Na ilhota
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Nessa Noite
de São João, em Canasvieiras, tudo gelava. Mas, desde o escurecer que o
estreito e arenoso caminho da praia, nos outros dias, silencioso e deserto,
cobrira-se de gente, enchera-se de animação e ruído. Eram famílias da freguesia
e circunvizinhanças que se encaminhavam para o mar, até à Ilhota, onde havia os
festejos de todos os anos, em casa de João Monteiro. A festa lá, nessa noite,
ia ser boa, porque coincidia com as festas da chegada do Manuel Lemos, o
capitão do Estrela, o noivo da
Mariazinha, que vinha da costa da África, por onde errara longos meses, sem se
saber dele, na última viagem: e a sua volta, depois de tanto tempo, derramava
uma grande alegria no seio da boa gente do Monteiro e por todo o sítio, onde
era muito estimado.
Choviam os
comentários com o regozijo inesperado do aparecimento do navio que já contavam
perdido, lembrando-se do Gaivota que,
de uma feita, indo para a Costa, desaparecera por esses mares de Deus! E o
Chico Helena, que fora nessa viagem, coitado! ninguém mais soubera dele!
Felizmente ao Manuel não lhe sucedera aquela desgraça...
O navio do
Manuel Lemos era um magnífico brigue, há poucos anos reconstruído, e que se
chamara outrora o Galgo. Valente nos
temporais, muito seguro, era célebre pela velocidade da marcha no tempo do
tráfico dos africanos, em que, mesmo nas situações mais arriscadas, soubera
sempre, com êxito, em meio dos vagalhões encapelados do Atlântico, fugir à proa
perseguidora e temerosa dos cruzeiros ingleses. Contavam-se dele, dessa época,
episódios heroicos, lendas que o sol dourara e o oceano embalara em seus braços
gigantescos, faltando-lhe apenas as narrações de Fenimore Cooper. À popa, à
bolina ou a um largo não havia então quilha que o vencesse. E isto fazia
agitar, muitas vezes, a calma habitual dos oficiais ingleses que lhe davam
caça, perseguindo-o, tenazmente, por longos dias azuis de céu e mar. Uma bela
tarde o barco velejador sumia-se no horizonte ao fechar de um poente vermelho...
O gajeiro bretão, no arco da gávea, não o avistava mais com o longo olhar verde
e descortinador... O cruzeiro virava na bordada de terra, e a cólera dos
capitães das ilhas de ouro e ferro da Mancha estrugia com desesperação, pondo a
prêmio a bela cabeça branca do velho Sumares.
O Estrela estava fundeado no estreito
canal de águas muito seguras que existe entre a Ilhota e a Ponta das Pedras; e
ao cerrar-se a noite, na densa escuridão que se alastrava em torno e afogava a
paisagem em redor, só o seu farol luzia, como um olho de sangue que espreitasse
sinistramente o canal, riscando as ondas com um trêmulo fio de nácar.
As famílias
que desciam, algumas vindas lá dos Ingleses e das Aranhas, um rancho de moças,
rapazes, velhos e velhas, palradores e expansivos naquela noite de São João, de
tantas recordações meigas e amorosas que a tradição vem projetando, com a rubra
iluminação de uma fogueira, até aos nossos dias, do fundo remoto dos Séculos — tiveram quase um arrepio, em presença das ondas, que se quebravam
algidamente contra a praia estendendo-se e cercando-a de carícias de espuma.
Havia, a essa hora, uma calada vasta e taciturna, vagamente açoitada pelo ruído
rouco e sonoroso, muito longínquo, do mar, lá fora, a despedaçar-se
continuamente sobre os costões rochosos. Tremia-se de frio, mas nem por isso as
gargalhadas das moças deixavam de cantar, límpidas no ar, de envolta com as
vozes tumultuosas dos rapazes em festa.
Então, na
Ilhota, foguetes numerosos rasgaram o escuro, subindo em hastes escarlates que
feriam o céu verticalmente, estalavam, pondo lágrimas de luz, que desciam
lentamente, em cachos. E, em seguida, avistaram um largo clarão manchando a
noite, por detrás do pequeno platô das Feiticeiras, iluminando de través as
águas do Porto do Norte. A paisagem, aí, desenhava-se numa esmorecida luz
avermelhada e enternecedora, em cuja faixa vacilante cenografavam-se
feericamente massas negras de verdura, abertas em crivo, todas rútilas de
pedraria fantástica. Da vasta iluminação da água, onde tremiam escamas de prata
límpida, sob as primeiras rajadas do sueste que caía fresco, erguia-se, mal
contornado, no fundo daquele céu de nanquim, o casco colossal do navio, aproado
ao vento, o gurupés alto e aguçado, a cordoalha retesa, muito ereta a alta
mastreação artística. A sua sombra, meio caída à ré, dançava a um bordo, em
tremuras elásticas, na ondulação viva, e as vergas, os mastros e os mastaréus
cheios de guinda lançavam, na vaga claridade, como um estranho, gigantesco
tecido de malhas. De bordo, um bote impelido a remos, largou na direção de
terra. A sua mancha esguia e fina, onde se moviam bustos, avançava, numa
esteira de espuma, por entre o ranger das toleteiras rijas e o compassado chiar
das remadas.
A um e outro
lado, na costa, pedaços de praia límpida alvejavam, quando a fogueira erguia
mais alto as suas chamas.
Todos
esperavam a embarcação com impaciência. Vinha já muito próxima, entre
fosforejantes olhões de ardentia, abrindo-se à superfície da água, no mergulhar
dos remos. A três braças de terra, disseram: leva! — e o proeiro salto no paneiro de
proa. O escaler encalhou, então, com um ruído de onda espraiada, dando
um raspão na areia. Lançaram logo uma prancha. E o embarque efetuou-se cheio
dos gritinhos de temor das moças e das grossas risadas dos rapazes.
Na Ilhota os
foguetes continuavam a subir, a esfuracar o céu com filetes de zarcão. Já na
Prainha, metida entre duas pontas de pedra, onde o mar escachoa noite e dia
fustigado pela aspereza das nortadas, o Monteiro e as filhas esperavam os
convidados.
II
Logo ao
atracar do bote as meninas do Monteiro romperam em exclamações de alegria, ao
mesmo tempo que as outras, que chegavam: e foi toda uma confusão festiva e
musical de gorjeios femininos, por entre o reboliço do desembarque. E após
seguiram-se os abraços, falando sempre, estalando muito os beijos nas faces.
Tomaram
todos o pequeno caminho que conduzia à habitação. A casa, lá no alto do
terreiro, branquejava, fantástica, por detrás das labaredas, lembrando
incêndios em cenografias célebres de dramalhões e óperas, num desenlace
trágico, de muita sensação. Cantava cristalinamente, em vozes límpidas,
desprendendo-se de pulmões e gargantas frescas, uma revoada de meninos, cujos
perfis inquietos de diabinhos dançavam em redor das chamas, como numa alegoria
do Inferno. Uma gaita, ronceira e triste, lançava até as ondas, num som roufenho
e monótono, notas incompletas de uma polca. Homens descalços, rapazes e
mulheres das proximidades, com crioulos forros que vadiavam, grupavam-se à
porta da rua, arregalando os olhos curiosos. Quando as moças aproximaram-se,
abriram alas, dispersando no escuro, sob os cafeeiros.
Na sala
principal, então, houve toda uma alegre balbúrdia de saudações.
A família do
Chico Maria e a do Viana, que moravam perto, já lá estavam com um pelotão de
filhas moças, garridas e planturosas, assinalando bem a proliferaridade
amplíssima das populações da beira-mar.
Na onda dos
recém-chegados vinha também a tia Clara, uma velha professora da roça dos bons
tempos, de poucas letras e muitas virtudes, insigne nos trabalhos de agulha e
sabendo curar por benzeduras, que a fazia venerável e sobrenatural no sítio.
Era cunhada do Monteiro e comadre dele três vezes, tendo-lhe batizado dois
filhos logo no começo de casado e, ainda nos últimos anos, uma menina, a mais
moça, a quem dera, por pedido dos pais, o seu nome. A tia Clara era viúva há
treze anos Tinha duas filhas moças — a Eugênia e
a Guiomar. A primeira, já trintona, não era bonita, a pele murcha e desbotada,
os lábios tristes, os olhos apagados pelas desilusões; mas a última, mais moça
dez anos, prendia e fascinava, com um florescimento juvenil de roseira agreste,
as formas amplas e virgens, o rosto lindo, onde os olhos faiscavam.
O Manuel
Lemos, que estava sentado na saleta próxima, teve uma grande impressão
quando a viu entrar, e subitamente levantou-se, fazendo cessar de chofre a
conversa que travara, momentos antes, com um velho roceiro esquelético,
engelhado e de grandes barbas brancas que, vendo o outro afastar-se, deixá-lo
bruscamente, sem um gesto, sem uma palavra, ergueu em redor uns olhos
espantados, mastigou baixo frases e voltou-se tristemente para o pequeno altar
ao fundo, coberto de uma toalha alva e bordada, onde se alumiava um registro de
São João, colorido e encaixilhado em madeira. Duas velas de cera, de seis em
libra, aos lados, erguiam as suas chamas lívidas e fumarentas. Palmas de Santa
Rita e molhos de rosas ostentavam-se, colocados devotamente em copos meios de
água; e, no alto da moldura, enfeitando-a, cravos vermelhos desprendiam a
fragrância dos seios sangrentos...
De fora,
continuamente, entrava gente para a sala, quase apinhada junto à porta, onde se
acumulavam homens. A um canto, em um mocho, ao pé de uma janela em que cabeças
desgrenhadas debruçavam-se, olhando com grandes olhos vagos, a boca aberta, num
emparvecimento, o tocador de gaita, um mulato anguloso, chupado, com uma pera
satânica de Mefistófeles, um lenço de chita ao pescoço, rouquejava uma
quadrilha.
Mas as
danças não tinham ainda começado: tiravam-se sortes, palrava-se.
No meio de
um grupo de moças, o Manuel Lemos, agora, empunhava o Livro do Destino, uma remota e esfrangalhada brochura, sem capa e
sem cantos, enegrecida e ensebada do chulo manusear de muita gente, durante
anos, nos três dias de Santo Antônio, São João e São Pedro, e toda cosida a
pontos na lombada. O Manuel oferecia os dados —
uns grandes dados antigos e desquinados onde mal se podiam ler os
pontos — e as moças os sacudiam entre as
mãos fechadas, arriando-os depois sobre as próprias páginas do livro, rindo
muito, muito interessadas. Contavam: cinco,
quatro, doze, dezesseis... “Ande lá! Leia
lá!” E o rapaz folheava logo, procurando a página onde vinha a
quadra que correspondia ao número indicado: e lia, recorria ao índice, dizia os
assuntos: Se o seu amante é fiel ou não,
se alguém lhe ama em segredo, se morrerá cedo ou tarde, se terá felicidades, se
o seu bem está presente, se se casará... Outras raparigas, de temperamento
aventureiro e inquieto, mais cheias de imaginação e fantasia, queriam saber se
os seus noivos viriam de fora, e de que banda seria. Corriam até à praia e
lançavam à água uma casca de laranja cavocada, com um biquinho de vela aceso
dentro. Punham-se depois a olhar o rumo que levavam as luzinhas sobre as ondas.
Se uma ia para o norte, o esposo que a sorte lhes reservava viria sem dúvida do
norte, e assim as que tomavam outra direção. Mas se a luz soçobrava, ou dava à
costa, ou apagava, então o noivo não vinha de fora; era dali mesmo, do lugar,
ou a dona da candinha não viria a
casar e morreria solteira... Algumas apelavam para a sorte da clara de ovo num
copo meio d’água, para uns pedacinhos
de papel com um nome de homem, enrolados como bilhetes de rifa e que se expõem
ao sereno para abrirem... Velhas, mesmo, pediam sortes, mas queriam das “bonitas”, das “boas”; e as suas predileções dirigiam-se
especialmente para as coisas de riqueza: Se
se deve contar com a loteria, que ventura terá nos negócios, se virá a ser rica...
Mas alguns
rapazes entraram a dizer que já chegava de sortes, que era melhor começassem as
danças. E gritaram para o tocador pedindo o sinal de quadrilha.
III
Havia agora
um grande ruído na sala. Rapazes cruzavam-se em todos os sentidos, dirigindo-se
às moças enfileiradas em bancos corridos ao longo das paredes. Ajustavam-se
pares.
De todos os
lados moças erguiam-se, enfiadas aos grossos braços dos roceiros, alegres, com
os lábios risonhos onde os dentes branquejavam, olhos límpidos, cheios de
carícias luminosas. Paradas, aguardando a quadrilha, davam toques ao cabelo, às
rendas, às fitas; voltavam-se, revendo a toalete por detrás, ajeitando, com
pancadinhas rápidas de mão, as saias amarrotadas.
E, pouco a
pouco, na vasta sala de telha vã, aquecida pela multidão dos convidados, ia-se
formando um enorme quadrado de gente perfilada. Reinava uma animação zumbidora
de colmeia. E o Manuel Lemos, que fora o último a tirar par, a uma das
cabeceiras, com a Mariazinha pelo braço, a larga face tisnada pelo sol do
oceano num raso tombadilho de navio, ria alto, expondo os seus ricos dentes
sãos, claros como a espuma das vagas, e batia palmas para que o tocador
rompesse a tocar.
De fora,
entrava a gritaria infrene das crianças, saltando as chamas da fogueira, cujo
clarão vermelho, iluminando tudo, abria ainda mais às rajadas do vento.
Aos
primeiros sopros trêmulos da gaita, a quadrilha rompeu, abalando o soalho, onde
os corpos adiantavam-se e retrogradavam, com mesuras e enlaçamentos rápidos. De
espaço em espaço as palavras do marcante desprendiam-se, elevavam-se,
desapareciam sob as telhas, num entusiasmo, confusas, em pedaços, comidas pelo chiar
contínuo e arrastado dos pés. Mas, de repente, entre as mãos magras do tocador
o instrumento emudeceu, encolhendo-se, e o quadrado que os seus sons
desmancharam há pouco, numa confusão de corpos em movimento, restabeleceu-se.
Daí a instantes, sacudida por novos sons, a muralha humana quebrava-se, tomava
novas disposições, reconstruindo-se incessantemente. E a quinta parte, o Manuel
Lemos, que não tirara quase os olhos da Guiomar, durante toda a quadrilha,
acabou-a enlaçado a ela, sentindo-lhe o coração aos impulsos do galope final.
A
Mariazinha, que bem notara tudo, sendo dos primeiros pares que se sentaram,
amuou a um canto, tomada de ciúmes, e não podendo mais sofrear a mágoa,
recolheu-se à outra sala, com o beicinho a tremer, os olhos toldados por uma
névoa de lágrimas. As amigas correram logo, buscando consolá-la. A mãe, que
vira tudo do quarto, com os olhos vigilantes e zeladores pregados sempre no
Manuel, através das marcas da contradança, acudiu imediatamente, muito branca,
numa aflição. Desde a madrugada, ao levantar-se, que sentira como uma coisa
oprimir-lhe o coração. Pareceu-lhe que ia haver contrariedades, um grande
desgosto, como a entrada do tinhoso em
casa, naquele dia, tão feliz sempre para todos. Mas isso fora momentâneo porque
as meninas, como nunca, levantaram-se trinando na manhã cheia de sol. Depois,
lá fora, o céu festinava, magnífico, muito azul e sem mancha; e a criação,
abrindo as asas, no terreiro, acudia ao grão, num alvoroço e cacarejando sob a
luz que esquentava. E, já desoprimida e serena, lavando a louça para o café, à
janela da cozinha, pensava na Mariazinha, que ia casar por aquela semana, e
sorria, saturada da felicidade das coisas, abençoando o destino como no dia em
que lhe puseram a grinalda e o branco véu nupcial...
Mas as
amigas, vendo que as lágrimas da rapariga pareciam não querer cessar,
rebentando, mais frequentes, sob os mimos que a cercavam, entraram a dizer:
— Que não fosse tola, ele não estava namorando a prima, era falso. Lá
podia ser! Olhe que a Mariazinha... Também assim... Que mulher!... Andasse para
a sala, que era melhor, e se deixasse daquilo... Podiam reparar, e era uma
vergonha... E logo naquele dia, Nossa Senhora!
O Manuel
Lemos observava tudo de longe, mas fingia-se alheio inteiramente àquilo, mandando
tocar uma valsa e, nesse momento, único par na sala, colhia a atenção de todos,
volteando ritmicamente, aos compassos ondulantes da música, com a Joaninha
Pinheiro. E era tal a galanteria de ambos, desenrolando, unidos e a prumo pelo
soalho, os passos cadentes da valsa, que ninguém mais se arriscou...
Quando a
gaita emudeceu no meio do aplauso matuto da sala, todos os rapazes, ainda os
mais indiferentes, remoíam em silêncio um despeito surdo, como uma afronta. E o
Chico Rufino, que se tinha por dançador de fama do lugar, chocado com o sucesso
do outro, de pé, na varanda, em meio de um grupo de amigos, afirmava com
paixão:
— Que o Manuel não era grande coisa para a dança, não
era... Nem tinha posição capaz: muito arcado, as pernas abertas que até podia
passar um carro por baixo... Aquilo então é que era a fama? Olha o pachola!
Raios o partissem se ele, Rufino, não dançasse dez vezes melhor!... Depois, com
a Pinheiro quem não dançava... Que lhe não dissessem! Para ele, o Manuel não
valia nada... Grande paspalhão!...
A
Mariazinha, agora mais resignada, voltara à sala. O noivo, que acabava de
sentar o par, agradecendo, vitorioso, muito risonho, veio, logo colocar-se ao
pé dela. E longamente se fizeram confidências, voltados um para o outro, como
dois pombos movendo as cabeças amorosas. Perderam assim quadrilhas, polcas... E
a moça, mais consolada decerto, sorria já com os seus grandes olhos
melancólicos.
IV
Daí por
diante, as danças despenharam-se ainda, mais entusiásticas e ruidosas. Os
cangirões de concertada e garrafas de
vinho e aguardente eram esvaziados pelos homens, avidamente, no final das
quadrilhas.
Na varanda,
completamente indiferentes ao que ocorria em redor, os velhos, sentados, as
pernas cruzadas sobre uma larga esteira estendida no chão, jogavam o nove, agasalhados nos seus grossos
capotes de inverno. Moedas de cobre faziam montinhos, aqui e ali, ao lado de
cada parceiro. Outras acumulavam-se ao centro, num bolo, em cima de um meio
alqueire emborcado, onde uma vela de sebo ardia, com uma chama esguia e
trêmula, num castiçal de folha de Flandres. A um ângulo, onde a luz desfalecia,
sobre a mesa de jantar, as garrafas, os copos e as xícaras desprendiam vagas
cintilações de pedraria e tinidos finos de cristal.
Pela
madrugada, o terral de noroeste, com a vergasta glacial, pusera em total
debandada as caras espionas, obrigando a fechar as janelas e portas. Fora, no
terreiro, ficara só a fogueira, expirante, sem chamas já sob o frio, consumindo
as brasas cor de sangue. Dentro, a animação recrescia com o fim próximo da
festa. Os corpos dos rapazes e das moças desengonçavam-se agora, abraçados, em
volteações muito rápidas num frenesi. E eram, algumas vezes, nos mais
desajeitados, esbarradas e encontrões violentos. Havia gritinhos, queixas sonoras,
risadas; mas tudo se perdia logo no arrastar contínuo dos passos...
E às mãos
destras e febris do tocador a gaita arquejava, sem descontinuar.
O Manuel Lemos, por fim, com uma
grande ponta de álcool, o olhar reluzente e ávido, abandonara de todo a noiva e
declarara abertamente paixão à Guiomar, prendendo-se a ela escandalosamente nas
danças finais. A Mariazinha, o resto da noite sentada, ia seguindo tudo
atentamente, atirada a um canto, suspirosa e pálida, sentindo que se lhe
quebravam todas as cordas do coração sob aquele abandono brutal. De repente,
porém, levantou-se, com os beiços lívidos, toda trêmula, a sufocar: lançou os
braços ao ar, num grito, e caiu sobre o chão, desmaiada.
Houve então
um imenso alarido, uma emoção apavorada. As danças imediatamente cessaram; e da
varanda os velhos acudiram, espantados.
As duas
irmãs — a mulher do Monteiro e a Clara — então, engalfinharam-se de repente, numa rixa medonha, lançando-se injúrias
cara a cara. O Monteiro, perdida a calma, trêmulo e gaguejante, procurava
intervir, interpondo-se entre as duas mulheres:
— Ó senhora! Ó senhora! Que desgraça!...
Famílias, os
convidados, retiravam-se já, sem se despedirem, numa atordoação.
A gaita
emudecera definitivamente...
Na praia, o
embarque efetuou-se numa lufa-lufa, atarantadamente, às apalpadelas. E daí a
instantes as primeiras claridades da manhã subiam no céu, alegres e triunfais.
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