Natal
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era véspera
de Natal em Joinville, a formosa cidade teuto-brasileira do extremo norte, no
estado de Santa Catarina. As derradeiras claridades rosadas do crepúsculo
esmaiavam pouco a pouco a oeste sobre as planuras que margeiam o Cachoeira,
onde se recortavam pitorescamente, em maciços de folhagem, os extensos mangais
verdes, de cujo seio se erguiam, aqui e além, para os planos afastados, frondes
de árvores ramalhosas e troncos torcidos e esguios de eucaliptos, abrindo no
céu pálido da tarde os seus penachos de folhas embalados pelo vento.
O pequeno
vapor em que eu ia, o D. Francisca, contornara
já uma das amplas voltas do rio, de onde se começa a avistar, pelos rasgões da
verdura, os telhados de ardósia vermelha das primeiras casas de paredes
alvíssimas da cidade do Príncipe. E daí a instantes as sebes densas de mangue,
que cercavam a espiégle lanchinha
singrando águas acima, findaram de repente, surgindo então a meus olhos o cais
principal de Joinville — uma linha
cinzenta de cantaria, coroada por um renque de armazéns que são
depósitos de mercadorias.
Marinhei
apressado, com uma maleta de viagem na mão, uma das escadas de pedra, por entre
um bando rumoroso e festivo de pessoas da cidade, mulheres e homens, que
vozeiravam e riam, num português cheio de rr e em sílabas ásperas, guturais de
alemão. Eram famílias e outros que vinham receber os conhecidos e amigos de São
Francisco e do Desterro em excursão de Natal à pequenina e nova Colônia daquém
Atlântico, que é talvez a mais bela cidade do Brasil.
Uma
trapalhada de carros tomava toda a praça que se estende por detrás dos armazéns
— carros de passeio e de carga, uns parados a receber volumes, outros
a rodar, atulhados de gente, num movimento de chegada e partida, puxados por
parelhas possantes ao vivo estalar dos chicotes. Retido entre o burburinho,
procurava eu um carro de aluguel ou alguém que me guiasse até a rua dos Lírios,
onde me esperava um nobre lar germano-brasileiro de família querida, quando me
achei subitamente arrebatado por dois braços robustos, a amplexarem-me com
afeição e carinho:
— Ó senhorrr amiga! Ó senhorrr amiga!
Era Paulo
Rosemberg, um hércules de dezoito anos, inteiramente imberbe, de olhos azuis e
muito louro, meu dedicado camarada e filho mais moço da família que me
aguardava à bela rua dos Lírios. O rapaz, agarrando a minha mala, uma das mãos
no meu ombro, carregou-me logo para o seu carro, no meio da balbúrdia que ainda
reinava no largo, aumentada agora pela escuridão da noite envolvendo Joinville.
Galgado o
estribo, e bem acomodados nas almofadas de marroquim, o cocheiro fustigou os
cavalos e entramos a rolar pela rua do Porto, onde as primeiras habitações se
mostravam já profusamente iluminadas, malhando fora os jardins e o macadame
alvacento com grandes faixas douradas. Pelas janelas e portas, abertas de par
em par, ao centro desses recessos sagrados de serenidade e de amor, as lindas
árvores tradicionais de Natal destacavam-se num buquê de verdura, estreladas vivamente pelas chamazinhas fumarentas
das microscópicas velas de cera colorida, ardendo em todos os ramos no meio de
bibelôs variados e doces de mil feitios. Revoadas de crianças, todas de cabelos
cor de ouro, em leves vestes cheias de fitas, brincavam alegremente em torno de
cada árvore, numa grazinada festiva. Sob as trepadeiras floridas que revestiam
as varandas e cujas folhas miudinhas recortavam-se em fina trama de bronze num
fundo fulvo de luzes, homens e matronas, com rapazes e moças de lieder, as cabeças de um tom doce de
trigo ou feno em plena maturidade, em volta de longas mesas atoalhadas,
cobertas de grandes bolos tostados e de copos e pelotões de garrafas, palravam
e riam alacremente, bebendo fresca cerveja espumosa ou esses puros vinhos do
Reno que vêm de vinhedos lendários...
Para
alcançarmos a casa tínhamos de percorrer todo o coração da cidade — a rua do Meio, a do Príncipe, a de Ludovico, a da Cachoeira e a
do Norte, todas amplas, muito limpas, pautadas ao longo das casas por orlas de
grama curta e por sebes de roseiras.
O nosso
carro voava, cruzando dezenas de outros, através as ruas em festa, em meio à
correnteza dos prédios, que, ornados e cheios de luzes, povoados de risos e
cantos, com balões venezianos brilhando entre ramagens, a árvore amada das
crianças erguida ao centro das salas, faziam esquecer por momentos a
materialidade de sua estrutura, para tomarem à vista deslumbrada a arquitetura
luminosa e rendada de castelos fantásticos, desses que — rezam as sagas
— fulgiam à
noite pelos feudos, nos grandes festins reais. E o magnífico veículo só
diminuía a marcha ou estacava por vezes para dar passagem aos numerosos grupos
de raparigas e moços que, aqui e além, tomavam as esquinas das ruas, vagando em
todos os rumos, numa grande cantoria coral, em que as notas graves dos bassos abafavam, a espaço, o uníssono
delicado das gargantas femininas.
Em vários
pontos e quadras, edifícios colossais, com largos pórticos e parques
interiores, como imensos politeamas, destacavam-se feericamente pelo
extraordinário clarão de sua alta frontaria pejada de luminárias: eram os “bailes públicos”, onde se reúne a gente do povo, operários
e criadas para celebrar o Natal. Bandas musicais de cem figuras e mais
estrugiam dentro, em execuções vertiginosas mas de uma afinação impecável,
desenrolando o infinito repertório das polcas, xotes e valsas, ao som das quais
se moviam jubilosamente multidões inumeráveis de pares, nesses zumbs delirantes que começam com as
primeiras estrelas e só findam à madrugada.
Durante meia
hora talvez carruajamos assim, em meio à expansão coletiva e geral de toda a
cidade, onde decerto poucas almas haveria que não palpitassem e gozassem no
triunfo do Natal, essa festa característica e eterna das nações setentrionais. E
foi justamente ao apontar suntuoso da lua sobre as colinas de leste, onde o rio
serpenteia por cachoeiras de prata, que nós entramos, muito alegres, a linda
rua dos Lírios, cintilando toda acesa pela fachada das casas.
Alguns
momentos depois apeávamos, sob palavras de boa acolhida, à entrada da ampla
varanda entre ramagens do palacete Rosemberg, onde o bom velho Wilhelm, o dono
da casa, deixando a multidão dos convivas que lhe inundavam as salas, com a
esposa e as meninas, um grupo inefável de valquírias louras — me veio cercar para logo afetuosamente, ordenando a Paulo
que me conduzisse lá acima, aos aposentos que me destinara. Subimos, então, em
seguida, e, demorando-me apenas o tempo indispensável para sacudir a poeira de
carvão da viagem, delongada de quase seis horas desde São Francisco até ao cais
de desembarque — desci radiante com Paulo,
para a apresentação aos amigos da família e a primeira visita à árvore de
Natal, no salão nobre, onde as crianças traquinavam em deliciosa algazarra.
Na larga varanda
balaustrada, abrindo para o jardim da frente, sob o denso crivo de trepadeiras
e as luzes que o douravam, corria a imensa mesa do festim de Weihnachten, totalmente ocupada por
cavalheiros e damas, e à cabeceira da qual Wilhelm Rosemberg e a esposa, repousados
e felizes, nessa alta sinceridade de afetos que é o encanto da raça saxônia — faziam as delícias de todos, entretendo e animando a
confabulação geral na mais doce intimidade. Cada um dos convivas, sentado
familiarmente ao seu lugar, servia-se por suas mãos, pois nessa noite não há um
só lar alemão que não dê folga aos criados — e
esta é a folga sagrada do Natal, que ninguém ousa de leve afrontar, ainda em
casos excepcionais. Os homens e rapazes tinham diante de si altos copos de
litro, de porcelana ou cristal, com as finas tampas de metal branco reluzente
erguidas para trás sobre a asa: dentro de cada copo a cerveja fervia, coroada
de espuma, translúcida, cor de topázio. As matronas e fräulein debicavam iguarias e doces, acompanhando os saborosos bocados
com pequenos goles de Kocheim e Jahannisberg, os famosos e finos vinhos
capitosos do Reno.
Assim que
apareci com Paulo, o velho Wilhelm, empoltronado como estava, sem se mover, mas
risonho e afável, com os seus olhos vivos de sable cheios de uma grande
ternura, a barba longa e grisalha, gritou o meu nome a todos, apresentando-me
descerimoniosamente, e chamou-me para o seu lado, onde sentei-me, depois de
corresponder às cortesias, na cadeira deixada nesse momento mesmo por uma de
suas filhas, a encantadora Bertha, que saía com dois pratos cheios de bolo e
uma garrafa clara, em direção à outra sala.
Passando-me
a mão pelo ombro e afagando-me, depois de me perguntar delicadamente como
passara na viagem e como deixara a família, que ele conhecera de uma vez em que
fora ao Desterro, o bom germano dizia-me:
— Berthe foi
levarr algume coise aos velhas que está na outrre sale com as menines.
Os “velhas” eram os nonagenários Rosemberg, marido e mulher, os nobres pais de
Wilhelm, que também já contava sessenta e cinco anos. Como todos os anos, os
dois velhos, apesar de alquebrados e trêmulos pela idade, não queriam deixar o “seu trono” no salão
nobre onde estavam os netos e bisnetos com a sua “árvore”, sem que batesse a meia noite,
hora em que devia chegar o fantástico São Silvestre, der Sylvesterabend, com o pesado embornal de couro para a
distribuição às crianças dos presentes de Natal.
E conversávamos, enquanto Paulo,
em frente a mim, do outro lado, servia-me cerveja e servia-se, partindo ao
mesmo tempo queijo e fatias de bolo tostado. Por toda a mesa, para mais de
quarenta convivas de ambos os sexos bebiam e riam, alegremente e com
sobriedade. Do salão grande, colocado ao centro, com interposição de uma sala e
tomado às portas por belos reposteiros de cassa, vinha-nos de vez em quando, em
rajada, a gritaria sonora das crianças, forte e viva como uma girândola de
foguetes que de repente se desprendesse e espocasse no ar.
Depois de
algumas horas eu quis ir ver com Paulo a árvore de Natal, saber de que
proporções era, como a tinham armado naquele ano e que surpresas guardava; mas
o bom Wilhelm correu-me paternalmente a mão pelo ombro, dizendo-me que não, que
esperasse para a ver quando estivesse a entrar São Silvestre, que não tardava,
pois já eram onze e meia.
Continuamos
a cervejar e a confabular cordialmente, quando de súbito uma campainha retiniu
lá fora, ao fundo do palacete, para os lados do pomar. As crianças, no salão,
romperam em colossal matinada, como se ali se tivesse soltado inesperadamente
um grande bando de gralhas. Alvoroçaram-se as salas. E todos da mesa, a começar
por Wilhelm e a esposa, ergueram-se, gritando com estardalhaço:
— Der Sylvesterabend! Der Sylvesterabend! E
precipitaram-se todos para o salão da árvore. Eu, levado pela mão de Wilhelm,
lá fui também no torvelinho, palpitando de curiosidade.
No salão
profusamente iluminado pelo grande candelabro e por arandelas douradas saindo
de cada portal, estavam ainda somente os dois nonagenários e as crianças, que,
caladas agora e sentadas numa linha de ricas cadeiras de carvalho esculpido,
não tiravam os olhinhos azuis esbugalhados da cortina de damasco escarlate
fechando o umbral do corredor ao fundo, que levava à varanda do pomar.
Enquanto o “santo” não surgia, pois que não dera ainda a tilintada
final, formamos todos em dois grupos — um
a cada lado da sala. Os grupos partiam em direção à fileira das
crianças vindo do pequeno estrado recoberto de veludo vermelho, onde, sobre
duas poltronas imperiais, de alto espaldar floreado e marchetado de ouro,
estilo Frederico o Grande, se achavam sentados os avós Rosemberg, com
vestimentas características de outras épocas, traduzindo costumes obsoletos — magrinhos ambos, mas de ossada poderosa, fronte ampla e inteligente,
o tórax alto e bem feito dos povos louros do Báltico. Tinham a
larga face expressiva, engelhada pelas emoções de uma existência quase secular,
como de pergaminho rosado, onde luziam docemente os pequeninos olhos verdes, já
vazios de esperanças e sonhos, é certo, mas umedecidos ainda de vaga ternura e
saudade. Os cabelos inteiramente nevados davam-lhes um grande ar venerável.
Ao centro
das alas, entre o “trono” e a criançada, erguia-se a árvore, feita do cimo tenro de um
pinheiro novo, desses que, quando em pleno desenvolvimento, coalham em
florestas colossais os planaltos de São Bento e da Serra do Mar. Era a maior de
todas as árvores de Natal apresentadas até ali pelo velho Wilhelm aos seus
filhos amados: tinha cerca de quatro metros de altura, da peanha que a sustinha
aos artesãos do teto afundado. Toda coberta de luzes, como um recanto de céu
estrelado, com bibelôs variadíssimos das célebres fábricas de Hamburgo e de
Meissen, com uma multidão de pequenas massas e doces secos representando uma
série zoológica e as coisas mais singulares — a sbaum queridíssima da infância
norte-europeia atraía e deslumbrava, num esplendor quase fantástico.
Eu, no meu
grupo com Paulo, já cansado da demora e com os olhos deslumbrados daquela
maravilha de árvore, perdia-me enlevadamente a contemplar o rosto divino e
casto de Bertha, que, postada em frente no outro grupo, me fitava ingenuamente,
com os seus mágicos olhos celestes, de um azul transparente de lago. E sonhava,
acastelava deliciosamente no espírito as ilusões embaladoras de um profunda
amor de Germana, num lar cheio de pureza e de afeto, cheio de ordem e de paz — quando a campainha me despertou de súbito, com vibrante
tilintada.
Fez-se pesado silêncio: e todos
olharam a porta recoberta de damasco vermelho, com ansiedade. De repente a
cortina correu, colhida em pregas ao lado; as crianças ergueram-se numa
matinada; e um grito uníssono e alegre partiu todas as bocas:
— Der Sylvesterabend! Der Sylvesterabend!
Um velho gigantesco mostrou-se então no umbral, com uma grossa peliça cinzenta,
um grande barrete de marta e um alto bordão de jornada. Os seus cabelos e
barbas cobriam-lhe os ombros e o peito em largas pastas nevadas, as quais lhe
enquadravam o rosto venerável, onde os olhos reluziam como duas turquesas
molhadas. A orla da peliça viam-se-lhe as pernas cheias e fortes, calçadas em
grossas botas amarelas, enrugadas e como úmidas ainda do chapinhar nos gelos,
decerto por alguma planície da Prússia, de onde ele viera subitamente até ali como por milagre. Trazia um grande embornal de
couro a tiracolo, tão grande que tinha a boca oculta sob umas axilas, enquanto
o fundo, cheio e túmido como um odre, quase tocava o soalho.
Com um gesto
militar e sem proferir palavra, o santo protetor das crianças e enterrador dos “anos velhos”, que se precipitam
no abismo a cada giro de translação do globo —
marchou, circunspecto e severo, sem um sorriso que fosse, em direção ao “trono”, onde já o
esperavam de pé, na sua tremura senil, os bons avós Rosemberg, que, mudamente
também, mas sorrindo, lhe oscularam a larga mão. Depois o “mensageiro do céu” estacou em
frente à árvore, onde logo o cercaram as crianças, que após lhe beijarem o
cajado, entraram a gritar vivamente reclamando, as suas “festas”.
São
Silvestre sorriu-se então vagamente, contraindo as longas barbas, e muito meigo
e carinhoso, curvando-se um pouco na sua estatura gigante, abriu o bornal de
couro, repartindo pelas crianças uma série variadíssima de encantadores
brinquedos e caixas rútilas de bombons.
Os grupos
romperam em palmas, num fervor de aclamação e em altos vivas ao “santo”.
E neste
rumor de alegria, São Silvestre foi recuando mansamente para o fundo da sala,
sempre voltado para todos, até galgar o umbral do corredor, onde a cortina de
damasco vermelho, ao som da campainha ressoando de novo, o ocultou por mais um
ano, nesse infantil e conhecido “mistério” que faz a great attraction deliciosa do natal alemão.
Em seguida,
na vasta sala contígua, começaram as danças, que se despenharam em sucessivas
xotes e valsas até os primeiros clarões da alvorada.
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