Na Bretanha
(Maël)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Acompanhada
da preceptora, Madalena, obedecendo ao impulso de suas ideias, encaminhou-se
para o Campo dos Mártires. Aí se deteve algum tempo a olhar meditativamente o
monumento em que jazem as ossadas das vítimas de Quiberon. Leu e releu a
inscrição latina gravada no frontão do cenotáfio de mármore: PRO DEO, PRO REGE
NEFARIE TRUCIDATI. E, de vez em quando, contemplava também a lâmpada
melancólica que desce à grande fossa sinistra, ao fundo da qual se confundem os
destroços gloriosos daqueles que, atraiçoados pelos perjuros, deram a vida
pelas suas crenças.
Depois
dirigiu os seus passos para as margens pitorescas do Auray, com os olhos
perdidos ainda nessa colina funerária que presenciou o negregado crime de
Tallien e da Convenção, de Tallien, o alucinado corifeu do Thermidor, esse
amigo de frases campanudas e de confusa latinidade, mas acordes com o seu
temperamento de impulsivo e degenerado, — de Tallien que um dia exclamara
contra a justa insurreição dos filhos da Bretanha:
— Ousaram
perturbar a terra da Pátria?! Pois bem: a terra da Pátria os há de devorar a
todos impiedosamente!...
E sentia-se
presa àquele sítio sempre repassado de um encanto penetrante e de uma poesia
sombria. Quem sabe, talvez as almas dos fuzilados trouxessem ainda
mal-assombrado esse outeiro de ervagens verde negras, quando, à hora da meia
noite, saíam a girar, em rondas invisíveis por entre as ramagens murmurosas e
cheias de luar, atraindo para aí bandos e bandos de rouxinóis! Quem poderia
contestar a verdade da crença popular, narrando que esses alados cantores aí se
reuniram, pelas primeiras vezes, nesses agitados dias de julho de 1793, em que
novecentos cidadãos, o peito varado pelas balas e a face lívida, voltada
para o céu muito alto mas sereno e juncado de estrelas, ficaram a dormir para
sempre no imenso fosso que fora cavado às pressas e tumultuosamente pelos
soldados Hoche?...
Mas o sol
desaparecera já tristemente para as bandas de oeste e do mar. A noite invadia o
firmamento e amortalhava colinas e águas, campos e arvoredos, nas suas pesadas
roupagens de crepe. No entanto, ainda a escuridão não se adensara de todo e já
a lua cheia surgia, iluminando tudo com a poeira da sua luz doce, idealizadora
e de prata.
Diante do
esplendor do luar, Madalena e a preceptora resolveram prolongar o seu passeio,
avançando até ao cimo do pequeno monte de Loch, de onde se dominava amplamente
a paisagem. Caminhando a passo igual chegaram juntas à falda da empinada
eminência. E começaram logo a galgar o zigue-zague abrupto que levava até ao
terrapleno da torre.
Ao chegar aí, apressou-se em chamar a atenção da companheira para aquela
velha construção. E mostrava-lhe a grande cruz de Loch, culminando a torre
ameiada e quadrada, com rendilhados torreões aos ângulos à maneira de estranhas
guaritas, e que, segundo a tradição, fora construída pelos Chuanes, no tempo
das grandes guerras da Vendeia. Esta torre de Loch não é muito alta e mede
apenas treze ou quinze metros da base ao ápice onde se acha a grande cruz de
pedra, talhada de um só bloco; porém o outeiro, sobre o qual se eleva, é dos
mais altos daquela região, permitindo abranger do seu píncaro um maravilhoso
panorama.
Nesse
momento mesmo a vista era admirável.
Uma brisa muito tênue, suave e fresca agitava a fronde das árvores. O
plenilúnio mostrava a leste o disco cheio e perfeito, escalando o firmamento
límpido e claro como feito de cristal. Estrelas rutilavam numerosamente, como
enormes diamantes. Embaixo, a terra achatava-se, desenrolando anos longínquos,
prodigiosos, reverberando também, aqui e ali, nas águas, sob a luz do alto. Os
cimos das folhagens pareciam caiados. Tal era a brancura da luz que, na
gradação proporcional dos tons, as sombras projetadas tinham uma pretidão
intensa, de tinta de escrever, desenhando nitidamente perfis sobre o solo. E o
luar escorria, como água, por sobre a folhagem: fazia degraus, e caía em
cascatas pelos altos maciços dos bosques, acentuando profundamente grandes
bordados e manchas largas de sombras. As águas do Auray incendiavam-se, como se
todo o rio fosse feito de raios de prata em fusão. Abaixo da colina, os
telhados e os muros da aldeia próxima alvejavam numa claridade mística,
discreta. E para além da ponte de pedra, unindo as duas margens do pequeno rio,
São Goustan deixava ver um amontoamento de casas cobertas de lousa ou colmo,
com frontões do século XVI, igrejas, castelos e a barragem das águas, cujo
perpétuo cachoeirar fazia tremer os reservatórios de pedra. Estas águas,
espumantes e luminosas, atraíam indefinidamente os olhos.
O Auray corria em meandros, enlaçando a terra com suas numerosas voltas
radiantes. Sobre a colina escarpada a torre de Loch destacava-se, inacessível e
soberana no Azul, dominada pela cruz que assinalava o testemunho supremo da
Religião subjugando a Natureza. Em toda a volta, para longe, o panorama
ampliava-se ainda, desenrolava-se em planos sucessivos, em painéis variados e
estranhos, de um claro-escuro gigantesco, inaudito, à Rembrandt. Em certos
recantos descobriam-se, por entre massas de ramagem, paredes brancas de
convento. E do meio dessas pastas sombrias surgia, mais longe, uma abadia e o
Campo dos Mártires. Os caminhos, como fitas, riscavam a planície e uns trilhos
de estrada de ferro, dispostos como sempre em paralelas sem fim, deixavam
escapar, aqui e ali, grandes brilhos metálicos. Distante, muito distante, no
extremo horizonte onde o olhar só percebia contornos incertos, pontos rútilos e
claros, como estrelas pálidas suspensas a alguns metros do solo, marcavam a iluminação
de outra pequena cidade bretã.
Madalena, reconhecendo-a, murmurou alegremente:
— Lá está Santana!...
E enviou mudamente um pensamento secreto à grande imagem dourada que domina
a torre da basílica de Santana. Gloriosas claridades — pensava a moça —
banhariam decerto, àquela hora, a efígie célebre e sagrada, cercariam a imagem
milagrosa da mãe de Maria de um grande nimbo triunfante...
Mas do seio daquela natureza em repouso, daquela terra muda, daquelas
massas de vegetação, daquelas coisas adormecidas no silêncio, erguia-se agora
um acorde poderoso, uma imensa harmonia de vozes identificadas, constituindo um
verdadeiro poema de adoração. E à medida que as horas altas da noite tornavam a
mudez mais completa, os mil pequeninos rumores esparsos suavizavam o ambiente.
Subia do chão e invadia o ar o estalido metálico dos grilos. Depois, muito
longe, o latir rouco e velado dos cães de quintas, cortado irregularmente pelo
monótono e tétrico das corujas.
Alguns
passarinhos agora elevavam o seu canto no recolhimento tácito da campina,
invadida pelos ninhos e posturas da estação estival. Ouviam-se ranger os gorrui-gorrui de alguns piscos joviais —
pobres pássaros que ralam e limam dentro da garganta, eternamente este som.
Madalena e a
preceptora extasiavam-se, enlevavam-se na contemplação daquele extraordinário
quadro da Natureza. No entanto, os cães haviam emudecido, bem como as corujas.
Os piscos e as toutinegras mantinham apenas notas smorzantes. E os grilos veladores faziam calar, pouco e pouco, o pique-pique monótono de suas membranas
metálicas...
De repente,
um som mais alto abriu voo no espaço, um som suave, raro, feito para a harmonia
das trevas, tão cheio de melodia que, ouvindo-o, se sentia uma estranha
curiosidade de inquirir se esse som provinha com efeito da laringe de um
pássaro ou de que origem, embora sugerisse logo à lembrança a lenda de
Filomena, a grega. Mas em que ponto pousava o maestro desse descante noturno?
Lá embaixo,
muito embaixo, no imenso fundo negro onde cimalhas de mosteiros erguiam as suas
linhas alvacentas, além, nos maciços de árvores acima do Campo dos Mártires,
mal-assombrado decerto pelas almas dos mortos — um rouxinol, inclinado para o
ninho da companheira a fim de amenizar os longos enfados da incubação, acabava
de lançar o acorde iniciante a todos os seus irmãos, atentos ao sinal e
velando, como ele, pela eclosão de suas esperanças. Era apenas um prelúdio. A
nota rara rolou na espessura das ramagens, com um poder desconhecido e, como
uma centelha elétrica, fez romper um concerto de vozes maravilhosas. Então,
por toda a parte, simultaneamente, começou a orquestração.
A preceptora, que estava ao lado de Madalena junto à grande cruz de pedra
da torre, murmurou docemente:
— Nightingale!
Eis, certamente, um vocábulo que desmente o renome de aspereza da língua
anglo-saxônia. Há nessas quatro sílabas delicadíssimas uma vibração cristalina,
que melhor que qualquer outra exprime o encanto que representa.
Nightingale, cantor da noite!
Só os
latinos possuíam talvez um termo mais doce para exprimir a mesma ideia e
representar a mesma imagem, mas tinham ido buscá-lo ao sobrenatural do Mito e
da Ficção...
No entanto
os rouxinóis compunham um coral.
Oh!
Harmonia! Harmonia divina amada de Platão, o poeta filósofo, que fez de ti o
supremo ideal da Ciência e da Natureza, terás porventura a tua origem nos
maestrinos dos bosques e da noite?!...
E o concerto
generalizava-se a toda a paisagem, estendendo-se até as matas do Castelo e aos
pequenos arbustos enfezados da lande.
Soara
meia-noite.
A moça e a
preceptora deixaram então precipitadamente a torre de Loch e retomaram a
estrada que conduzia a Ely.
Nesse
instante, também, o concerto admirável findava. Obedecendo — quem sabe! — a
alguma batuta mágica, os rouxinóis emudeciam.
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