Neda
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Manhãzinha.
A sala, de azuladas paredes seminuas, estava
pobremente mobiliada: era no saguão da casa, e as duas mulheres entraram às
tontas, até se abrirem de par em par as gelosias.
Saul, de Neda esposo, ficara a dormir na
alcova.
E Neda, abismada com a indiferença dele que
apenas lhe não dirigia um monossílabo desde a hora do fato, compreendeu logo
que Dona Loura, a sua mãe, era uma intérprete das indisposições do genro...
Num canapé, as duas mulheres, Dona Loura,
arcaica nas suas vestias de capote e turbante, e Neda, deliciosamente matutina
num roupão branco que descansava, “sans dessous”, sobre a finíssima camiseta de
cambraias, — sentaram-se, afundando em côncavos a palha flácida do cansado
móvel...
***
— Esperava-te,
mamã, qualquer das horas. Quando vejo Saul levando-me entre dentes e indisposto
como um burguês dispéptico, silencioso como uma esfinge e entristecido como um
beato sem almoço, adivinho logo que vens por aí como a mensageira da paz. E ele
foi procurar-te ontem à tarde...
— Exatamente.
— Previ
tudo isto. Há cinco dias que nós não falamos, e, pensando-o na rua, ontem, vim
ter aqui. Foi quando topei com ele, sentado naquela cadeira, lendo a Bíblia, ou
folheando-a, apenas... Vendo-o, assustei-me e não contive um gritinho de susto.
Mas tornei imediatamente sobre os meus passos. Há quatro anos que somos casados
e nunca passamos dois meses sem uma rusga. É sempre ele quem as promove com um
ressaibo de mal-entendido ciúme. Aceito sempre o seu rompimento e nunca lhe dei
a honra de capitular nas hostilidades. Quando elas são de nonada, aqui mesmo se
resolvem; mas, quando avultam como agora, ele te vai buscar como intercessora.
Já sei que vamos ter, como sempre, uma crise de amorosidades que me enfastiam.
Lastimo é não conceber um filho desse homem para o embeiçar pela nova criatura
e sentir-me menos jungida às suas intemperanças de... mal-educado! às vezes,
chego a ter nojo do senhor meu marido...
— Que
blasfêmia, Neda! Dizes isto do teu esposo com um sangue frio que me pasma...
— Devias esperar
isto. Casei-me contra a minha vontade ao depois de ter o assédio do seu amor
por mais de cinco anos. Tudo inventei para que um tal matrimônio não se
fizesse. Por último espalhei, e fiz conhecer-se em casa, por torna-viagem, a
mentira de que Saul é um tuberculoso. Tanto mais eu o aborrecia, quanto a
senhora e o papá intervinham, patrocinando a causa do moço platônico. Dá-me, na
verdade, um insistente desejo de rir muito quando lembro os idealismos dele,
seguindo a minha sombra, porque nunca lhe deixei o direito de enfrentar-se
comigo em parte alguma... Expus-lhe sempre que sonhos não me satisfaziam, nem
eram para o meu temperamento homens vaporosos, poetas e doutores... Movi-lhe
intensa guerra, apaixonando-me por Frederico Stöltze. Está! Com este provavelmente
eu teria sido bem casada. O pobre “alemãozinho” levou o caso muito a sério e
casou-se, logo que eu o abandonei, com uma defeituosa... Foi um despique, não
há a menor dúvida, mas quem saiu perdendo foi ele. Saul é um temperamento de
foca...
— Respeita
o teu marido, minha filha!
— Pois
não é, mamã?
— Essas
coisas não se devem dizer...
— Não
tratarei de ocultar o sol com a mão. Já disse e é mesmo: um temperamento de
foca. Só quer hibernar sobre os livros, diante dos quais se abespinha como o
animal sobre o gelo. Eu, porém, quero muito sol, muita luz, muito calor, muita
atividade... Mamã, o que vocês velhos veem no casamento é o interesse de
colocar as filhas, porque ficando velhos receiam que nos tornemos muito sós no
mundo. Por isso acontecem destas, casamo-nos com a vontade dos papás encarnada
na figura de um homem que não é a correspondência de nosso instinto. Olha! Não
intervirei nunca no casamento de ninguém: cada qual cometa a sua doidice como
quiser, e, se escolher um lorpa como Saul, arrependa-se de si mesmo e não me
culpe a mim.
— Tu vês
no homem uma excitação, Neda, quando devias ver uma satisfação.
— Deixasses
eu escolher como tivesse querido, e estarias livre hoje dessas trabalheiras de
paz... Saul, antes de meu marido ser, sofreu toda a minha repulsa. Casada fui
tolerante. Ele, no entanto, não sabe aproveitar-se de minha tolerância e quer
subserviência, servidão, ou coisa semelhante... Está enganado! Devias ter
sancionado a minha repulsa logo de princípio. Lembras-te do convescote dado aos
chilenos, nas Salinas? Tu não foste, e Saul, que era apenas meu pretendente sem
a menor esperança, moveu contra mim uma intriga terrorosa, porque viu, no
campo, o primeiro tenente Santander amarrar os cordéis de minha botina que
estavam dificultando-me o andar. Deves recordar-te de como energicamente o
reprimendei, quando soube que lhe cabia a autoria do contado... Note-se que era
apenas um pretendente, como muitos havia, todos sugestionados pela minha beleza
pouco comum neste bairro de mulheres feias. Afinal, mamã, que te disse ele
desta vez?
— Saul
compreende o amor como uma extasia, minha queridinha, e tu o compreendes como
um devaneio. Isto é próprio para as meninas. Tu te esqueces, e nisto eu lhe dou
razão, que és uma senhora escrava da moral esponsalícia. Contou-me o teu marido
um fato em que ele te surpreendeu. Realmente, se as coisas se passaram como
podem ser supostas, e ele não quer crer, tu andaste mal.
— Tu o
ouviste, ele contou o acontecido a seu jeito... Ouve, agora, como tudo se
deu...
— E dispensável
Neda. O passado está passado. O que é preciso é que não dês lugares a aleives e
que poupes os amuos. A alma dos homens também caleja. Os amuos fazem pequenos
calos, mas tempo virá em que, calejada a alma, o amuo será definitivo.
— Que
teria isso?
— Um
escândalo, minha filha!
— Para
adquirir a minha liberdade mamã, que tu sacrificaste, eu não me pouparei a um
grande escândalo.
— Toma
juízo, doidinha. É preciso acabares com estas zangas e receberes o teu marido
como o teu senhor...
— Hein?...
Não me zangarás, mamã, podes ridicularizar-me como entenderes... Não me darei
por achada.
— Não
promovo senão o teu bem. Resolve a crise e sê... mulher de teu marido.
— Já
estás julgando o feito?
— Tu tens
toda a razão, ele tem igualmente toda a razão. Harmonizem-se e sejam felizes.
— Pareces-me
uma juíza a Salomão, com a diferença de que o rei hebreu ouvia ambas as partes
em conflito, e tu julgas com a audiência de uma só...
— Interpretas
muito mal o meu gênio.
— Não te
interessa conheceres a injustiça de que sou acusada pelo Sr. Meu marido?
— Fala,
minha filha! Mas tem a certeza de que, fosse qual fosse a acusação, eu nunca
seria contra ti.
— Obrigada,
mamã! Quero, entretanto, justiça, e que, como Saul, não julgues pelas
aparências. Daria a vida para saber como ele te referiu o que se passou...
— Deixa o
que ele me disse. Narra o que tu sabes...
— Pois
bem! Na terça-feira, mamã, de combinação com Saul, resolvi passar uma temporada
num arrabalde. E, devidamente autorizada por ele que me falou pelo telefone,
fui à Barra correr uma casinha vaga e que nos serviria. De caminho,
encontrei-me com o dr. Eduardo que, ao depois de saber ao que eu ia, daquele
modo desacompanhada, teve a gentileza de oferecer-se-me para o serviço de abrir
e fechar portas. Aceitei e foi ele quem tomou as chaves na taverna da
esquina... Vê tu!... Não fosse ele e teria eu de entrar numa taverna, sozinha,
arriscada a ouvir qualquer indecência... Ao depois, o dr. Eduardo foi quem
abriu a porta... Como eu me ataria de luvas de camurça para fazer essa diligência?...
Umas chaves muito pouco asseadas... Corremos o primeiro andar da casa, e,
quando passamos ao sótão, o meu gentil cavalheiro se lembrou de, por segurança,
fechar por dentro a porta da rua... Subimos. Mal chegávamos em cima, começaram
de bater numa porta. Poderia eu suspeitar que o meu marido, tendo ordenado que
eu fosse, porque ele não teria oportunidade de acompanhar-me, logo depois
resolvesse o contrário, e estivesse a bater na porta da rua? E foi por um acaso
que nós o vimos. Chegamos inesperadamente a uma janela do sótão e percebemos
que era ele quem batia. O dr. Eduardo, desculpando-se por já ter eu cavalheiro,
despediu-se de mim, desceu as escadas, e, quando abria a porta, foi
insolentemente agredido por Saul, que lhe negou a mão para o cumprimento do
estilo... Só tu vendo, mamã, a fúria com que o Sr. Meu esposo investiu contra
mim! Felizmente, desafiado pela minha calma, ele não teve ânimo para iterar o
qualificativo mau com que me mimoseou. Dei-lhe as costas e, se ele quis, fechou
sozinho a casa e veio só...
— Devias
ter evitado tudo isto, Neda.
— Evitado,
como?
— Não
aquiescendo à companhia de um homem de má fama, como é o dr. Eduardo.
— Adivinhasse
eu que ele viajaria para a Barra naquele mesmo bonde em que eu fui... Hora de
trabalhos na cidade...
— Recusasses
os favores oferecidos.
— Ora,
mamã! Deixa-te de coisas! Qual é a mulher que se anima à grosseria de recusar
gentilezas de um moço de distinto trato?...
— Conforme
o renome desse moço.
— Tem má
fama o dr. Eduardo?
— Não
sei, não. Dizem.
— Se tem
má fama, tem maus costumes. E como é que Saul, tão zeloso de sua honra, admite,
no seu convívio e nas suas recepções, um homem mal visto? Penso que os
frequentadores de nossos salões, os habitués de nossa intimidade, sejam pessoas
dignas de acompanhar-me a um ponto qualquer, e, se não fosse assim, a primeira
privação deles, seria a do nosso convívio...
— Neste
ponto és razoável, sou eu a primeira a reconhecer... Mas, Saul referiu-me que
estavas sem chapéu...
— De
fato. Ao depois que o dr. Eduardo se despediu, esbarrei na telha van do sótão,
e enchi as flores do chapéu de teias... Sabendo que o Sr. Meu marido ali estava
para auxiliar a reposição, tirei o chapéu e asseei prestamente...
— Diz
mais ele que estavas empurpurada e que te confundiste com a sua chegada, ao
ponto de não saberes repor o chapéu...
— Saul é
um mentiroso.
— Não te
zangues, Neda.
— Injuriou-me.
— Não dês
importância a isto e resolve-te a ceita-lo pacificamente...
— E ele o
quer?
— Por que
perguntas?
— Porque
tão honrado ele não deveria aceitar mais a coabitação da esposa desonesta.
— Não
deves dizer assim, minha filha!
— Aceita-me
ele?
— Que
tolice, Neda!
— Mamã,
Saul deveria ter agora a minha repulsa definitiva, e não a faço em atenção aos
teus bons ofícios...
— Fazes
muito bem.
— Lá vem
ele descendo...
— Trata-o
bem, minha queridinha! Um lar que não tem esposo...
— Desculpa-me,
mamã: só agora reparo que estou muito à vontade para nos encontrarmos os
três...
***
Arrepanhando, então, o belo roupão
desabotoado, por cujas rendas e decotes se viam as carnes lucíferas de Neda, a
mulher de Saul se escapuliu, desenhando escorreita o seu impecável corpinho de
escultura grega...
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