Natal no mar
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O capitão
tinha dito na véspera que se o tempo se aguentasse e o vento fosse
favorável, por aquela semana, e Nossa Senhora os não desamparasse, iriam passar
o Natal na sua freguesia, no descanso da viagem. Os marinheiros, ocupados, ao
momento, em remendar as velas, à proa, sobre o castelo abaulado, sorriram, por
instantes, na doçura daquelas palavras, que lhes alegrava a alma, como um
prenúncio suave.
E um rapaz
moreno, de vinte anos mais ou menos, que estava sentado à gaiúta, as pernas
cruzadas, a fronte pendida sob o boné de pala larga, afagado pelas densas
madeixas escuras do seu cabelo anelado, tendo sobre os joelhos uma lousa, onde
fazia o cálculo da última singradura andada, ergueu docemente os grandes olhos
negros, cheios de um brilho nostálgico, fixou rápido o capitão, o timoneiro
robusto, pousando-os longamente, em seguida, sobre o mar azulado. Depois,
inclinando outra vez a cabeça, prosseguiu mudamente no cálculo, embranquecendo
a pedra de números, que o lápis abria em bordados. Absorvido na tarefa, só se
interrompia algumas vezes para folhear as tábuas
náuticas. Suspirava então, de leve, como numa abafada saudade.
Levou assim
muito tempo, até que o capitão, voltando da popa, onde estivera a deitar a barquinha, perguntou-lhe com a sua voz
grossa e áspera:
— Então,
quantas milhas andou o patacho?
— Noventa,
fez ele de pronto, erguendo o rosto queimado, onde os olhos fulgiam, acesos
ainda num clarão de saudade.
A face
carregada do velho marujo iluminou-se então duma expansão de bondade, e sua
boca alentada, de finos lábios enérgicos, descerrou-se num sorriso de júbilo,
sobre os belos dentes alvos. Achegando-se da gaiúta, onde o rapaz, já de pé,
pegava as Tábuas e a pedra para
descer para a câmara, pousou-lhe a mão sobre o ombro, e, fitando-o muito com os
seus olhos claros, raiados de sangue nos cantos pela idade e pela refração do
sol no mar, disse-lhe, enternecido, num vago ar paternal:
— Assim, meu
rapaz! É puxar pelo casco, é puxar pelo casco! E deixa-te lá de casórios, que
tu não tens idade! A Luíza que espere. Faz-te homem, primeiro... A tua mãe,
coitada, precisa de ti... Bota pra fora as tristezas! E alegra-te, que vais
ainda passar com dia o Natal!...
Enleado de
repente por aquelas palavras, a cabeça baixa, os olhos fisgados na tolda, o
Venâncio, colhido assim no seu segredo íntimo, nem sabia o que dizer. Mas como
o velho Soeiro, que ele tanto respeitava e temia pela sua severidade e rigor em
viagem, lhe falasse desta vez com tanta bonomia, ousou responder vagamente,
todo rubro, numa titubeação de palavras:
— Não, senhor...
não, senhor... eu não penso em casar...
E desceu
para a câmara, carregando os objetos, numa pressa de se libertar do “aperto” em que o pusera o
velho náutico. Entrou no camarote, e sob o júbilo que o tomava, naquela doce
esperança de ir passar o Natal no seu arraial, abriu a caixa da roupa, sacou de
dentro um pequeno registro colorido do Senhor do Bonfim, que era o padroeiro do
lugar, e beijou-o longamente, pensando na mãe e na amada...
Mas um
pampeiro do sul caiu inopinadamente, uma tarde, na antevéspera do dia almejado.
E o navio, com o litoral já à vista, pela proa, foi obrigado a fazer-se ao mar.
Desde essa hora até ao dia seguinte, ninguém a bordo parara, numa faina
contínua, quando o vento começou a amainar e o patacho meteu de
novo na bordada de terra. Até à tarde, porém, não se avistou a costa; e a
tripulação, agastada com aquele demônio de tempo, praguejava rudemente, perdida
agora a esperança de ir passar o Natal em seus lares.
O próprio
capitão, de pé ao cata-vento, junto ao homem do leme, mostrava, nesse instante,
o rosto carregado como numa contrariedade. No entanto, durante o vendaval, a
sua larga fisionomia de leão do oceano se conservara plácida e animada, nessa
serenidade incomparável de espírito e de alma, que é a superioridade do marujo
ante esse temível adversário — o mar. É que o
velho Soeiro tinha também esposa e filhos a quem idolatrava, e mais
do que todos, a bordo, sentia o desejo insaciável de mergulhar o coração
sequioso de afetos nas carícias e bênçãos do lar, onde todos os que vogam nas
ondas encontram sempre um asilo remansoso e sagrado.
Num recanto
da popa, entretanto, o Venâncio, a quem o velho afagara nas vésperas, junto à
gaiúta alta, satisfeito e feliz por encontrar nele um discípulo digno e que não
temia bater-se com as vagas, prometendo dar de si um marinheiro que o saberia
honrar; num recanto da popa, o rapaz não cessava de olhar, um momento, o
horizonte além, onde lhe parecia ainda ir surgir de repente, sob a névoa
dourada do poente, a curva branca e saudosa do seu golfo natal. Ali ficou muito
tempo, até que a sineta de bordo o despertou para o quarto.
Já então,
para leste, uma cinza sutilíssima se alastrava nas águas. Descia a noite
lentamente; na barra verde do ocaso, onde brilhos vagos morriam, na glória do
sol que findava, um ponto fulvo pequenino, Vésper, a estrela da tarde, numa
cintilação tremulante e faustosa, que convidava a amar, rolava no côncavo azul
do firmamento, como uma camândula dourada.
Nas
amuradas, à proa, e sobre o castelo arqueado, os marinheiros em grupo,
esquecidos já do pampeiro, numa resignação invejável de almas sãs e amoráveis,
que não dão nunca abrigo e guarida a ódios mas a amores e mágoas, cantavam
saudosamente e em coro essas belas cantigas do sul, que sonorizam as estradas e
praias alvas dos sítios pelo tempo do Natal.
Embaixo, na
câmara, o capitão, vendo que não chegariam à barra senão ao outro dia, pela
tarde, pois estavam ainda a mais de dois graus ao mar, abrira os mapas sobre a
mesa para traçar os rumos andados e pôr o ponto
na carta. Mas a saudade da família trabalhava-lhe a alma. E, às vezes,
quando o canto da maruja estalava mais forte, à proa, sob o ranger surdo dos
mastros, ele, subitamente enternecido, os olhos arrasados de lágrimas, erguia a
cabeça leonina, branqueada pelos anos, e punha-se a olhar tristemente a luz
amarela e saudosa do farolim, pendendo osciladoramente do teto, na sua manga de
vidro cercada de um gradil de metal.
Em cima, ao
pé do leme, sentado em frente à bússola, na gaiúta fechada, o Venâncio
enlevava-se também longamente naquelas cantigas nostálgicas. Conhecia-as bem,
pois a sua infância dourada havia deslizado entre elas, num embalamento de
júbilo, na sua aldeia adorada. E quantas vezes as cantara, em menino, no bando
alegre dos amigos, em noites assim de festa, seguindo, com a lua no céu, de
presepe em presepe, os ranchos palreiros das raparigas amadas!
Assim
cismava tristemente, quando o coro dos marinheiros, avante, cessou de súbito,
num profundo stacato. Fez-se um
momento de silêncio, em que só se ouvia o murmúrio saudoso das ondas batendo
nas amuradas. Era meia-noite, uma dessas meias-noites soturnas e quase trágicas
do mar.
Então, sob
os quadrados alvos das velas nevando o espaço no alto, vozes roucas e másculas
gritaram, à uma, do castelo:
— Tocar a
Natal! Tocar a Natal!
E logo a
sineta de bordo, em repiques vibrantíssimos, de uma consoladora alegria de
alvorada de calma, cantou o nascimento divino do Menino Jesus, que docemente
ecoou pelas águas, rolando ali, marchetadas de estrias de luz, sob a rede de
ouro dos astros.
O capitão, num enlevo, subiu à
pressa ao tombadilho, chamando os marujos à ré. E todos, num forte uníssono
festivo, que arrebatava a alma, entoaram vigorosamente, na tolda, entre aquelas
velas felizes dominando o oceano, este estribilho devoto de um velho hino
cristão:
“Salve! ó divino
Jesus!
Luz do nosso coração,
Que vieste hoje ao mundo
Para nossa salvação!”
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