemos para Mar de Espanha.
O criado alegrou-se com a ideia de voltar;
mas o velho estava triste.
Para distrair-se de sua tristeza, saiu o
capitão a dar um passeio depois do almoço, e dirigiu-se para os lados do
Passeio Público.
Justamente na Rua do Passeio pareceu ver
entrar em uma casa um sujeito que de longe lhe pareceu o sobrinho.
O velho apressou o passo e chegou à porta do
corredor por onde entrara o vulto, mas não achou ninguém. Quem quer que era
tinha já subido a escada.
Que fazer?
Lembrou-se de ficar na porta à espera; mas
podendo ser que se houvesse enganado, a espera seria, sobre fastidiosa, inútil.
O capitão lembrou-se de bater palmas.
Com efeito, subiu o primeiro lanço da escada
e bateu palmas. Pouco depois veio abrir-lhe a cancela um moço representando ter
vinte e cinco anos de idade, a quem o capitão, apenas o viu, gritou com toda a
força dos seus pulmões.
— Vicente!
— Quem é?
O capitão subiu os degraus sem responder e
chegou ao patamar gritando:
— Pois não me conheces, sobrinho ingrato?
Dizer isto e atirar-se-lhe aos braços foi a
mesma coisa. O rapaz abraçou ternamente o tio, não sem um pouco de acanhamento
em que o capitão não reparou.
— Entre cá para a sala, meu tio, disse
Vicente.
Entraram na sala, e se os olhos do tio fossem
mais indiscretos teriam visto que, justamente no momento em que ele entrava na
sala, saiu por um corredor interno um vestido de mulher.
Mas o capitão Ferreira ia tão embebido no
sobrinho e tão contente por tê-lo finalmente encontrado, que não reparou em coisa
nenhuma.
— Ora, graças a Deus que te encontro! disse
ele sentando-se numa cadeira que lhe oferecia o rapaz.
— Quando chegou?
— Há dez dias. Não sabendo onde moravas,
anunciei no Jornal do Comércio todos
os dias, e sempre em vão. Não leste o anúncio?
— Meu tio, eu não leio jornais.
— Tu não lês jornais?
— Não, senhor.
— Homem, fazes bem; mas ao menos agora seria
conveniente que houvesses lido; mas para isso era preciso que eu te avisasse, e
eu não sabia da casa...
— Já vê... disse Vicente sorrindo.
— Pois, senhor, acho-te bem disposto. Estás
muito melhor do que a última vez que lá foste à fazenda; creio que há já cinco
anos.
— Pouco mais ou menos.
— Tudo por lá ficou bom, mas com saudades de
ti. Por que diabo não apareces?
— Meu tio, ando tão ocupado...
— Sim, creio que estás aprendendo a tocar
piano, disse o capitão olhando para o instrumento que via na sala.
— Eu? disse o rapaz; não, não sou eu, é um
amigo.
— Que mora contigo?
— Justo.
— Vocês moram bem; e estou capaz de vir para
aqui uns dias antes de voltar para Minas.
O rapaz empalideceu, e por muito pouca
perspicácia que tenha o leitor há de compreender que esta palidez está ligada à
fuga do vestido de que lhe falei acima.
Não respondeu coisa alguma à proposta do tio,
e este foi o primeiro a romper a dificuldade, dizendo:
— Mas para quê? demoro-me tão pouco tempo que
não vale a pena; e além disso, pode o teu amigo não gostar...
— Ele é um pouco esquisito.
— Ora aí está! E eu sou muito esquisito, e
portanto, não podemos fazer conciliação. O que eu quero, Vicente, é falar-te
sobre um importantíssimo negócio, único que me traz ao Rio de Janeiro.
— Um negócio?
— Sim; mas agora não temos tempo; adiemos
para outra ocasião. Apareces no Ravot hoje?
— Lá irei.
— Olha, vai jantar comigo, sim?
— Vou, meu tio.
— Anda daí.
— Agora não me é possível; tenho de esperar o
meu companheiro; mas pode ir que eu lá estarei para jantar.
— Ora, bem, não me faltes.
— Não, senhor.
O capitão abraçou outra vez o sobrinho e saiu
radiante de alegria.
Apenas o tio chegou à porta da rua, Vicente,
que tinha voltado à sala e estava à janela, sentiu que lhe tocavam por trás.
Voltou-se.
Uma moça — a do vestido — estava por trás
dele, e lhe perguntava sorrindo:
— De onde te veio este tio?
— De Minas; não contava agora com ele, tenho
de lá ir jantar.
— Ora...
— Desculpa; é um tio.
— Vá, disse ela sorrindo, faço o sacrifício
ao tio. Mas, olha, vê se mo envias depressa para Minas.
— Descansa; o mais depressa que me for
possível.
CAPÍTULO
2
Vicente foi exato na promessa.
O capitão Ferreira, que já estava impaciente,
apesar de não ser tarde, andava da sala para a janela, olhando para todos os
lados, a ver se descobria sinais do sobrinho. Ora, o sobrinho entrou justamente
numa ocasião em que ele estava na sala; um criado do hotel levou-o ao aposento
do capitão, aonde Vicente entrou justamente na ocasião em que o capitão ia para
a janela, de maneira que foi uma grande surpresa para o tio ver o sobrinho
repimpado numa cadeira quando menos o esperava.
— Por onde diabo entraste tu?
— Pela porta.
— É singular; não te senti entrar. Ora, ainda
bem que vieste; são horas de jantar, e é bom que jantemos antes, a fim de
termos tempo para conversarmos a respeito do negócio de que te falei.
Vicente estava alegre e ruidoso como era do
seu natural. A entrada inesperada do tio na casa da Rua do Passeio é que o
tinha tornado acanhado e hesitante; agora, porém, que já não tinha motivos para
hesitações nem acanhamentos, deu o rapaz largas ao seu gênio folgazão.
A surpresa foi agradável para o capitão
Ferreira, que não tinha a insuportável mania de querer moços velhos, e aceitava
o gênio de todas as idades e de todos os temperamentos.
Acabando o jantar, o capitão foi com o
sobrinho para o seu aposento e aí começou a conversa importante que o trouxera
à corte.
— Primeiramente, disse o velho, deixa-me
puxar-te as orelhas pela tua prolongada ausência lá de casa, aonde ias ao menos
uma vez por ano. Que diabo andas fazendo aqui?
— Meu tio, ando muito ocupado.
— Graves negócios, não?
— Não graves, porém, maçantes.
— Sim? Imagino. Estás empregado?
— Numa casa comercial, onde ganho alguma
coisa, e isso junto com o pouquinho que me ficou de minha mãe...
— Eram uns vinte contos, não pode ser muito,
talvez não seja nada.
— Isso está intacto.
— Confesso, disse o velho, que não te supunha
tão econômico. Mas por que razão não arranjaste uma licença para ires ver-me à
fazenda?
— No comércio é difícil.
— Pois mandava-se o emprego ao diabo; lá em
casa há um canto para um parente.
Vicente não respondeu; o velho continuou:
— E é justamente para isto que eu vim
falar-te.
— Ah! disse Vicente arregalando os olhos.
— Aposto que recusas?
— Recusar? Mas...
— Estás com pouca vontade, e eu no teu caso
faria o mesmo; mas não se trata só de abandonar a Corte para ires encafuar-te
numa fazenda. Para um rapaz a mudança há de ser difícil. A carne é dura de
roer, mas eu trago-te o molho.
Dizendo isto, o capitão fitava os olhos do
rapaz cuidando ver neles uma curiosidade misturada de alegria. Viu a
curiosidade, mas não viu a alegria. Não se perturbou, e continuou:
— Teu pai, que era meu irmão, incumbiu-me de
velar por ti, e fazer-te feliz. Até aqui tenho cumprido o que prometi, porque
sendo mais feliz na Corte, não te forcei a ir viver comigo na fazenda; e quando
quiseste ter um emprego, esse que tens agora, hás de lembrar-te que alguém to
ofereceu.
— É verdade.
— Pois bem, foi por iniciativa minha.
— Ah! foi meu tio?
— Pois então? disse o velho, batendo-lhe na
perna a rir; cuidavas que eu ignorava o teu emprego? Se eu mesmo to dei; e
mais, tenho indagado do teu comportamento na casa, e sei que é exemplar. Já por
três vezes mandei dizer ao teu patrão que te desse licença por algum tempo, e
ele mesmo, segundo me consta, falou-te nisso, mas tu recusaste.
— É verdade, meu tio, respondeu Vicente; e eu
não sei como lhe agradeça...
— O haveres recusado visitar-me?
— Confesso que...
— Compreendo o motivo; os rapazes da corte —
as delícias de Cápua, como diz o vigário Tosta — eis a causa.
Vicente caía das nuvens com todas estas
notícias que lhe dava o capitão, ao passo que o capitão ia desenrolando-as sem
intenção de afrontar nem censurar o rapaz... O capitão era um bom velho;
compreendia a mocidade, e desculpava-lhe tudo.
— Ora bem, continuou ele, quem fez tanto por
ti, entende que é chegado o momento de fazer-te feliz de outra maneira.
— Qual maneira? perguntou Vicente curioso e
ao mesmo tempo assustado com o gênero de felicidade que lhe anunciava o tio.
— De uma maneira tão velha como Adão e Eva, o
casamento.
Vicente empalideceu; esperava tudo, menos o
casamento. E que casamento seria? O velho não disse mais nada; Vicente gastou
alguns minutos em formular uma resposta, que seria ao mesmo tempo une fin de non recevoir.
— Que achas? perguntou finalmente o velho.
— Acho, respondeu resolutamente o rapaz, que
meu tio é em extremo bondoso comigo em me propor o casamento para minha
felicidade. Com efeito, parece que o casamento é o remate natural da vida, e
por isso aceito com braços abertos a sua ideia.
O velho sorria de contentamento, e ia já
abraçá-lo quando o sobrinho acabou o discurso.
— Mas, acrescentou Vicente, a dificuldade
está na esposa, e eu por enquanto não amo a ninguém.
— Não amas a ninguém? disse o velho
deitando-se; mas então cuidas que eu vinha à corte só para te propor um
casamento? Trago duas propostas — a do casamento e a da mulher. Não amas a
mulher? Hás de vir a amá-la, porque ela já te ama.
Vicente estremeceu; a questão agora
tornava-se mais complicada. Ao mesmo tempo a ideia de ser amado sem que ele
soubesse nem tivesse feito nenhum esforço, era uma coisa que lhe sorria à
vaidade. Entre estes dois sentimentos contrários, o rapaz achou-se embaraçado
para dar uma resposta qualquer.
— A mulher que te destino e que te ama, é
minha filha Delfina.
— Ah! a prima? Mas ela é criança...
— Era há cinco anos; agora está com dezessete
anos, e creio que a idade é própria para um consórcio. Aceitas, não?
— Meu tio, respondeu Vicente, eu aceitaria
com muito prazer a sua ideia; mas, posto que eu reconheça toda a vantagem desta
união, contudo, não quero fazer uma moça infeliz, e é o que pode acontecer se
eu não amar minha mulher.
— Dar-lhe-ás pancadas?
— Oh! perdão! disse Vicente, não sem esconder
um sentimento de indignação que lhe provocara a pergunta do velho. Mas não
amando a uma pessoa que me ama, é fazê-la infeliz.
— Histórias da vida! disse o velho
levantando-se e passeando pela sala; isto de amor em casamento é uma burla;
basta que se estimem e se respeitem; é o que eu exijo e nada mais. Vê lá; em
troca disso, dou-te a minha fortuna toda; bem sei que isto é o menos para ti;
mas ter mulher bonita (porque Delfina é uma joia), meiga, dócil, é uma fortuna
que só um pateta pode recusar...
— Eu não digo que...
— Um pateta, ou um estouvado, como tu; um
estouvado, que abandonou a casa de comércio, em que se achava, por um capricho,
uma simples desinteligência com o dono da casa... Olhas espantado para mim? É
verdade, meu rico; soube de tudo isso: e é essa a razão de não saberes tu quando
aqui cheguei. Creio ao menos que estarás empregado?
— Estou, balbuciou o moço.
O capitão estava já zangado com as recusas do
sobrinho, e não se pôde conter; disse-lhe o que sabia. Vicente, que o cuidava
iludido acerca da saída da casa em que estivera, recebeu a notícia como uma
bala de 150.
O velho continuou a passear silencioso.
Vicente deixou-se estar assentado sem dizer palavra.
No fim de alguns minutos, voltou o capitão à
sua cadeira e acrescentou:
— Não me sejas palerma; atende que eu venho
fazer a tua felicidade. Tua prima suspira por ti. Só o soube quando o filho do
Coronel Vieira foi lá pedi-la em casamento. Disse-me ela então que só se
casaria contigo; e eu, que a estremeço, quero fazer-lhe a vontade. Vamos; não
posso esperar; decide-te.
— Meu tio, disse Vicente depois de alguns
instantes, não posso dar-lhe uma resposta definitiva; mas afirmo que o que eu
puder fazer estará feito.
— Boa confiança devo eu ter nas tuas
palavras!
— Por quê?
— Queres saber por quê? é porque eu suponho
que andarás por aí perdido, que sei eu? Como se perdem os rapazes de hoje.
— Oh! quanto a isso, juro...
— Não quero juramentos, quero uma resposta.
O capitão Ferreira era um homem de vontade;
não admitia recusas, nem sabia propor coisas daquelas, quando lhe não assistia
direito legal. Vicente até então vivera independente do tio; era natural que
nunca contasse com a fortuna dele. Querer impor-lhe o casamento por aquele
modo, era arriscar a negociação, afrontando o orgulho do moço. O velho não
reparava nisso, ficou muito admirado quando o sobrinho respondeu secamente às
últimas palavras dele:
— Pois bem, a minha resposta é simples: não
me caso.
Seguiu-se a estas palavras um profundo
silêncio; o velho ficou fulminado.
— Não te casas? perguntou ele no fim de longos
minutos.
O rapaz fez um sinal negativo.
— Reparaste bem na resposta que me deste?
— Reparei.
— Adeus.
E dizendo isto, o velho levantou-se e
dirigiu-se para o quarto sem lhe dirigir um olhar sequer.
Vicente compreendeu que estava despedido e
saiu.
Quando chegou à casa, achou a moça que já
tivemos ocasião de ver no primeiro capítulo, a qual o recebeu com um abraço que
era ao mesmo tempo um ponto de interrogação.
— Briguei com meu tio, disse o moço
sentando-se.
— Ah!
— Adivinha o que ele queria?
— Mandar-te para fora daqui?
— Casar-me com a filha dele e fazer-me seu
herdeiro.
— Recusaste?
— Recusei.
A moça ajoelhou-se diante de Vicente e
beijou-lhe as mãos.
— Que é isto, Clara?
— Obrigada! murmurou ela.
Vicente levantou-a e beijou-lhe por sua vez
as mãos.
— Tolinha! Pois há nisto motivo para me
agradeceres? E chorando! Clara, deixa-te de lágrimas! Eu não gosto de ver uma
moça chorona... Vamos! ri-te.
Clara sentou-se calada; via-se-lhe a alegria
no rosto, mas uma alegria misturada de tristeza.
— Quem sabe? disse ela no fim de algum tempo;
quem sabe se fizeste bem recusando?
— Essa agora!
— Recusaste por minha causa, e eu...
— Já vejo que fiz mal em falar-te nisto. Ora,
vamos... nada de tolices; anda passear.
Vicente Ferreira, desde que lhe morrera a
mãe, deixara o interior da província de São Paulo, aonde vivera, e
estabeleceu-se na corte com o pouco que herdara; algum tempo empregou-se, e já
sabemos que por influência do tio, que deveras o estimava. Era um rapaz um
tanto orgulhoso, e imaginava que viver com o tio era mostrar-se adulador da
fortuna dele, ideia esta de que fugia sempre. Quando estava em São Paulo
visitara muitas vezes o tio; mas, depois que viera para a corte, nunca mais o
fez. Além dos sentimentos que já apontamos acima, não queria deixar a casa
ainda que com licença do patrão, que aliás era o primeiro a oferecer-lha; e
finalmente a Clara da Rua do Passeio tinha grande parte na decisão do rapaz.
Por que essa influência e como começara ela?
Apressemo-nos a tirar do espírito do leitor
uma ideia que porventura já lhe tenha surgido, e vem a ser a de que a nossa
Clara é uma Margarida Gauthier lavando-se nas águas do amor das culpas
passadas.
Clara tinha sido raptada de casa de seus pais
por um amigo de Vicente, ou pelo menos o sujeito que andava com ele — e
abandonada no fim de um mês pelo tratante, que embarcou para Buenos Aires.
A moça achou-se só um dia de manhã, sem
arrimo nenhum, nem esperança dele. A primeira ideia que teve foi matar-se;
nessa resolução entrou por muito o amor que ainda tinha pelo rapaz. Mas o medo,
a educação religiosa que lhe haviam dado depressa lhe arredaram do espírito
semelhante ideia.
No meio da sua aflição lembrou-se de Vicente,
que lá fora à casa dela, uma vez, em companhia do fugitivo Enéas. Mandou-o
chamar e contou-lhe a sua situação. Vicente ainda não sabia da fuga do amigo, e
ficou admirado que ele houvesse cometido semelhante ato de covardia. Mas,
sabendo que pelo lado da justiça o raptor nada temia, admirou-se da fuga sem
outro motivo aparente além da questão do rapto, motivo que não era motivo,
porque um homem que furta uma moça tem sempre ânimo para conservá-la durante
algum tempo, até que possa a fuga completar a obra do rapto: a audácia coroada
pela covardia.
Ora, esse tempo nunca é simplesmente um mês.
Outra causa devia haver, e Vicente tratou de
indagar nesse mesmo dia sem nada obter; no dia seguinte, porém, a gazetilha do Jornal do Comércio tirou todas as
dúvidas: noticiava a fuga do homem com alguns contos de réis.
Para acabar já com a história deste sujeito,
acrescentarei que, depois de longos trabalhos do mesmo gênero, em Buenos Aires,
fugiu ele para o Chile, onde consta que é atualmente empregado em umas obras
das estradas.
A moça contou a Vicente qual era a sua
posição, e pediu-lhe por esmola o seu auxílio.
Vicente tinha bom coração; achou que naquele
estado não devia fazer à moça um discurso inútil sobre o seu ato; cumpria-lhe
socorrê-la. Tirou, portanto, um conto de réis do pecúlio que tinha e deu a
Clara os primeiros auxílios necessários; alugou-lhe casa e uma criada;
preparou-lhe uma mobília e despediu-se.
Clara recebeu agradecida e envergonhada os
auxílios de Vicente; mas ao mesmo tempo não via nos atos do rapaz mais do que
um sentimento de interesse.
No fim de quinze dias, Vicente foi à casa de
Clara e disse-lhe que, não podendo adiantar-lhe tudo quanto ela precisasse e
não devendo ela ficar exposta aos perigos da sua situação, era conveniente que
procurasse trabalhar, e para isso escolhesse o que mais lhe conviesse.
Clara achou justas as observações de Vicente,
e ficou assentado que a moça trabalharia de costureira em casa de alguma
modista.
Daí a dias estava a moça empregada.
Entretanto, Vicente não voltou lá mais; de
quando em quando recebia um recado de Clara, mas era sempre em assunto que lhe
dispensava uma visita pessoal.
O procedimento do moço não deixou de influir
na rapariga, que já se arrependia do seu primeiro juízo.
Um dia adoeceu Vicente, e Clara apenas o
soube, obteve licença da modista e foi tratar do enfermo com a dedicação e zelo
de uma irmã. A doença de Vicente durou dez ou doze dias; durante esse tempo não
se desmentiu a solicitude da moça.
— Obrigado, disse Vicente à rapariga, quando
se levantou da cama.
— Por quê? Sou eu quem lhe deve.
— Já pagou de sobra.
— Oh! nunca! disse Clara. O senhor livrou-me
a vida, é verdade; mas não fez só isto, livrou-me de entrar numa carreira fatal...
e mais...
— E mais nada, disse Vicente.
A moça voltou o rosto e enxugou uma lágrima.
— Por que chora? perguntou Vicente.
Clara não respondeu, mas levantou os olhos
para ele rasos d’água, e parece que nesse momento deviam eles ter uma expressão
muito eloquente, porque o rapaz sorriu dizendo estas palavras:
— Ama-me, não?
A moça beijou-lhe a mão.
No dia seguinte Clara despedia-se da modista,
e os dois ficaram morando na casa da Rua do Passeio, onde já o vimos.
Pede a verdade que se diga que Vicente não
amou desde logo a rapariga; mas o amor veio lentamente como um vento fresco da
noite, que começa mais débil que o hálito de um infante e acaba em forte
viração.
Clara era bonita e tinha excelente coração; o
caráter de Vicente estava de perfeito acordo com o dela; ambos punham a
felicidade na tranquilidade interior, na mútua afeição, no trabalho e na
mediania. Tinham achado tudo isso; por que abandoná-lo?
CAPÍTULO
3
O incidente do tio capitão foi passageira
nuvem na vida de Vicente. Quinze dias depois estava inteiramente esquecido. A
própria Clara, apesar da tristeza que lhe produzira a proposta do capitão, não se
lembrava já dele. Tudo parecia ter voltado ao antigo tempo.
Assim foi com efeito durante três meses; mas,
no fim de junho, Vicente recebeu uma carta pedindo-lhe que a saúde de Delfina
exigia a presença dele na fazenda. A carta não tinha ar de ordem nem de
súplica: era um simples pedido.
Vicente ficou impressionado com a carta do
tio. Sentia-se com remorsos do que porventura tivesse acontecido; era-lhe
necessário reprimir o mal, se mal havia. Tal foi, com efeito, a sua resolução.
Mas essa resolução não durou muito tempo;
posto que o rapaz visse a gravidade do caso, não podia esquecer-se de que havia
uma proposta em pé, talvez que a presença dele na fazenda não fizesse mais do
que acelerar a realização de uma ideia que lhe era mortal.
Vicente desistiu de ir à fazenda.
Desta vez, porém, não comunicou a Clara o que
havia, e tudo pareceu continuar no mesmo estado, até que muitos dias depois,
entrando Vicente em casa, achou Clara triste e com vestígios de haver chorado.
— Que tens tu? perguntou-lhe.
— O que tenho?
— Sim, pareces triste.
— Estou triste, sim; parece que já não mereço
confiança.
— Por quê?
— Recebeste uma carta de teu tio e não me
disseste nada.
— É verdade; não queria mortificar-te. Como
soubeste disso?
— Achei hoje a carta.
— Pois sim, continuou Vicente, recebi a carta
e para te não afligir não te participei coisa alguma. E vês que pouco me
importou, visto que não parti.
— Fizeste mal.
— Fiz mal?
— Devias ter ido à fazenda.
Vicente franziu a testa.
— Clara, disse ele, não me amas?
— Eu? ah! injusto que tu és! Amo-te, sim, e
muito; mas que tem isso com o simples pedido de um pai que te pede a salvação
de uma filha?
— A salvação? É romanesco demais.
— Incrédulo!
— Devo sê-lo, Clara, em não crer que uma
moça, que eu vi menina pela última vez, tamanho amor criasse por mim que venha
a morrer dele.
— O coração tem mistérios.
— Falemos de outra coisa.
— Não, disse Clara, falemos disto. Tu vais a
Minas.
Vicente fez um gesto de impaciência.
— Não te zangues, continuou a moça; vais a
Minas, e lá te demoras o tempo preciso para acalmar essa pobre moça; voltarás
depois. Vai, sim?
Vicente fitou em Clara olhos desconfiados;
através daquela insistência ia uma intenção oculta, e pela primeira vez sentiu
ciúmes.
Parece que a moça o compreendera logo, porque
levantou-se da cadeira em que se achava e lançou ao rapaz um olhar tão soberano
e tão sincero, que ele sentiu-se envergonhado.
— Bem sei, Clara, qual é a tua ideia. Sentes
que eu não vá por tua causa; não queres ter o remorso de haver feito sofrer
ninguém.
— Quando assim fosse?... perguntou a moça.
— Era bonito da tua parte.
Clara sorriu tristemente.
— Achas bonito? Eu acho que é simplesmente
justo. Que direito tenho eu de fazer sangrar o coração de uma pobre menina?
— Clara, tu não me amas, porque o amor é
menos filantropo.
A conversa ficou nisto.
O jantar foi triste, ambos estavam
preocupados.
A verdade é que as palavras da moça não
deixaram de impressionar o rapaz; compreendia ele que não o haviam de casar à
força, ao passo que a presença dele na fazenda podia influir beneficamente no
ânimo da prima.
De noite assentou que iria a Mar de Espanha.
Fixou a viagem para daí a dois dias.
Clara alegrou-se com a notícia.
— Que dor me tiras tu, disse ela; vai, e eu
prometo que rogarei a Deus por ti, por ela, e pela nossa felicidade.
No dia seguinte, Vicente entrou a fazer os
preparativos de viagem; comprou mala necessária, e já ia com ela atravessando a
Rua do Ouvidor, para ir a casa, quando viu à porta do Hotel de Europa, na Rua
do Carmo, um homem falando para dentro de um carro.
Era o capitão.
Vicente parou, e viu daí a instantes sair de
dentro uma moça alta, mas débil e pálida, em quem reconheceu Delfina.
A moça entrou para o hotel acompanhada do
pai. Vicente conservou-se alguns instantes parado, e depois seguiu viagem para
a Rua do Passeio acompanhado do preto que lhe levava a já inútil mala.
Contou o caso a Clara. A moça estremeceu
desta vez como se visse o perigo perto e iminente. Contudo, disse-lhe:
— Pois melhor; em vez de ires a Mar de
Espanha, vais ao Hotel de Europa; é mais perto, e eu tenho o prazer de saber
hoje em que param as coisas.
Era o alvitre mais natural; Vicente foi ao
hotel.
Quando lá chegou, ainda Delfina repousava da
viagem; mas o capitão recebeu-o tranquilo, senão alegre.
— Meu tio, disse Vicente, eu ia partir
amanhã, vinha com a mala, há pouco, quando o vi entrar aqui, e mais a prima.
— Há tanto tempo que te escrevi! observou o
velho tristemente.
— É verdade; mas eu não pude ir logo como
queria. Cresceram-se os trabalhos, e só agora... Onde está a prima?
A pergunta relativa à prima era uma
necessidade, visto que Vicente mentira por uma triste necessidade da sua
situação. O velho achou natural a pergunta e respondeu:
— Está descansando.
— Vem doente? perguntou Vicente depois de
alguns instantes.
— Vem; quero consultar um médico.
A posição do rapaz tornava-se embaraçada;
armara-se de argumentos para paliar os projetos do tio, e achava o velho a cem
léguas do assunto, evitando tocar nele.
Depois de um silêncio, que era de espinhos
para Vicente, apareceu finalmente Delfina.
Estava pálida e desfeita; via-se nela os
sinais de um sofrimento íntimo e longo. No entanto, via-se-lhe a beleza em todo
o esplendor da virgindade; e a palidez como que lhe completava as graças,
porque assim como as cores vivas são essenciais a certos tipos de mulher,
outros há cujo realce provém do descorado do rosto.
Tinha uns belos olhos negros, agora um pouco
empanados, mas ainda assim serenos e expressivos. Os cabelos que eram da mesma
cor, estavam penteados com graça, e emolduravam uma testa alta e inteligente.
Quando Delfina entrou na sala, Vicente fez um
pequeno gesto de espanto, que era não somente produzido pelo aspecto doentio da
prima, mas também pela beleza desenvolvida que ele jamais suspeitara na criança
que vira havia cinco anos.
Quanto a Delfina, não pôde conter um grito. O
pai correu para ela, e Vicente que se tinha levantado foi direito à prima e
estendeu-lhe a mão. A moça apertou-lha com força e fitou nele os seus
belíssimos olhos em que havia tudo, exprobração, agradecimento, amor.
Durou esta cena alguns segundos.
— Anda sentar-te, disse por fim o capitão à
filha.
O autor de um romance tem obrigação de
conhecer profundamente os seus personagens. Direi de Vicente, que, se ele
tivesse o coração livre, ali mesmo diria:
— Prima, aqui estou; sou seu esposo.
Quanto a mim, esta declaração valeria mais
que uma consulta do Valadão ou do Pertence.
Mas o rapaz não tinha o coração livre; para
que tais palavras lhe pudessem sair da boca, era necessário que não tivesse
dentro de si um pensamento absoluto e constante: o amor de Clara.
Delfina, porém, que, como todos os
naufragados, atirava-se à primeira ponta de rochedo, encheu-se toda com a
esperança de que finalmente o seu amor ia ter uma recompensa.
Vicente jantou lá nesse dia, entre o tio e a
prima, alegre porque era mister consolar a enferma, mas preocupado com a
situação que o acaso ou o destino lhe proporcionara.
O capitão, apesar de não crer nem esperar
nada da parte do sobrinho, pensou por um instante que era possível salvar tudo.
— Se a dúvida do rapaz (pensava ele) é não
amar a rapariga, estou que pode vir a amá-la, desde que a vir mais vezes e
habituar-se a contemplá-la. Nem tudo está perdido.
Esta disposição de espírito tornou
suportáveis as horas passadas entre os três. À noite, Vicente despediu-se,
dizendo que voltaria no dia seguinte.
Ao sair encontrou um amigo íntimo, a quem
confiava todos os fatos de sua vida, e que partilhava com Clara de sua inteira
confiança.
— Estás agora morando no Hotel de Europa?
perguntou-lhe o amigo.
— Não; vim ver meu tio e minha prima.
— Chegaram de Minas?
— Hoje mesmo.
Seguiram os dois de braço dado pela Rua do
Ouvidor, e como Vicente parecesse triste, o amigo sacudiu-lhe o braço.
— Que diabo tens tu hoje? Parece que viste
alguma bruxa?
— Correia, respondeu Vicente, estou numa
situação de espinhos.
Correia esticou o ouvido.
Vicente contou-lhe tudo. O amigo Correia
ouviu a narração atentamente e concordou com Vicente que a situação era das
mais graves que podem surgir na vida de um rapaz.
— Que me aconselhas tu?
— Diversas coisas; primeiramente o casamento...
— Isso não, atalhou Vicente.
— Nesse caso, continuou Correia, nova recusa
peremptória.
— Seria matá-la.
— Terceiro alvitre: não respondas nada, não
afirmes nada, não prometas nada. Supõe que estás feito embaixador e que o teu
governo te manda ordem de escrever uma resma de papel em notas diplomáticas que
não digam coisa nenhuma. É o caso.
— Isso é o que é difícil.
— Confesso que sim; mas se fosse fácil, tu
não vinhas aconselhar-te comigo. Vai com isto, e dir-me-ás o resultado.
— Por outro lado, disse Vicente, Clara está a
insistir comigo em favor da prima.
— Quer que te cases?
— Não, mas interessa-se tanto pela sorte da
outra, que eu tenho medo de contar-lhe a realidade.
— Não lhe contes nada, é muito melhor. Isto
de mulheres deitam tudo a perder. É capaz de fazer alguma.
Os dois amigos chegaram à Rua do Passeio, e
estando perto de casa, Correia foi tomar chá com Vicente. Clara indagou do
estado de Delfina e do resultado da entrevista. Vicente teve o cuidado de dizer
que a doença da prima parecia-lhe mais imaginária que real. Quanto aos
sentimentos por ele, não acreditava que fossem o que supusera. Não passava de
um capricho de moça.
Correia, como bom Cireneu, comentou a
exposição do amigo com algumas pilhérias relativas ao desejo que as meninas têm
de casar, e com isso acabou a noite e acabou o capítulo.
CAPÍTULO
4
O capitão Ferreira deixou o Hotel de Europa e
foi morar na Rua dos Inválidos. Ao mesmo tempo mandou chamar o médico para
tratar da filha. Não posso, porém, ocultar que o capitão confiava mais que tudo
na presença do sobrinho para o restabelecimento de Delfina; e ao mesmo tempo
contava que a moça influísse no espírito do rapaz uma boa resolução, e deste
modo tudo previa alcançado sem pau nem pedra.
Vicente não deixou de visitar frequentemente
a família; lá se demorava horas inteiras, jantava muitas vezes e retirava-se
para casa alta noite, e ao passo que deixava em casa do tio a alegria e a
satisfação, ia encontrar igual satisfação e alegria na casa dele. Clara era a
primeira a insistir com ele para que não deixasse de visitar com frequência a
casa do tio.
O desinteresse da moça, posto que magoasse o
amor-próprio do rapaz, não deixava de lhe parecer heroico. Ora, justamente
estas duas impressões contrárias constituíam da parte de Vicente a principal
força para resistir aos encantos da prima, ao sentimento de piedade que o
estado dela inspirava, e às solicitações do capitão. Clara contara com isso? É
de crer que sim, porque a ideia de perder Vicente não a mortificava nunca, e
parecia tão longe dela como um polo está do outro polo.
Uma noite, Vicente, por simples brincadeira,
disse a Clara:
— Sabes, Clara? Vou casar com a prima.
A moça empalideceu, e como o rapaz lhe visse
nos olhos duas lágrimas, prestes a cair, bebeu-as com dois beijos, e tudo
acabou bem como nas comédias.
Correia, porém, nutria alguma desconfiança de
que Vicente viesse a casar com a prima, e disse-lho francamente uma vez.
— Não, respondeu Vicente, é coisa decidida,
não me caso. E Clara... devia acaso abandonar essa pobre moça?
— É verdade que há essa dificuldade,
respondeu Correia, mas quem pode ter mão ao coração? Tua prima parece-me
furiosamente bonita. Vi-a outro dia, quando lá passei por casa dela; a mesma
doença dá-lhe um encanto novo. Sabes se podes vê-la sempre com esses olhos
frios?
— Posso.
— Duvido. Não se resiste a uma moça bonita.
Que olhar que tua prima tem!
Vicente opôs-se a todos os receios do amigo,
e a sua ternura por Clara crescia à proporção que o Correia se mostrava
receoso.
Não é que Vicente desconhecesse a influência
da beleza de Delfina. Uma noite em que lá se demorara até onze horas, saiu
dizendo consigo:
— É pena que eu não esteja livre. Delfina
seria uma excelente esposa. Que alma e que beleza! que ternura e que graça!
Estas mesmas expressões usava o moço quando
falava a Clara de sua prima; um dia, porém, ou porque quisesse mortificá-la, ou
por qualquer outro motivo, Vicente deixou de falar nesse sentido, e daí a dias
até deixou de tocar no nome de Delfina ou de coisa que lhe dissesse respeito.
Os leitores facilmente adivinham a verdade. A
doente começava a influir alguma coisa no espírito do rapaz. Era natural; não
se resiste ao influxo de uma beleza que nos ama e adoece por nós. A vaidade
interessa-se primeiro; depois o coração.
Cumpre dizer, porém, em honra da lealdade do
rapaz, que, apenas entrou a sentir essa diferença em si, resolveu cortar a
intimidade com o capitão; para ele era uma questão de honra resistir aos
encantos da amável prima.
Clara devia sentir a diferença de Vicente
pela ternura demasiada e desusados carinhos com que ele lhe falava apenas
voltava para casa. Parecia que cada vez que saía da casa da prima tinha um erro
a expiar, e fazia-o com sinceridade, porque o seu amor ainda estava todo com a
primeira mulher que soubera apoderar-se-lhe do coração.
Entretanto, Delfina ia melhorando a olhos
vistos; no fim de um mês estava completamente restituída à saúde; e a alegria,
que por tanto tempo se ausentara dela, voltou-lhe inteira e absoluta.
É que Delfina acreditava sinceramente na
possibilidade de casar com o primo. As maneiras com que este a tratava não
podiam deixar de confirmar aquela esperança, principalmente depois da certeza
que o rapaz tinha de ser amado por ela.
Também acreditava assim o capitão, que até
chegou a tocar nisso em presença da filha.
— Vicente, quando será o dia?
Delfina fitou os olhos no rapaz, e este,
surpreso com a pergunta, receoso pelo efeito de uma recusa, e mais que tudo sem
saber o que havia de dizer, respondeu:
— Talvez... breve...
A moça palpitou de alegria.
É inútil dizer que o rapaz não referiu esta
cena a Clara, mas referiu-a a Correia, que sorriu maliciosamente.
— Por que sorris? perguntou-lhe Vicente.
— Porque me anunciaste o teu casamento.
— Não creio nisso.
— Vê-lo-ás.
— Respondi aquilo por não saber o que havia
de dizer; mas afianço que não posso casar com a prima.
— Queres tu que eu me case?
— Importa-me pouco, respondeu Vicente.
— Dizes isso com um ar...
— Ora, um ar!
— Não és capaz de apresentar-me lá?
— Hoje mesmo.
— Está dito?
— Está dito.
Nessa noite, Correia foi apresentado em casa
do capitão, que o recebeu com extrema cordialidade. Delfina não simpatizou nada
com ele, e teve a franqueza de dizê-lo ao primo.
Sejamos exatos: Vicente estimou muito a
antipatia da moça.
Entretanto, achou que era comprometê-lo, se o
dissesse ao amigo. Este, porém, que tinha admirável penetração, logo no dia
seguinte, disse a Vicente:
— Tua prima antipatizou comigo.
— Não creias nisso!
— É o que te digo.
Vicente admirou a sagacidade do amigo e ao
mesmo tempo deu-se por feliz ao ver que ele lhe dava aquela notícia com a mais
perfeita indiferença.
Com efeito, Correia parecia importar-se tanto
com a antipatia de Delfina, como se importaria com a primeira camisa de Carlos
Magno, dado que não fosse amante de curiosidades históricas.
Era um caráter singular o amigo de Vicente;
parecia não ter alma, nem sentimento de espécie alguma; e entretanto, o
sobrinho do capitão tirou dele provas de verdadeira dedicação. Há muita gente
assim; capaz de sacrificar-se por outrem, fria e indiferentemente, sem nenhuma
dessas expansões que são o verdadeiro toque das grandes almas. O sentimento de
afeição não é um castelão encerrado numa torre antiga; a sua primeira
necessidade é abrir asas por esse espaço fora, comunicar-se a todo o mundo, e,
como os pássaros da floresta, segredar a todos os ecos as alegrias do seu
canto.
Correia parecia estimar igualmente a Clara,
por causa do afeto que a prendia a Vicente, e todavia nunca este viu da parte
dele a menor demonstração de semelhante estima.
Um dia teve a franqueza de dizer-lho.
Correia sorriu e respondeu:
— Estimo a vocês ambos; mas não sei que por
isso seja necessário, nem de bom gosto, andar abraçados a cada instante.
CAPÍTULO
5
O capitão sentia-se feliz.
Dia por dia, a moça ia melhorando, e a
presença de Vicente já lhe não parecia totalmente indiferente.
— O bicho começa a morder o coração do rapaz,
disse o velho.
A sua convicção era tal que chegou a marcar a
época do casamento de Vicente com Delfina. Era contar muito com o futuro; e
pela sua parte, Vicente jurava entre si que não casaria nunca com a prima. A
verdade, porém, é que já sentia alguma tristeza quando não estava em casa do
tio.
Delfina tinha a mesma confiança do pai. E os
motivos de sua confiança eram outros e mais poderosos. Era bonita, e tinha a
consciência da beleza; além disso, era completa mulher; sabia como se prende um
homem a quem se ama — não porque lho houvessem ensinado, mas simplesmente por
intuição.
Nas relações criadas na Corte, encontrou uma
amiga, moça, solteira como ela, a quem comunicava todos os pensamentos.
Júlia era o nome da outra, e tinha um
namorado também. A diferença é que com Júlia dava-se o contrário do que
acontecia a Delfina. O doutor Castrioto amava Júlia e esta não se importava com
ele, isto é, dizia que não se importava, o que é muito diferente.
É curioso transcrever aqui duas cartas de
Júlia e Delfina, cheias dessa confiança que dá a situação de duas moças
casadeiras.
A primeira carta é de Delfina e era assim:
“Meu bem,
Sonhei esta noite com ele. Sonhei que nos
casávamos, e confesso-te que tive um prazer enorme nisto. Infelizmente, foi
simples sonho.
Tanto eu, como papai, acreditamos que o
resultado de tudo será o meu casamento com o primo. Ele vem cá todas as noites,
e algumas vezes de dia também; conversamos muito, e sobretudo falo pouco,
porque gosto de ouvi-lo.
Ontem, aconteceu que, achando-nos sós,
ficamos algum tempo calados. Por fim, Vicente suspirou.
— Onde vai esse suspiro? perguntei eu.
— A parte nenhuma.
— Cuidei que ia a alguma parte.
— Eu nem sei se suspirei.
Vê tu que velhaco; suspirou e disse não saber
se havia suspirado. A conversa ficou nisto; mas eu suponho que o suspiro veio
com direção a mim. Que dizes? Tua Delfina.”
A resposta de Júlia não se fez esperar.
Dizia assim:
“Sempre és muito tola, Delfina. Pois que te
importam lá os suspiros e os amores do primo? Faze como eu com o Castrioto, que
tanto suspira por que eu o ame, quanto eu suspiro por ver-me livre dele.
Não há nada como ser solteira, minha amiga; é
a liberdade. Estes senhores pilhando-se casados fazem o diabo, e nós padecemos.
Tenho exemplos disto; e você diz: quem vê as
barbas do vizinho arder põe as suas de molho.
Eu cá já as pus...
É verdade que se papai insistir em que eu
case com o Dr. Castrioto, não terei remédio senão casar; mas com uma condição:
é que ele não há de escrever uma linha sequer. Não sabes? O Castrioto é
escritor; deu em romancista. Às vezes aparece cá em casa com uns rolos de papel
e lê aquilo tudo na sala, que é um aborrecimento, exceto para o papai que acha
que ele é um grande talento.
Será bonito, acredito; mas por escrever...
antes o Alexandre Dumas.
Vem jantar cá domingo. Dançaremos. Tua
Júlia.”
A carta de Júlia está indicando na moça um
desses espíritos galhofeiros, incapazes de tomar a vida a sério. O pobre
Castrioto, se viesse a casar com ela, faria uma grande tolice... se é que não
era ele mesmo um grande tolo, coisa que veremos pelo romance adiante.
O jantar de domingo reuniu em casa de Júlia a
família do capitão Ferreira, Vicente e Correia. Este, porém, retirou-se logo
depois do jantar, dizendo que se achava doente.
O pai de Júlia era um velho bem apessoado,
lhano, expansivo, mas com pouca instrução e nenhum gosto, razão pela qual
acreditava no talento de Castrioto.
No fim do jantar, foram todos para a sala, e
conversou-se alegremente sobre os sucessos do dia. O capitão contava anedotas;
Delfina conversava com Vicente; Castrioto suspirava a um canto. Júlia ia de um
a outro grupo, alegre e descuidada, sem dar sequer pelo namorado.
De repente, Alvarenga (era o pai da amiga de
Delfina) diz em voz alta a Castrioto:
— Dr. vamos à obra.
Castrioto levantou-se.
— O Dr. Castrioto, continuou Alvarenga, vai
regalar-nos com a leitura de um romance. É um grande talento, capitão; os seus
romances são magníficos.
— Que grande maçada! disse Júlia
aproximando-se de Delfina e Vicente.
— Olha que ele te ama! observou Delfina.
— Importa-me pouco!
— É assim tão cruel? perguntou Vicente.
— Com um maçante, sou.
— Não zombe, minha senhora, disse Vicente
sorrindo.
No entanto, Castrioto meteu a mão na
algibeira e tirou um rolo de papel. Júlia soltou um profundo suspiro; uma tia
dela, que gostava imensamente dos romances do rapaz, abriu um sorriso de
contentamento; Alvarenga sorveu uma pitada, e convidou Castrioto a sentar-se em
posição de ser ouvido por todos.
Houve grande rumor de cadeiras, de vestidos e
de sapatos. Júlia, com grande má vontade, não achava lugar capaz e agitava-se
toda. Por fim sentou-se dizendo a Delfina:
— Deixa estar que eu o curo.
Acomodaram-se todos.
Castrioto desenrolou as tiras, fato este que
produziu um calafrio em Vicente.
— Como se chama este novo romance? perguntou
Alvarenga.
— Chama-se: Os primeiros amores de um rapaz ou Os destinos escritos.
— Bonito! disse Júlia com um sorriso de
escárnio.
Castrioto não compreendeu a intenção e
agradeceu com a cabeça.
Depois tossiu e leu o que se segue:
“Aquele dia acordei cedo. Trouxe-me o moleque
à cama uma cartinha delicadamente fechada e recendendo a baunilha. Pensaram que
era de alguma dama? Não; era de meu amigo Oliveira: antes de conhecer-lhe a
letra, tinha-lhe conhecido o perfume.
A carta dizia assim:
“Adiou-se a ceia de hoje: fica para
quinta-feira. Mas não chores, temos compensação. Meu tio, o desembargador, dá
hoje uma partida e quer por força que venhas passar a noite conosco. Tanto lhe
falava em ti que o velho ficou com vontade de conhecer-te. Contamos contigo.
Adeus. Oliveira.”
Tinha eu então vinte anos. Nessa idade não se
discute o prazer; aceita-se sob todas as formas. A partida compensava a ceia.
Verdade é que a ceia tinha para mim um atrativo singular, o atrativo da
curiosidade. Até então contentava-me eu em fazer pequenas excursões à famosa
terra: aportava de manhã e fazia-me ao largo de tarde; outras vezes dava à
navegação o sentido inverso. Mas que era isso para conhecer tamanho mundo e tão
variada gente?
Afora esta curiosidade, toda infantil, a ceia
não valia para mim mais do que a partida.
Preparei-me à noite e fui à casa do
desembargador, que era na Rua dos Inválidos.
Havia pouca gente; via-se que a assembleia
tinha um caráter íntimo.
As moças orçavam por vinte, e eram todas
elegantes e bonitas. Havia alguns rapazes e poucos velhos, todos mais ou menos
aparentados com o desembargador.
Oliveira esperava por mim com ansiedade,
posto não fosse tarde.
Vendo-me entrar risonho, exclama:
— Bravo! cuidei que viesses triste.
— Por quê?
— Por causa da transferência.
— Ora!
Oliveira levou-me ao desembargador. Era um
bom velho, uma dessas velhices que indicam ter havido tranquila mocidade. O
desembargador apertou-me as mãos com efusão; disse-me que o sobrinho lhe falara
de mim por modo que lhe espicaçara a curiosidade.
— Por quê? perguntei eu sorrindo.
— Porque adivinho que o senhor é um moço.
Esta frase, que eu teria compreendido agora,
confesso que não a compreendi então. Mas sempre me pareceu que o velho me fazia
um elogio e agradeci inclinando a cabeça.
— Deixe-me apresentá-lo a estas moças.
O desembargador deu-me o braço e foi
apresentar-me primeiramente às filhas, e depois a todas as outras damas. Depois
de apresentar-me à última, voltou-se para o sobrinho, que se achava perto e
disse-lhe:
— Falta uma!
— Falta D. Helena, respondeu Oliveira. Está
tardando. Querem ver que não vem?
A Helena em questão chegou daí a meia hora
pelo braço de um velho calvo e baixinho. O velho era o pai da moça. Soubemos
então que a demora tinha sido por causa da ausência do pai, que era jurado e
nesse dia entrara no conselho que julgara um crime de estelionato, processo
célebre.
Como o desembargador me havia apresentado ao
pai e à filha, deixei que o pai narrasse ao desembargador as peripécias do
tribunal, e fui conversar com a filha e Oliveira que nesse momento tinham
passado a uma saleta, onde havia outras moças entretidas em mil
importantíssimas inutilidades.
Oliveira, inebriante de baunilha, tinha-a nos
cabelos, no lenço e nas mãos. Creio até que a tinha nas palavras. A conversa,
quando eu cheguei, versava justamente sobre o perfume favorito de Oliveira.
Afirmava este que o primeiro perfume da criação era a baunilha; uma prima dele
optava pela violeta; eu manifestei francamente a minha preferência pelo
sândalo.
Helena não dava opinião.
Como eu lhe perguntasse diretamente o que
pensava daquele conflito, respondeu-me:
— Pela minha parte gosto de todos os
perfumes; acho-os todos bons...
Estas palavras disse-as ela sorrindo, e eu
sorrindo as ouvi, ainda que já me não agradasse a universalidade do seu gosto.
Pareceu-me que ela desdenhava aquele gênero de conversa. A suspeita feriu-me os
brios, e eu entrei com ardor na defesa da opinião que havia manifestado. O
sândalo levou-me naturalmente a falar do Oriente, e creio que disse coisas
bonitas porque os ouvintes tiveram a bondade de interromper-me com
demonstrações de agrado.
Quanto a Helena, ouviu-me silenciosamente, e
como o piano, apenas eu acabara de falar, começava o prelúdio de uma quadrilha,
a única manifestação de aplauso que ela me deu foi voltar-se para Oliveira e
dizer-lhe:
— É a nossa.
Oliveira voltou-se para mim dizendo:
— És meu vis-à-vis.
Fui ver um par, e a quadrilha começou. Nisto...”
A leitura do romance foi interrompida. Júlia
tivera um ataque de nervos que durou alguns minutos; quando veio a si, estava a
moça pálida e mais interessante do que era.
Castrioto, que como autor que era, não
perdoaria a interrupção, perdoou-a à moça por ser quem era.
Quando Júlia ficou boa, todos se alegraram; e
como Delfina fosse abraçá-la, ela disse-lhe ao ouvido:
— Isto não foi ataque; foi só para acabar com
a tal leitura.
Vicente ouviu as palavras de Júlia.
— É muito cruel, disse-lhe ele; não se paga
assim a quem ama.
— Então como é? perguntou a filha de
Alvarenga.
Vicente não respondeu, mas olhou para Delfina
que nesse momento olhou para ele.
Aquele olhar decidiu o destino.
CAPÍTULO
6
Vicente comunicara a Clara todos os
incidentes de sua vida; entretanto, a pouco e pouco já não lhe contava mais o
que se passava em casa do tio.
A moça não reparou nisso ao princípio; mas o
prolongado silêncio fez-lhe entrar a suspeita no coração.
Quando ela perguntava ainda pelos amores de
Vicente com a prima, Vicente respondia que não pensasse em semelhante coisa,
mas não acrescentava mais nada.
Clara cada vez suspeitava mais.
E tinha razão.
As carícias de Vicente já não eram as mesmas;
as suas ausências eram cada vez mais frequentes. Algumas vezes saía de manhã às
sete horas e só voltava à uma da noite.
No espírito de Clara ia-se formando a
convicção de que o amor de Vicente por ela estava acabado.
A convicção completou-se numa noite em que lá
apareceu Correia.
— Já sei que Vicente não está cá, disse ele
entrando.
— É verdade, respondeu Clara, folheando o
livro em que lia quando Correia apareceu na sala.
— Há de estar na casa do tio.
E sentou-se. Houve um silêncio. Foi Clara que
o rompeu:
— Tenho pena da prima de Vicente, disse ela.
— Por quê? perguntou Correia.
— Aquele amor...
— Há de ter bom pago.
— Não zombe dela, disse Clara.
— Pelo contrário, não zombo; digo que há de
ter bom pago, porque há de vencer. O Vicente mais tarde ou mais cedo está
casado.
— Com ela?
— Salvo se for comigo.
Clara empalideceu.
— Mas que espera, você, de tudo isto, Clara?
perguntou Correia. Era natural; ser amado por uma rapariga bonita, e vê-la
todos os dias, é coisa a que se resista?
— Mas por que não me disse ele isso? perguntou
Clara com lágrimas na voz.
— Coitado! exclamou Correia, sabe Deus o que
lhe custará a ele.
Correia continuou as suas confidências deste
modo, concluindo como todos os intrigantes:
— Não diga que eu lhe falei nisto.
— Não, respondeu Clara.
Com efeito, Clara nada disse a Vicente;
apenas quando ele chegou achou-a um pouco mudada; e digo achou-a, porque esse
era o estado dela, não que ele reparasse nisso.
A indiferença do rapaz foi o pior de todos os
golpes.
No espírito de Clara o seu romance tinha chegado
ao último capítulo.
Ao começar um novo amor, Vicente nem sentia
os remorsos de ter esquecido aquela que lhe enchera os primeiros dias de
mocidade.
Egoísmo do coração humano!
A lei é fatal; o amor é isto: um sentimento
exclusivo, que nada reconhece diante de si, capaz de grandes dedicações mas
também capaz de grandes ingratidões.
Clara reconhecia-o agora.
Cuidava que a sua felicidade seria eterna, e
via finalmente que nada é eterno nas coisas humanas.
Cumpre dizer que estes primeiros desencantos se
passaram antes da cena em casa de Júlia e do olhar trocado entre Vicente e
Delfina. Aquele olhar foi a data verdadeira do amor entre os dois primos.
Quando se deu esta cena, Clara parecia
reconciliada com o destino. De triste que andara fizera-se alegre como
antigamente.
Vicente, que não havia reparado na tristeza,
reparou na alegria. Explique quem quiser o fenômeno; o certo é que foi ao
voltar a alegria da moça que ele reparou que ela andava melancólica.
Por que a súbita tristeza? por que a súbita
alegria?
A tristeza, essa explicava-a Vicente; era
naturalmente o fruto de suas prolongadas ausências. Mas a alegria súbita, sem
que ele houvesse mudado o seu procedimento, e pelo contrário, quando começava a
amar verdadeiramente a outra? Que causa teria isto?
Vicente interrogou a moça.
Interrogou não é o termo.
Sondou o terreno.
— Andas muito alegre, Clara, disse ele um dia
de manhã, indo almoçar.
— Por que não?
— Tens algum motivo?
— Que pergunta! Não tendo motivo para estar
triste, é natural que esteja alegre. É o meu estado habitual.
A resposta não satisfez o rapaz. Imaginou que
algum motivo haveria estranho à casa. Qual?
Conquanto amasse já a prima, Vicente
sentira-se mordido pelo ciúme. Mas como era um espírito fraco, incapaz de
resolver por si, consultou o amigo Correia, o qual lhe respondeu simplesmente:
— Se tens alguma suspeita, não percas a
rapariga de vista. Não te deixes enganar. Mas, para isso, é mister não andares
por fora, e isso...
— É impossível!
— Quando te casas?
Vicente sorriu e não respondeu palavra.
Nessa noite, o capitão disse ao sobrinho que
era necessário separar-se de Clara, no caso de amar Delfina, o que lhe parecia
coisa certa e definitiva.
O sobrinho corou, mas não contestou.
Separar-se de Clara! Vicente não pensara
nesta condição, aliás naturalíssima. Nesse momento, travou-se-lhe no espírito
uma grande luta. Começou a reparar que não se quebram facilmente laços tão
longamente formados.
— Devo fazê-lo, dizia ele consigo; mas terei
forças para tanto? E ela! coitadinha!
Pensando nisto, voltou para casa mais cedo; e
querendo causar uma surpresa à rapariga entrou pé ante pé na sala de visitas.
Clara estava lendo uma carta aberta sobre as
páginas de um livro.
Apenas o viu soltou um pequeno grito, e
fechou o livro com a carta dentro.
Vicente empalideceu.
Mas ela o recebeu tão amavelmente, pareceu
tão isenta de culpa, que o rapaz julgou dever mostrar-se sem nenhuma suspeita,
e rir como se nada houvesse.
Riu alegremente.
Mas nem os olhos dele nem os dela perdiam de
vista o livro fechado sobre a mesa.
Vicente quis tentar uma experiência e pôs a
mão sobre o livro olhando fixamente para Clara.
Esta empalideceu.
Não havia dúvida.
— Que tens? perguntou Vicente.
— Nada; uma dor repentina. Vai buscar-me um
pouco de água-de-colônia lá no toucador.
Vicente levantou-se, e sem deixar o livro foi
ao toucador buscar a água-de-colônia.
A presumida dor de Clara passou pouco depois
e Vicente, posto não houvesse necessidade, quis ir levar o frasco da água para
o toucador.
Quando lá chegou abriu o livro, tirou a carta
e voltou para a sala, pondo o livro em cima da mesa.
A moça respirou.
Mas quando ela abriu o livro, não achou coisa
nenhuma.
— Vicente, disse ela, tu guardaste um papel
que estava aqui?
A audácia desarmara o rapaz.
— Guardei, disse ele, tirando a carta da
algibeira, e confesso que o fiz por ter curiosidade de ver o que estavas lendo
com tanta atenção.
Abriu a carta e leu; era uma declaração, mas
em letra visivelmente disfarçada.
— Que te parece? perguntou Clara.
— De quem é esta carta?
— Não sei. Mandaram-me há pouco. Não achas
engraçado este sujeito, quem quer que é?
Vicente não respondeu nada; mas a suspeita lá
ficou como dantes.
Quem explicará todas estas inconsequências do
coração humano? Vicente, quase noivo de Delfina, teve ciúmes de Clara; o amor
passou ao segundo plano; agora, tratava-se de uma ofensa que ele supunha
aviltante.
De maneira que, não só cuidou na inevitável
separação para o seu casamento, como até começou a rarear as visitas à casa do
tio.
Debalde o capitão perguntava a Correia os
motivos da ausência do sobrinho e das curtas visitas que lhe fazia.
Correia respondia que ignorava tudo.
Às vezes a sua resposta era simplesmente
abanar a cabeça.
Delfina também recorria ao amigo de Vicente para
indagar dele, e Correia, com a discrição própria dos indiscretos, respondia com
um sorriso ou um monossílabo.
Mas quando a filha do capitão o incumbia de
alguma missão delicada, como a de ir buscar o moço, dissuadi-lo de ideias
contrárias ao casamento, que porventura ele tivesse, etc., Correia
desempenhava-se sempre por modo que conquistava a gratidão da moça.
De maneira que, um belo dia, o antipático
Correia era simplesmente o homem mais simpático do Rio de Janeiro.
Era com ele que Delfina conversava mais
vezes, por ser amigo íntimo de Vicente. Além dele, só Júlia recebia as íntimas
confidências do coração. Quanto ao pai, não as recebia todas.
Júlia, que era um verdadeiro diabrete, teve
um dia a desastrosa ideia de dizer a Delfina:
— Admira-se esse amor por teu primo!
— Por quê? perguntou a moça.
— Aparece tão poucas vezes!
— Sim, há dias. Naturalmente tem que fazer;
mas que tem isso? Eu sei que ele me ama.
— Não creio.
— Por quê?
— Porque se te amasse não deixaria de estar
ao pé de ti, adivinhar os teus desejos, obedecer-te em tudo como, por exemplo,
o Correia...
— O Correia?
— Viste algum rapaz mais atencioso que ele?
Quem não soubesse, pensaria que o noivo era ele e não esse fugitivo Vicente...
Por que te não casas com o Correia?
— Credo! exclamou Delfina.
— Por que não? É repugnante?
— Pelo contrário, é um belo rapaz... mas...
— Mas...
— Eu amo ao outro.
— Isso de amar o outro, quando o outro não se
importa contigo... é tolice.
Quando nessa noite Correia apareceu em casa
do capitão, as primeiras palavras que proferiu foram que Vicente não podia vir.
Delfina ficou triste.
Mas Correia tratou-a com todas as atenções,
procurou distraí-la com tanta delicadeza, que a rapariga reparou então no que
Júlia lhe havia dito.
Havia com efeito nas maneiras e na
assiduidade de Correia alguma coisa que contrastava com a ausência e o proceder
incompreensível de Vivente.
— Quem sabe, pensou Delfina, se ele não me
ama?
Era preciso que a moça estivesse muito
absorvida no amor por Vicente, para não reparar nisso, caso fosse exato o amor
de Correia.
Mas parece que era, ou parecia sê-lo, visto
que ela assim se convenceu depois de um exame de dois dias.
É impossível que uma mulher, nas condições de
Delfina, tenha ódio a um homem só pelo crime de amá-la.
É crime que se perdoa.
Delfina perdoou ao rapaz.
— Mas não basta o perdão, disse-lhe Júlia
quando ela lhe falou a respeito de Correia.
— Então que mais? perguntou Delfina.
— É preciso amá-lo.
— Estás tola!
Vicente continuava a ir à casa do tio, mas
sempre triste e preocupado; em casa dele sentia-se o mesmo. De Roma chorava
Tibur; de Tibur chorava Roma.
A preocupação do rapaz, as suas frequentes
distrações, as prolongadas ausências, tudo isso foram outras tantas causas de
esfriamento entre ele e Delfina. A moça sonhara de longe outro primo; aquele
saíra-lhe um tanto fantástico, já desvelado, já esquecido, sem estabilidade
nenhuma.
Ao lado dele, Correia sempre pressuroso e
delicado, pronto sempre para adivinhar-lhe os pensamentos. A comparação não podia
deixar de ser contrária ao primo.
Em suma, no fim de dois meses estava
entabulado o mais formidável namoro entre Correia e Delfina.
Aqui, o leitor há de ficar admirado de ver
uma moça que quase morre de amores por um rapaz, apaixonar-se rapidamente por
outro.
Que quer? A coisa passou-se assim; eu estou
contando a história de pessoas que conheço, não acrescento nem suprimo nada.
CAPÍTULO
7
O que se terá passado entre Vicente e Clara?
As suspeitas de Vicente não tiveram para
alimentar-se nenhum acontecimento positivo; mas a verdade é que continuavam a
existir no espírito dele, e as reiteradas carícias da moça longe de dissuadi-lo
mais o confirmavam.
Quando se encontrava com Correia, este sempre
lhe perguntava:
— E Clara?
— Está boa.
— Estão bem vocês?
— Assim, assim...
— Continuam as tuas suspeitas...
— Infelizmente.
Correia suspirava e respondia:
— Isto de mulheres!...
Apertava a mão de Vicente com ar de homem que
dá pêsames e retirava-se.
Vicente, dedicado, terno, meigo no amor, era
brutal no ciúme. Clara sentia-o agora. Longe de receber as suas carícias com
boa cara, Vicente maltratava a rapariga com palavras duras e inconvenientes.
O menor gesto de Clara era para ele objeto de
suspeita; um sorriso à janela, um recado a alguma amiga, um papel que lesse,
tudo enfim lhe parecia sintoma de outro amor estranho ao seu.
A pouco e pouco este procedimento de Vicente
foi tornando o coração de Clara mais indiferente ao amor dele.
Mas a verdade é que os ciúmes de Vicente
teriam causado profunda alegria na alma de Clara, porque eram prova cabal de
ter cessado o amor pela prima, se não fosse uma circunstância importante do
romance, a saber: que a carta, a célebre carta que a moça estava lendo na noite
em que Vicente entrou repentinamente em casa, essa carta era justamente uma
declaração de amor.
A pessoa que a escrevera tinha escrito outras
mais que chegaram às mãos de Clara, a despeito da extrema vigilância de
Vicente.
Clara sentia-se presa a outro pelos mesmos
laços que a prenderam a Vicente.
Este tinha apenas o amigo Correia com quem
desabafar as suas mágoas. Ora, Correia, à noite, era sempre encontrado em casa
do capitão, de maneira que muitas vezes Vicente lá ia com o único fim de ver
Correia.
E tanto não o dissimulava que algumas noites
a sua visita limitava-se a conversar uma larga meia hora com Correia e sair
pouco depois.
O conselho de Correia era que convinha
redobrar de vigilância.
O capitão Ferreira não só notou as ausências
prolongadas e as curtas visitas de Vicente, mas também reparou nas visitas
multiplicadas e longas de Correia.
O velho estimava muito o sobrinho e quisera
favorecê-lo, cedendo aos desejos da filha; mas, desde que reparou no namoro de
Delfina, entendeu que convinha auxiliá-lo, a fim de concluir depressa um casamento
que, entre outras felicidades, tinha a de fazê-lo voltar à fazenda.
Por sua parte, Júlia intercedia em favor dos
namorados, e o velho capitão, que gostava da moça, prometia-lhe tudo quanto
esta lhe pedia.
Os amores de Correia e Delfina eram definitivos.
Correia uma noite perguntou positivamente a Delfina se podia ir pedi-la ao pai.
Ela respondeu que sim.
Quando Júlia soube disso bateu palmas de
contente.
— Mas por que estás contente agora, e não
estavas quando se tratava de casar-me com o Vicente?
— Porque este implorou o teu amor; e eras tu
quem imploravas o do outro.
— Só por isso?
— Só.
— Criança!
— E a prova é que eu estou disposta a
consentir que o Castrioto peça a minha mão. Já implorou bastante.
Júlia assim o fez, e eu deixo à imaginação
dos leitores calcular a alegria do fecundo romancista.
— Ah! disse ele, isto vai dar-me assunto para
umas bonitas páginas!
— Menos isso, disse Júlia. Casará comigo se
não escrever romances.
— Mas, se é uma vocação! replicou Castrioto.
— Ah! disse Júlia, o senhor ama perfeitamente
bem, mas escreve perfeitamente mal!
Assentado esse ponto, Castrioto pediu a mão
de Júlia que lhe foi concedida imediatamente.
Nesse dia o nosso romancista não jantou.
CAPÍTULO
8
O leitor já há de ter notado o procedimento
ambíguo e obscuro de Correia: ora animava o namoro de Delfina e Vicente; ora
aconselhava ao amigo que não perdesse Clara de vista.
Quando estava com Clara, lançava-lhe no
espírito o gérmen da suspeita.
Finalmente, por vontade ou não, fizera com
que Delfina se apaixonasse por ele; e um belo dia resolveu ir pedi-la ao pai.
Eu podia dispensar-me de dar as razões deste
procedimento do rapaz. Não era ele amigo de Vicente? A utilidade de um amigo,
em geral, não é outra. Entretanto, convém dar dois motivos capitais.
O primeiro era a riqueza de Delfina, herdeira
única do capitão Ferreira; a outra era uma ofensa praticada por Vicente contra
a pessoa de Correia.
Ofensa grave, questão de honra? Não; uma
simples ofensa de amor-próprio. Correia nunca lha perdoou. O momento era azado
para vingar-se.
Quando Correia pediu ao capitão a mão de
Delfina, este não se mostrou surpreso; adivinhara o amor dos dois, e, visto que
a filha se dispunha a casar com o outro, abandonou a causa do sobrinho, que
aliás não o interessava.
— Ela gosta do senhor, disse o capitão.
— Não sei.
— Gosta que eu sei. Pela minha parte não me
oponho; casem-se e sejam felizes.
Unicamente, para aceder à fórmula, mandou
chamar a filha e declarou-lhe o pedido que Correia lhe fizera. A menina baixou
os olhos; é do programa; e murmurou um sim tão sumido que parecia não vir de
dentro d’alma quando não vinha doutra parte.
— Meu caro genro, disse o capitão
sentenciosamente, guardado está o bocado para quem o há de comer. Vim à corte
para que Delfina casasse com Vicente, e vou para a roça com o genro que não
esperava nem conhecia. Digo isto porque eu volto para a roça e não posso
separar-me de Delfina.
— Acompanhá-lo-ei, respondeu Correia.
O capitão achou conveniente participar a
Vicente o casamento da filha, mas desde logo viu o que havia de delicado
naquilo, não porque cuidasse ferir-lhe o coração, já livre de uma momentânea
impressão, mas porque sempre lhe seria ferir o amor-próprio.
Havia três dias que Vicente não aparecia.
— Ia escrever-te, disse o capitão.
— Por quê?
— Dar-te uma notícia de que te vais admirar.
— Qual?
— Delfina casa-se.
— A prima?
— Sim.
Houve um pequeno silêncio; a notícia abalou o
rapaz, que ainda gostava da moça, apesar dos ciúmes por Clara.
O velho esperou alguma observação por parte
de Vicente, e vendo que ela não aparecia, continuou:
— É verdade, casa-se daqui a dois meses.
— Com quem? perguntou Vicente.
— Com o Correia.
Quando Vicente perguntou pelo noivo de
Delfina, já o desconfiara, por se lembrar de que uma noite reparara em certos
olhares trocados entre os dois.
Mas a declaração do tio não deixou de o
abalar profundamente; um pouco de amor e um pouco de despeito causaram essa
impressão.
A conversa ficou neste ponto; Vicente saiu.
Compreende-se a situação do rapaz.
Quando saiu da casa do tio, mil ideias lhe
tumultuavam na cabeça. Queria ir brigar com o rival, reclamar de Delfina a
promessa tácita que lhe fizera, mil projetos, todos mais extravagantes uns que
outros.
Na posição em que se achava, o silêncio era a
melhor solução. Tudo mais era ridículo.
Mas o despeito é um mau conselheiro.
Agitado por esses sentimentos, entrou Vicente
em casa, onde ao menos não encontrava o amor de Clara.
A moça com efeito estava cada vez mais fria e
indiferente ao amor de Vicente. Não se alegrava com as suas alegrias, nem se
entristecia com as suas tristezas.
Vicente passou uma noite de desespero.
Preparava-se entretanto o casamento.
Vicente achou que não devia voltar à casa do
tio, nem procurar o feliz rival. Mas oito dias depois de saber oficialmente do
casamento de Delfina, recebeu ele de Correia a seguinte carta:
Meu Vicente,
Tenho hesitado em participar-te uma notícia
de que aliás já estás inteirado; caso-me com tua prima. Eu nunca teria pensado
em semelhante coisa, se não visse que tu, depois de um ligeiro namoro, ficaste
indiferente ao destino da moça.
É claro que já te não importas com ela.
O fato de não a amares abriu a porta ao meu
coração, que desde muito se sentia impressionado.
Amamo-nos ambos, e o casamento será daqui a
cinquenta dias.
Espero que o aproves.
Já era teu amigo; agora fico sendo teu
parente.
Não precisava isto para apertar os laços de
amizade que nos unem.
— Teu Correia.
Vicente leu pasmado esta carta em que a
audácia da hipocrisia não podia ir mais longe.
Não respondeu.
— Deste modo, pensou Vicente, ele
compreenderá que o desprezo e virá talvez pedir-me uma explicação.
Nisto enganou-se o rapaz.
Correia não pediria explicações, nem esperava
resposta à carta. A carta era mais um ato de insolência que de hipocrisia. O
rapaz queria machucar completamente o amigo.
Vicente esperou debalde uma visita de
Correia.
A indiferença exasperou-o ainda mais.
Acrescente-se a isto a situação dele em
relação a Clara, que era cada vez pior. Dos arrufos tinham passado às grandes
rixas, e a última fora revestida de graves circunstâncias.
Chegou finalmente o dia do casamento de
Delfina.
Júlia escolheu também esse dia para casar-se.
Os dois casamentos se fizeram na mesma
igreja.
Estas circunstâncias, além de outras,
aproximaram Correia de Castrioto. Os dois noivos trataram juntos dos
preparativos da festa dupla em que eles eram heróis.
Na véspera do casamento, Castrioto foi dormir
em casa de Correia.
— Conversemos das nossas noivas, disse
Correia ao romancista.
— Apoiado, respondeu este.
Com efeito, lá se apresentou às dez horas,
depois de sair da casa de Alvarenga, onde se despedira da namorada pela última
vez, para cumprimentá-la no dia seguinte como noiva.
— Com que então amanhã, disse Correia,
estamos casados.
— É verdade, respondeu Castrioto.
— Ainda me parece um sonho.
— E a mim! Pois há seis meses que namoro esta
moça sem esperança de conseguir nada. O senhor é que andou depressa. Tão feliz
não fui eu, apesar dos meus esforços.
— É verdade; amamo-nos depressa; e muito.
Quer que lhe diga? É um pouco esquisito isto de dormir solteiro e acordar
noivo. Que lhe parece?
— É verdade, respondeu Castrioto, em voz
surda.
— Que tem, amigo? Parece que isso lhe traz ideias
sombrias... Vejo-o pensativo... Que tem?
Depois de algum silêncio Castrioto respondeu:
— Eu lhe digo. Minha noiva casa-se comigo
mediante uma condição.
— Uma condição?
— Dolorosa.
— Meu Deus! que será?
— A de não escrever mais romances.
— Oh! mas parece que a noiva vale a condição,
disse Correia sustando uma gargalhada.
— Vale, respondeu Castrioto, e por isso
aceitei-a.
— E depois lá para diante...
— Não; aceitei a condição, hei de cumpri-la.
E é por isso que eu, nesta hora solene em que me despeço da vida de solteiro,
quero ler-lhe o meu último romance.
Dizendo isto, Castrioto tirou do bolso um
formidável rolo de papel, cujo aspecto fez empalidecer o hóspede.
Batiam onze horas.
A leitura do rolo não levava menos de duas
horas.
Correia achou-se num destes momentos supremos
em que toda a coragem é necessária ao homem.
Mas de que valia a maior coragem deste mundo
contra um mau escritor que está disposto a ler uma obra?
Castrioto desenrolou o romance, dizendo:
— O título deste é: Os perigos do amor ou a casa misteriosa.
Correia não podia escapar ao perigo da
leitura.
Entretanto, para servi-lo, pediu licença a
Castrioto para pôr-se à fresca e deitar-se no sofá.
Feito isto, deu sinal a Castrioto para
começar.
O romancista tossiu e entrou a ler o romance.
Quando acabou o primeiro capítulo, voltou-se
para Correia e perguntou-lhe:
— Que lhe parece este capítulo?
— Excelente, respondeu Correia.
Começou o segundo capítulo com entusiasmo.
— Que lhe parece este capítulo?
Nenhuma resposta.
Castrioto aproximou-se do hóspede; dormia a
sono solto.
— Miserável! disse o romancista, indo
deitar-se na cama de Correia.
CAPÍTULO
9
O dia seguinte era o grande dia.
Para os noivos levantou-se o sol como nunca;
para Vicente jamais a luz do sol lhe pareceu tão irônica e zombeteira.
A felicidade de Correia aumentava o despeito
do rapaz e dava maiores proporções ao desdém com que o rival o tratava.
Por compensação, aliás fraca em tais
circunstâncias — Clara mostrava-se nesse dia mais solícita e amável que nunca.
Acordou cantando e rindo. Com o humor da rapariga diminuiu um pouco o
aborrecimento de Vicente.
Vicente resolveu não sair nesse dia, e
entregar-se todo à companhia de Clara. Mas, de repente, pareceu-lhe que a
alegria da moça era um insulto ao seu despeito, imaginou que ela zombara dele.
Disse-lho.
Clara ouviu a censura com altivez e silêncio.
Depois sorrindo desdenhosamente:
— És um extravagante...
Vicente arrependeu-se; quis pedir perdão à
moça da suspeita, mas isso seria complicar o ridículo da situação.
Preferiu calar-se.
— Afinal de contas, disse ele, que me importa
a mim o casamento? Não casei porque não quis...
E atirou-se a um livro para ler.
Não leu; folheou páginas conduzindo os olhos
maquinalmente.
Fechou o livro.
Acendeu dois charutos e apagou-os logo.
Pegou em outro livro e acendeu outro charuto,
e repetiria a cena se não viesse o almoço dar-lhe uma distração.
Ao almoço mostrou-se alegre.
— Sabes que estou com grande apetite? disse
ele a Clara.
— Sim?
— É verdade!
— Por quê?
— Eu sei lá! É porque estou feliz.
— Ah!
— Feliz, continuou Vicente, porque depois de
tantos trabalhos estou ao pé de ti, e só a ti pertenço.
A moça sorriu.
— Duvidas? perguntou ele.
— Não duvido.
Vicente continuou:
— Confesso-te que durante algum tempo estive
quase obedecendo ao tio, tais eram as insistências dele para que eu me casasse
com a deslambida da prima. Felizmente ela namorou-se do outro; estou livre.
— Olha que rompes o guardanapo...
Vicente com efeito dera grande puxão no
guardanapo...
A tranquilidade de Clara contrastava com a
agitação de Vicente, e era essa tranquilidade, um pouco cômica, que o
despeitava ainda mais.
O dia passou-se do mesmo modo.
Depois de jantar Vicente dispôs-se a dormir.
— Dormir! exclamou Clara. Há de fazer-te mal.
— Qual!
— Olha, vai dar um passeio; é melhor...
— Queres ver-me pelas costas?
— Se cuidas que é isso, fica.
— Estou brincando.
Vicente estava morto por sair.
Ao chegar à rua fez mil projetos. O primeiro
foi ir à casa do tio; mas arrependeu-se logo, antevendo o ridículo da cena.
Achou melhor ir a Botafogo.
Já ia entrar num tílburi, quando o projeto
lhe pareceu insuficiente.
— Nada; é melhor ir à igreja; assistirei ao
casamento, e ameaçarei o Correia; porque aquele patife há de pagar-me!
Encaminhou-se para a freguesia de Santo
Antônio, mas parou no caminho.
— Que irei lá fazer?
Nestas alternativas escoou-se a hora.
À noite encaminhou-se para a Rua dos
Inválidos, onde morava o tio, e logo de longe viu a casa iluminada.
Vicente teve um movimento de furor; levantou
o punho fechado e atirou à rua o chapéu de um sujeito que passava.
— Maluco!
Vicente, que estava desesperado por
descarregar em alguém a raiva que tinha dentro de si, voltou-se para o sujeito
e perguntou-lhe a quem dirigia aquele epíteto.
— Ao senhor! respondeu o indivíduo.
Vicente agarrou-lhe a gola da casaca, e já
fervia o soco quando algumas pessoas intervieram e os separaram.
Apaziguado o conflito e dadas as explicações,
seguiu Vicente pela rua adiante e deu acordo de si em frente da casa do tio.
A casa estava cheia.
De longe viu sentados em um sofá Correia e
Delfina. A moça estava radiante de beleza.
Vicente mordeu o lábio até deitar sangue.
Contemplou aquela cena durante alguns
instantes e seguiu adiante absorto em suas meditações.
Justamente na ocasião em que principiou ele a
andar, bateu-lhe em cheio a luz de um lampião, e Correia disse baixinho à
noiva:
— O primo passou agora ali.
— Deveras? perguntou ela.
— Veio ver-nos.
— Vê um par feliz, disse a moça.
— Felicíssimo! exclamou Correia.
A festa do casamento foi esplêndida; durou
até alta noite.
Vicente não quis saber mais nada; dirigiu-se
para casa.
Ia triste, abatido, envergonhado. O pior mal
era não poder atirar a culpa para cima de ninguém: o culpado era ele.
Entrou em casa pelas dez horas da noite.
Contra o costume, Clara não o esperava na
sala, posto houvesse luz.
Vicente vinha morto por cair-lhe aos pés e
dizer-lhe:
— Sou teu eternamente, porque tu és a única
mulher que me tiveste amor!
Não a encontrando na sala, foi à alcova e não
a viu. Chamou e ninguém lhe apareceu.
Andou a casa toda e não viu ninguém.
Voltou à sala de visitas e achou um bilhete,
assim concebido:
“Meu caro, não sirvo para irmã de caridade de
corações aflitos. Viva!”
Deixo ao espírito do leitor o cuidado de
imaginar o furor de Vicente; de um só lance perdera tudo.
Um ano depois as situações dos personagens
deste romance eram as seguintes:
Correia, a mulher e o sogro estavam na
fazenda; todos felizes. O capitão por ver a filha casada; a filha por amar o
marido; e Correia porque, tendo alcançado a desejada fortuna, pagara-a com ser
bom marido.
Júlia e Castrioto também eram felizes; neste
casal o marido era governado pela mulher que se tornara uma rainha em casa. O
único desafogo que o marido tinha era escrever furtivamente alguns romances e
colaborar num jornalzinho literário que se chamava: O Girassol.
Quanto a Vicente, julgando a regra pelas
exceções, e lançando à conta de todos as culpas suas, não queria mais amigos
nem amores. Escrevia numa casa comercial, e vivia como um anacoreta.
Ultimamente consta que tenciona casar com uma velha... de duzentos contos.
Um amigo, que o encontrou, interrogou-o a
esse respeito.
— É verdade, respondeu ele, creio que se
efetua o casamento.
— Mas uma velha...
— É melhor; é a hipótese de ser feliz, porque
as velhas têm uma fidelidade incomparável e sem exemplo.
— Qual?
— A fidelidade da ruína.
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