Na Arca
TRÊS CAPÍTULOS INÉDITOS DO GÊNESIS
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO
A
1 — Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem e
Cam: — “Vamos sair da arca, segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas
mulheres, e todos os animais. A arca tem de parar no cabeço de uma montanha;
desceremos a ela.
2 — “Porque o Senhor cumpriu a sua promessa,
quando me disse: “Resolvi dar cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero
fazer perecer os homens. Faze uma arca de madeira; entra nela tu, tua mulher e
teus filhos.
3 — “E as mulheres de teus filhos, e um casal
de todos os animais.
4 — “Agora, pois, se cumpriu a promessa do
Senhor, e todos os homens pereceram, e fecharam-se as cataratas do céu;
tornaremos a descer à terra, e a viver no seio da paz e da concórdia.”
5 — Isto disse Noé, e os filhos de Noé muito
se alegraram de ouvir as palavras de seu pai; e Noé os deixou sós, retirando-se
a uma das câmaras da arca.
6 — Então Jafé levantou a voz e disse: —
“Aprazível vida vai ser a nossa. A figueira nos dará o fruto, a ovelha a lã, a
vaca o leite, o sol a claridade e a noite a tenda.
7 — “Porquanto seremos únicos na terra, e
toda a terra será nossa, e ninguém perturbará a paz de uma família, poupada do
castigo que feriu a todos os homens.
8 — “Para todo o sempre.” Então Sem, ouvindo
falar o irmão, disse: — “Tenho uma ideia”. Ao que Jafé e Cam responderam: —
“Vejamos a tua ideia, Sem.”
9 — E Sem falou a voz de seu coração,
dizendo: — “Meu pai tem a sua família; cada um de nós tem a sua família; a
terra é de sobra; podíamos viver em tendas separadas. Cada um de nós fará o que
lhe parecer melhor: e plantará, caçará, ou lavrará a madeira, ou fiará o
linho.”
10 — E respondeu Jafé: — “Acho bem lembrada a
ideia de Sem; podemos viver em tendas separadas. A arca vai descer ao cabeço de
uma montanha; meu pai e Cam descerão para o lado do nascente; eu e Sem para o
lado do poente. Sem ocupará duzentos côvados de terra, eu outros duzentos.”
11 — Mas, dizendo Sem: — “Acho pouco duzentos
côvados” —, retorquiu Jafé: “Pois sejam quinhentos cada um. Entre a minha terra
e a tua haverá um rio, que as divida no meio, para se não confundir a
propriedade. Eu fico na margem esquerda e tu na margem direita;
12 — “E a minha terra se chamará terra de
Jafé, e a tua se chamará a terra de Sem; e iremos às tendas um do outro, e
partiremos o pão da alegria e da
concórdia.”
13 — E tendo Sem aprovado a divisão,
perguntou a Jafé: “Mas o rio? a quem pertencerá a água do rio, a corrente?
14 — “Porque nós possuímos as margens, e não
estatuímos nada a respeito da corrente.” E respondeu Jafé, que podiam pescar de
um e outro lado; mas, divergindo o irmão, propôs dividir o rio em duas partes,
fincando um pau no meio. Jafé, porém, disse que a corrente levaria o pau.
15 — E tendo Jafé respondido assim, acudiu o
irmão: — “Pois que te não serve o pau, fico eu com o rio, e as duas margens; e
para que não haja conflito, podes levantar um muro, dez ou doze côvados, para
lá da tua margem antiga.
16 — “E se com isto perdes alguma coisa, nem
é grande a diferença, nem deixa de ser acertado, para que nunca jamais se turbe
a concórdia entre nós, segundo é a vontade do Senhor.”
17 — Jafé porém replicou: — “Vai bugiar! Com
que direito me tiras a margem, que é minha, e me roubas um pedaço de terra?
Porventura és melhor do que eu,
18 — “Ou mais belo, ou mais querido de meu
pai? Que direito tens de violar assim tão escandalosamente a propriedade
alheia?
19 — “Pois agora te digo que o rio ficará do
meu lado, com ambas as margens, e que se te atreveres a entrar na minha terra,
matar-te-ei como Caim matou a seu irmão.”
20 — Ouvindo isto, Cam atemorizou-se muito, e
começou a aquietar os dois irmãos,
21 — Os quais tinham os olhos do tamanho de
figos e cor de brasa, e olhavam-se cheios de cólera e desprezo.
22 — A arca, porém, boiava sobre as águas do
abismo.
CAPÍTULO
B
1 — Ora, Jafé, tendo curtido a cólera,
começou a espumar pela boca, e Cam falou-lhe palavras de brandura,
2 — Dizendo: — “Vejamos um meio de conciliar
tudo; vou chamar tua mulher e a mulher de Sem”.
3 — Um e outro, porém, recusaram dizendo que
o caso era de direito e não de persuasão.
4 — E Sem propôs a Jafé que compensasse os
dez côvados perdidos, medindo outros tantos nos fundos da terra dele. Mas Jafé
respondeu:
5 — “Por que me não mandas logo para os
confins do mundo? Já te não contentas com quinhentos côvados; queres quinhentos
e dez, e eu que fique com quatrocentos e noventa.
6 — “Tu não tens sentimentos morais? não
sabes o que é justiça? não vês que me esbulhas descaradamente? e não percebes
que eu saberei defender o que é meu, ainda com risco de vida?
7 — “E que, se é preciso correr sangue, o
sangue há de correr já e já,
8 — “Para te castigar a soberba e lavar a tua
iniquidade?”
9 — Então Sem avançou para Jafé; mas Cam
interpôs-se, pondo uma das mãos no peito de cada um;
10 — Enquanto o lobo e o cordeiro, que
durante os dias do dilúvio, tinham vivido na mais doce concórdia, ouvindo o
rumor das vozes, vieram espreitar a briga dos dois irmãos, e começaram a
vigiar-se um ao outro.
11 — E disse Cam: — “Ora, pois, tenho uma ideia
maravilhosa, que há de acomodar tudo;
12 — “A qual me é inspirada pelo amor, que
tenho a meus irmãos. Sacrificarei pois a terra que me couber ao lado de meu
pai, e ficarei com o rio e as duas margens, dando-me vós uns vinte côvados cada
um.”
13 — E Sem e Jafé riram com desprezo e
sarcasmo, dizendo: — “Vai plantar tâmaras! Guarda a tua ideia para os dias da
velhice”. E puxaram as orelhas e o nariz de Cam; e Jafé, metendo dois dedos na
boca, imitou o silvo da serpente, em ar de surriada.
14 — Ora, Cam, envergonhado e irritado,
espalmou a mão dizendo: — “Deixa estar!” e foi dali ter com o pai e as mulheres
dos dois irmãos.
15 — Jafé porém disse a Sem: — “Agora que
estamos sós, vamos decidir este grave caso, ou seja de língua ou de punho. Ou
tu me cedes as duas margens, ou eu te quebro uma costela.”
16 — Dizendo isto, Jafé ameaçou a Sem com os
punhos fechados, enquanto Sem, derreando o corpo, disse com voz irada: “Não te
cedo nada, gatuno!”
17 — Ao que Jafé retorquiu irado: “Gatuno és
tu!”
18 — Isto dito, avançaram um para o outro e
atracaram-se. Jafé tinha o braço rijo e adestrado; Sem era forte na
resistência. Então Jafé, segurando o irmão pela cinta, apertou-o fortemente,
bradando: “De quem é o rio?”
19 — E respondendo Sem: — “É meu!” Jafé fez
um gesto para derrubá-lo; mas Sem, que era forte, sacudiu o corpo e atirou o
irmão para longe; Jafé, porém, espumando de cólera, tornou a apertar o irmão, e
os dois lutaram braço a braço,
20 — Suando e bufando como touros.
21 — Na luta, caíram e rolaram, esmurrando-se
um ao outro; o sangue saía dos narizes, dos beiços, das faces; ora vencia Jafé,
22 — Ora vencia Sem; porque a raiva
animava-os igualmente, e eles lutavam com as mãos, os pés, os dentes e as
unhas; e a arca estremecia como se de novo se houvessem aberto as cataratas do
céu.
23 — Então as vozes e brados chegaram aos
ouvidos de Noé, ao mesmo tempo que seu filho Cam, que lhe apareceu clamando:
“Meu pai, meu pai, se de Caim se tomará vingança sete vezes, e de Lameque
setenta vezes sete, o que será de Jafé e Sem?”
24 — E pedindo Noé que explicasse o dito, Cam
referiu a discórdia dos dois irmãos, e a ira que os animava, e disse: — “Correi
a aquietá-los”. Noé disse: — “Vamos”.
25 — A arca, porém, boiava sobre as águas do
abismo.
CAPÍTULO
C
1 — Eis aqui chegou Noé ao lugar onde lutavam
os dois filhos,
2 — E achou-os ainda agarrados um ao outro, e
Sem debaixo do joelho de Jafé, que com o punho cerrado lhe batia na cara, a
qual estava roxa e sangrenta.
3 — Entretanto, Sem, alçando as mãos, conseguiu
apertar o pescoço do irmão, e este começou a bradar: “Larga-me, larga-me!”
4 — Ouvindo os brados, as mulheres de Jafé e
Sem acudiram também ao lugar da luta, e, vendo-os assim, entraram a soluçar e a
dizer: “O que será de nós? A maldição caiu sobre nós e nossos maridos.”
5 — Noé, porém, lhes disse: “Calai-vos,
mulheres de meus filhos, eu verei de que se trata, e ordenarei o que for
justo.” E caminhando para os dois combatentes,
6 — Bradou: “Cessai a briga. Eu, Noé, vosso
pai, o ordeno e mando”. E ouvindo os dois irmãos o pai, detiveram-se
subitamente, e ficaram longo tempo atalhados e mudos, não se levantando nenhum
deles.
7 — Noé continuou: “Erguei-vos, homens
indignos da salvação e merecedores do castigo que feriu os outros homens”.
8 — Jafé e Sem ergueram-se. Ambos tinham
feridos o rosto, o pescoço e as mãos, e as roupas salpicadas de sangue, porque
tinham lutado com unhas e dentes, instigados de ódio mortal.
9 — O chão também estava alagado de sangue, e
as sandálias de um e outro, e os cabelos de um e outro,
10 — Como se o pecado os quisera marcar com o
selo da iniquidade.
11 — As duas mulheres, porém, chegaram-se a
eles, chorando e acariciando-os, e via-se-lhes a dor do coração. Jafé e Sem não
atendiam a nada, e estavam com os olhos no chão, medrosos de encarar seu pai.
12 — O qual disse: “Ora, pois, quero saber o
motivo da briga”.
13 — Esta palavra acendeu o ódio no coração
de ambos. Jafé, porém, foi o primeiro que falou e disse:
14 — “Sem invadiu a minha terra, a terra que eu
havia escolhido para levantar a minha tenda, quando as águas houverem
desaparecido e a arca descer, segundo a promessa do Senhor;
15 — “E eu, que não tolero o esbulho, disse a
meu irmão: “Não te contentas com quinhentos côvados e queres mais dez?” E ele
me respondeu: “Quero mais dez e as duas margens do rio que há de dividir a
minha terra da tua terra”.
16 — Noé, ouvindo o filho, tinha os olhos em
Sem; e acabando Jafé, perguntou ao irmão: “Que respondes?”
17 — E Sem disse: — “Jafé mente, porque eu só
lhe tomei os dez côvados de terra, depois que ele recusou dividir o rio em duas
partes; e propondo-lhe ficar com as duas margens, ainda consenti que ele
medisse outros dez côvados nos fundos das terras dele,
18 — “Para compensar o que perdia; mas a iniquidade
de Caim falou nele, e ele me feriu a cabeça, a cara e as mãos”.
19 — E Jafé interrompeu-o dizendo:
“Porventura não me feriste também? Não estou ensanguentado como tu? Olha a
minha cara e o meu pescoço; olha as minhas faces, que rasgaste com as tuas
unhas de tigre”.
20 — Indo Noé falar, notou que os dois filhos
de novo pareciam desafiar-se com os olhos. Então disse: “Ouvi!” Mas os dois
irmãos, cegos de raiva, outra vez se engalfinharam, bradando: — “De quem é o
rio?” — “O rio é meu”.
21 — E só a muito custo puderam Noé, Cam e as
mulheres de Sem e Jafé conter os dois combatentes, cujo sangue entrou a jorrar
em grande cópia.
22 — Noé, porém, alçando a voz, bradou: —
“Maldito seja o que me não obedecer. Ele será maldito, não sete vezes, não setenta
vezes sete, mas setecentas vezes setenta.
23 — “Ora, pois, vos digo que, antes de
descer a arca, não quero nenhum ajuste a respeito do lugar em que levantareis
as tendas.”
24 — Depois ficou meditabundo.
25 — E alçando os olhos ao céu, porque a portinhola
do teto estava levantada, bradou com tristeza:
26 — “Eles ainda não possuem a terra e já
estão brigando por causa dos limites O que será quando vierem a Turquia e a
Rússia?”
27 — E nenhum dos filhos de Noé pôde entender
esta palavra de seu pai.
28 — A arca, porém, continuava a boiar sobre
as águas do abismo.
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