Na roça
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
O Cosme, depois que a tia Sabina
morrera, dera-se todo à bebida. Raramente trabalhava já; e a maior parte do
tempo levava-a, de manhã à noite, na venda do André, a virar vinténs de
aguardente. A sua fisionomia, outrora bela, rosada e límpida, com um riso
amável e um resplandecimento juvenil e doce, achava-se agora quase
completamente transformada: os olhos, castanhos e transparentes, muito
rasgados, e que tinham uma expressão e uma luz tão forte que ascendiam logo nos
virgens corações das raparigas afetos desordenados, arrastando-as, às vezes, às
fúrias da rivalidade assanhada e dos ciúmes convulsos, que as levavam a
descompor-se e a esgadanhar-se impudentemente nos terços — viviam agora sonolentos e cobertos da rubra e
desfigurante bruma do álcool.
Sobre o
rústico banco de madeira, que corria ao longo do curto balcão da casa, levava
as horas a dormir, sentado, com uma das pernas dependurada e a outra erguida
sobre a tábua — o pé direito espalhado,
mostrando uns dedos nojentos, calosos e deformados, onde os dois braços e as
mãos, fechando em círculo a perna em triângulo, desciam e vinham unir-se
enclavinhados. A cara, congesta e túmida, apoiava-se a um dos joelhos, e a
barba, sedosa e fina posto que maltratada, estava sulcada de grossos fios de
baba. O cabelo, inculto e longo, todo emaranhado e ruço daquele triste
vegetalizar pelo vício, daquela vida desviada totalmente do bem-estar e do
trabalho, exausta já de vigor e brio, dava-lhe à cabeça revolta um ar disforme
e velho. No entanto, bem reparadas, as feições guardavam ainda um certo clarão
juvenil, um tom vago e fugidio da beleza e virilidade que possuíram outrora.
II
A tia Sabina era mulher dos seus
sessenta anos, alta, magra, com os cabelos brancos e um pescoço fino e
comprido, cheio do forte sulcamento das veias. Falava pouco e baixinho; era
devota, sabia ler e tinha bom coração. Todas as noites, depois de fiar o seu
bocado de algodão, ceava e ficava por muito tempo defronte de uma velha cômoda,
onde havia um registro colorido do Bom Jesus de Iguape, em pé, com uma palma
verde na mão; ficava ali a orar, com o seu longo e encardido rosário entre os
dedos, a passar as contas, com um movimento rápido dos lábios murchos que
zumbiam levemente, e o olhar, ora vagando pelo teto, ora fixando a imagem
pintada; depois ia meter-se na cama, mastigando ainda restos de rezas. Fora
casada vinte anos. O marido, havia quatorze, morrera. Era embarcadiço, levava a
vida por fora, em viagens, e a última que fizera matara-o, porque desembarcara
doente, em braços, a bem dizer morto, com uma pneumonia.
Ela então,
necessitada de uma companhia, tomou para si o Cosme, um rapazinho órfão, magro
e amarelo, muito tímido e desajeitado, com uma carinha meiga e uns olhinhos
grandes e mansos, e que vivia a favor em casa de uma pobre e numerosa família
dos Zimbros. O rapazinho não era feio e a tia Sabina, desde que o tomara, que
descobrira nele uma bondade — era obediente e
calado, muito dócil, alheio a troças, e amigo de fazer as voltas da casa. Por
essa razão, tratou logo de dar-lhe umas roupinhas e mandá-lo todos os dias à
escola, acompanhado-o até a porteira, e recomendando: — “Sê bem ensinado e bom; e aprende, meu filho, aprende, que é para
seres homem”. E ficava ainda depois a olhar de
longe o pequeno, que ia caminhando sem se voltar, com o andar preso
e atrapalhado, e os pés a doerem-lhe e a escorregarem dentro dos tamanquinhos
novos. Tinha então seis anos. Quando ele voltava, ao meio-dia, e vinha tomar a
bênção, ela, sentada na caixa grande da sala, com o cesto da costura ao lado,
carinhosamente o estreitava ao seio e beijava, tirando-lhe com meiguice o
casaquinho e o boné, a alisar-lhe para trás o cabelo com as mãos,
perguntando-lhe:
— Então, soubeste hoje a lição?
E sorria,
enternecida.
Depois
levantava-se, ia tirar a comida: estendia no chão uma esteira, abria sobre ela
uma toalhinha muito alva e, com a panela ao lado e uma grande colher de pão,
enchia o alguidar do rapaz que, sentado, as pernas cruzadas, remexia e amassava
o pirão, mastigando em silêncio.
À meia
tarde, o Cosme voltava de novo à escola e ao entardecer regressava, só,
afastado dos companheiros, que galhofavam dele, dos seus modos, e que, num
alarido desenfreado, corriam, jogavam pedradas para as cercas, onde os cães se
iam refugiar latindo e os passarinhos dobravam nas ramagens altas. Quando
anoitecia, a velha botava-o adiante de si com o catuto na mão, e desciam ambos
para a fonte, a buscar água, por entre o cantar metálico dos grilos e as
inquietas brasinhas dos pirilampos.
Assim
cresceu o pequeno.
Uma ocasião,
já com dezoito anos, meteu-se-lhe em cabeça casar. Na casa vizinha, do lado do
morro, havia uma rapariga galante e viva, filha de um pescador do lugar, que
desde muito o andava tentando com uns olhos magníficos. A rapariga chamava-se
Margarida: era um demônio; havia meses, vinha todos os dias ao caminho esperar
o rapaz quando voltava da rede. Então fazia-o parar, começava a contar-lhe as “coisas”, a dizer que o amava, estalando-lhe nas
bochechas risadas esplêndidas, jogando-lhe beijos com os dedos, entornando-lhe
sobre a cabeça um turbilhão de pétalas!
O Cosme,
muito acanhado, fitando-a com os seus grandes olhos castanhos, corava; ficava
comovido e satisfeito com aquelas declarações e carícias, e ria-se, ria-se a
valer, sem saber o que dizer, sentindo palavras que lhe passavam na
imaginação como faíscas, mas que nunca lhe vinham aos lábios! Apenas podia
dizer, aparvalhadamente: — “E eu!... E eu!...” Depois, despedia-se e seguia para casa, voltando-se de
instante a instante, para ela, que ficava de pé, no terreiro, a acompanhá-lo
com os olhos — impressionado, cheio de cismas,
com uma doçura sobre o coração. E levava todo o tempo a pensar na rapariga,
vendo-a, pela imaginação, airosa, alegre e resplendente, com as mãos nos
quadris, sob o abundante ouro do sol. Havia noites que não dormia, porque
necessitava pensar nela, tê-la ao pé de si. Achava as horas imensas,
intermináveis; e parecia-lhe, tristemente, que não amanheceria mais, que não
veria o sol depois. Era uma angústia, uma infinita angústia! Resolveu, então,
dizer à tia Sabina que precisava casar-se, senão não poderia mais viver,
morreria...
A tia Sabina
ouviu-o silenciosa, e muito sensatamente, disse:
— Tu estás doido, Cosme! Não vês que isto é uma falta
de juízo, e tu não tens idade nem meios?...
— Mas eu quero; quero, porque já não posso mais! retorquiu o
rapaz.
E ela,
melancolicamente, com os olhos no chão, pôs-se a refletir, abanando a cabeça;
depois, fitando o Cosme, que estava em pé, no portal, acrescentou:
— O que se há de fazer! o que se há de fazer!...
Daí a meses
o rapaz casava. A Margarida, a princípio, mostrara-se muito boa, muito
trabalhadeira, e não deixava a tia Sabina fazer coisa algum, sem que ela a
ajudasse. A tia Sabina vivia numa satisfação, queria-a muito e chamava-a sempre
“santinha”. Mas, decorridos dois anos, levada pelo seu
temperamento ardente, irrequieto, revolto, deu em “virar a cabeça” e
não fazia mais do que preparar-se e ir todas as tardes, depois do
jantar, dar a trela pela vizinhança. À tia Sabina não lhe agradava aquilo; mas,
como sempre, permanecia calada, sem lhe dar a entender, mesmo de leve, o seu
desgosto por aquelas visitas. Um domingo, porém, uma velha camarada de
infância, e sua comadre, a Rita Basília, a da Coivara Grande, que já há tempos
não via, e que viera à freguesia para ouvir a sua missa, ao passar-lhe na
porteira, encontrou-a estendendo umas roupas molhadas, e falando: —“... É verdade, como vai o Cosme? E a Margarida? Olha, mulher:
pois não está tudo cheio que ela é má bisca; que não para em casa, e vive todo
o santo dia a curricar, enganando o pobre do marido, coitado! Ó Sabina, anda
cá: põe-lhe um “cobro”, vê se a metes
em caminho. Olha que é uma desgraça...” E
como viesse gente, despediu-se apressada: —
“Adeus, vou à missa, que já basta de perder tantas. Logo eu entro;
agora não posso, ouviste?” E saiu à
pressa, bamboleando as suas transbordantes ancas de mulher madura e
pesadíssima, no meio do cadenciado estalar e ranger dos tamancos.
A tia
Sabina, estendida a roupa, retirou-se, cabisbaixa, recolhida, com visíveis
sinais de aflição no rosto. Quando entrou em casa, ia pensando: — “Vou dizer-lhe tudo, isto não fica bem, não pode ser. Também
sair todas as tardes! Já estão surdindo os mexericos... Virgem Maria! Cai na
boca do mundo, cai na boca do mundo!...”
E nisto
esbarrou-se com a Margarida, que vinha saindo de casa, com uma radiação de
alegria no semblante risonho e um grande molho de malmequeres, dálias e
perpétuas, direita a ela: — “Tia! Olhe, eu
vou até lá ao Amaro; vou levar flores para o terço. Passo lá o dia com a
Leandra. Pois não sabe? Hoje é o dia da Conceição. Há terço logo à noite”.
A tia
Sabina, com a sua imensa bondade, vendo-a muito alegre e rosada, de uma
frescura infantil no seu vestido de chita clara, conteve-se e apenas disse: — “Vai; mas toma cuidado, filha. Não sejas leviana. Olha que já
falam...”
E ia para
concluir, quando a rapariga, com um modo estouvado e inquieto, pegando-lhe do
braço e sacudindo-a, interrompeu-a: —
“Você venha também, tia; deixe isso e venha. Eu lhe espero; aquilo vai
ser bom. Há dança”.
E saiu
correndo, com as longas tranças soltas e um fru-fru de saias engomadas, em
direção ao caminho.
O marido não
estava. Na véspera, levara a noite inteira na rede. Como o peixe “era mato”, carregara uma canoa, e sem voltar à casa, saíra para a
cidade, pela madrugada, e até aquela hora não se sabia dele. À Margarida,
porém, não lhe deu abalo isso; já pouco se importava com ele, e até estimava a
sua ausência. Entretanto o pobre rapaz nunca fora tão dedicado e carinhoso como
agora. Sempre que entrava de fora, ia logo para ela; abraçava-a num
contentamento, intimamente envaidecido e orgulhoso por aquela “prenda chibante que ele quase não merecia”. Porém ela
enxotava-o, como a um cão ruim, toda séria, empurrando-o para longe de si com
os seus braços roliços e cor de rosa, rejeitando assim as francas e leais
carícias do rapaz, em cujo peito floriam, esplêndidas, a nobreza e a
ingenuidade dos afetos. E, obstinadamente, “secada”
repetia sempre: — “Já vem o tolo! o desengraçado!
Fosse antes dormir, se tinha sono; mas não a viesse inquietar, o tanso”. E assim vivia a maltratá-lo constantemente.
No terço do
Amaro, à noite, depois do capelão engrolar a reza e apregoar o juiz e os
mordomos que tinham de fazer a festa no outro ano, começou a dança. Achava-se
aí, nessa ocasião, o José Italiano, mascate, que de vez em quando rebentava
pelo lugar, onde a sua mercadoria voava, tendo uma fama e possuindo numerosos
fregueses. O José Italiano era um calabrês simpático, de uma grande beleza
viril, que impressionava e arrebatava as mulheres; mas, atrevido e corrupto,
nas casas onde por acaso assistia e se lhe abriam os corações, ria generosa e
santa ingenuidade roceira, deixava sempre a desgraça e a desonra.
Diversas
famílias, ali, tinham sido arrastadas impiedosamente pelo miserável à corrupção
e à miséria.
E a
Margarida, já desde muito que andava algemada ao seu olhar elétrico e vencedor,
onde bebia as tentações e graças todas as delícias satânicas dos amores
ilícitos. Profundamente dominada pelas manifestações e arrastamentos do seu
temperamento indomável, estuante de seiva e fartamente embebido em sol — abriu um escândalo desordenado e terrível no meio
afetuoso e sereno de toda aquela festa, prendendo-se a noite inteira, nas
danças, impudicamente e, sem interrupção, ao braço rijo daquele sujeito audaz,
que fazia timbre em ostentar afrontosamente, em plena estupefação geral dos
convivas, a paixão descabelada e cínica daquela rapariga doida. E, pelas duas
horas da manhã, por entre o cantar álacre dos galos e o reboliço das
despedidas, escapou-se com ele, de tal modo que ninguém os viu mais.
No outro
dia, corria insistentemente pelo sítio que ela tinha fugido com o Zé Italiano,
para as bandas da Caieira...
O Cosme, mal
voltou à casa, soube tudo; ficou fulminado e prorrompeu aos soluços, a
arranhar-se e a maldizer-se; e nas intermitências da sua, angústia, quando a
realidade desmanteladora e brutal do caso se restabelecia com nitidez, jurava,
em altos berros roucos, desfigurado e congesto, convulsamente brandindo a sua
aguda faca de roceiro: “Ele há de pagar-me, o
diabo!”
A tia
Sabina, coitada, que o escutava e estava acabando uma camisola de baeta azul,
teve um tremor e uma palidez, mas não disse nada; e, olhando-o docemente, com
uma expressão de incomparável piedade e ternura, desatou a chorar;
silenciosamente: grossas lágrimas, como punhos, sulcavam-lhe o rosto engelhado.
Agora como que tinha perdido toda a antiga serenidade: um ligeiro
estremecimento agitava-a, e o seu rosto, naquele instante, parecia mais abatido
e cavado. Quem, melhor do que ela, conheceria a organização daquele rapaz tão
ingênua, tolerante e passiva sempre, mas uma vez atacada, completamente outra
vingativa, cruel, sanguinária. Ainda trazia bem de memória a história do mulato
do Reis, que uma noite o fora esperar no caminho da praia para lhe meter medo,
do que resultou perder o Cosme a cabeça e o mulato sair esfaqueado num braço,
em risco de morrer. Ela conhecia bem o Cosme...
III
Daí a
tempos, dizia-se por toda a parte que o rapaz, tão bom e tão ajuizado dantes,
profundamente apaixonado pelo abandono em que o lançara a mulher, dera em
beber, e, algumas vezes, chegava a não se aguentar em pé.
IV
Era por uma
noite negra e troviscosa de inverno. O Cosme, como sempre, estava na venda do
André, sentado num banco, numa modorra, bêbedo, completamente bêbedo. Alguns
lavradores, que costumavam reunir-se ali, todas as noites, para a “seca”, algazarravam alegres e expansivos, felizes naquele
santo descanso bem ganho aos rudes labores do dia, na cultura das terras, pelas
baixadas e morros, sob a bárbara cáustica do sol; ou na pesca da enchova, no
mar alto, sob as terríveis e açoitantes cordas dos ventos das tempestades, nos
bravios costões do Arvoredo. Falava-se discretamente do Cosmo.
— Como vivia agora aquele pobre rapaz! Quase sempre,
bêbedo! Que desgraça! Mas era aquele gosto! E antigamente tão bom que fora! E
um bruto que tinha força que nem um touro, e que, de uma feita, ele só,
plantara uma roça de mandioca que dera trezentos alqueires!... Nesse tempo,
ainda a tia Sabina — Deus lhe dê o céu! — era viva, e a doida da mulher não dera para aquilo!...
Também ela só não tinha culpa; pior era ele, aquele cachorro do Zé Italiano,
que lá no terço do Amaro — não viram? — levara toda a noite a meter-lhe caraminholas no casco, não se despegando,
um instante só, das saias da rapariga, até que “o
raio da sem vergonha” deixou tudo
por ele... A tia Sabina, que lá estava no bom lugar, é que lhe falou às
direitas, quando ele disse que queria casar: — “Estás doido, Cosme; tu não tens juízo!”...
Nisso, o
Cosme, acordando do seu entorpecimento, ouviu ainda algumas palavras, e com um
fuzil de cólera nos olhos vermelhos, rosnou:
— Ó Mateus, que raio! Que diabo estás tu praí a dizer? Deixa
lá isso, homem! O que foi, foi...
O Mateus
calou-se, e ele tornou a encostar a cabeça aos joelhos.
Lá fora a
chuva caía em bátegas; e fuzis contínuos, acompanhados de estrondos, abriam na
escuridão súbitos clarões de fogo rubro-violáceo, que deixavam ver, pela porta
entreaberta, paisagem fantástica e lúgubre de ópera mágica.
O Mateus
então foi até à porta fincou os olhos na negrura espessa, como quem quer ver
alguma coisa, olhou para o alto: completamente escuro! e exclamou:
— Temos água!
E, voltando-se
para dentro, com os braços cruzados ao peito e os largos ombros encolhidos pelo
arrepio da umidade:
— Quem é lá de cima? Na primeira estiada, pronto!
Quem se vai, vai! Isto aguenta até dia...
E
encostou-se de novo ao balcão, com os olhos pregados na molhadura nesgada que o
sudoeste estendia pelo soalho, entrando de través.
Pelo morro
do Zefira, que ficava logo adiante, sentiu-se um ruído de patas, que se
aproximava. Todos puseram os olhos na porta.
E logo
um cavalo, pintado de largas manchas brancas que o lampião da venda fazia
alvejar e luzir, estacou ao portal, com os olhos em brasa, as largas ventas
resfolegantes da corrida. Então, um homem de botas, ataçado num grande ponche
que escorria ensopado da chuva, alto o moreno, de barba cerrada, tilintando as
esporas, desmontou-se; e, enquanto desapertava a cilha do animal para
desencilhá-lo, gritou para dentro, em mau português:
— Ó André!
Quero-te hoje uma pousada e pasto para o cavalo. O tempo está dos diabos,
homem!
Todos
exclamaram:
— Ah! É o sô Zé que anda por aí... Nossa Senhora! Era uma lástima aquele
tempo!
O calabrês
entrou, batendo os tacões, com os arreios de rastos, num tinir metálico de
loros e estribos, indo colocar tudo a um canto, por detrás da porta, e, dando “boas noites”, desatacou o ponche e despiu-o, deitando-o
sobre o balcão, onde encostou-se pedindo cachaça e dando um forte relhaço nas
tábuas.
O André
inquiriu:
— De onde vinha? Com aquele temporal d'água era uma loucura!
Apanhara-o muito longe?
— Que não; pelo Justino. Mas estava fechado, senão ter-se-ia
arranjado por lá. Fora ali por causa de umas terras...
O
Cosme despertara com o ruído brutal do relhaço, levantou a cabeça e, ao dar
inesperadamente com aquele homem ao pé dele, de costas, roçando-o bruscamente,
saltou. Os roceiros olhavam-no. Ele esfregou rapidamente as pálpebras pegajosas
e, convulso, transfigurado, arremeteu de pronto contra o italiano, num ímpeto,
numa ferocidade bravia, os punhos cerrados, os dentes de fora, os musculosos
braços retesos, num medonho aspecto de fúria; depois cingindo-o fortemente e
atirando-o ao chão, cavalgou-o, levando uma das mãos à cinta onde costumava
trazer a faca.
Os
circunstantes correram logo, procurando intervir:
— Chega! Chega! Não o mates! Não o mates!...
Mas o rapaz,
subitaneamente, agitou o ferro no ar e, várias vezes, afogou-o no corpo do
italiano. Por fim, ao reconhecer que este não fazia mais um movimento,
ergue-se, e deitou a correr para a estrada, rosnando, entre alucinado e
medroso, num tom indizível:
— Matei-o!...
Matei-o!...
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