Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Mar de tormenta, mar que rebenta,
Convulso mar!
Noites inteiras, noites inteiras
Nas praias tristes há lareiras
Com mães e noivas a rezar.
Guerra Junqueiro.
Havia um mês que a fragata la
Belle-Poule chegara a Porto Luís, em
Santa Maria, depois do ciclone em que se vira envolvida e do qual escapara por milagre,
na travessia da ilha de Bourbon ou da Reunião para aquela ilhota da costa leste
de Madagascar. O que fora essa tremenda convulsão meteorológica narram-no
minuciosa e eloquentemente, na sua simples mas expressiva linguagem
técnico-maruja, os Anais da Marinha de
Guerra francesa do ano de 1847.
No dia 16 de dezembro do ano anterior, navegavam a rumo de
noroeste aquela grande fragata e a linda corveta le Berceau, ambas
pertencentes à divisão francesa da Índia, de que era chefe o velho e bravíssimo
veterano do mar almirante Desfossé. Esses navios, que eram ainda novos, bem
aparelhados, muito seguros e geralmente conhecidos como excelentes veleiros,
tinham deixado, com vento do largo (nordeste), na alvorada da véspera, o porto
de São Denis, capital da ilha da Reunião, a principal do arquipélago das
Mascarenhas, seiscentas milhas a oriente de Madagascar, no coração do Índico,
arquipélago descoberto em 1545 por Mascarenhas, que lhe deu o nome que se
conservou até hoje, assinalando perpetuamente, nos mares, a glória do egrégio
navegador português. Na manhã seguinte à da partida, já toda a ilha se esbatia,
popa fora, no azul turquesa do horizonte, tendo-se perdido e afundado, à
distância, o Pico da Furna Ardente (Piton
de Fournaise), lá quase ao
extremo sul da Ponta da Mesa, bem como o Grande Monte Solitário (Gros-Morne) já mais ao norte, porém ainda situado na parte meridional das duas em
que se divide a ilha, e que é a mais áspera e inabordável, toda aberta aos
ventos tormentosos de leste e por isso chamada de Barlavento (du Vent).
Entretanto, na outra parte, na de Sotavento (Sous-le-Vent), o Pico
das Neves (Píton des Neiges), bem ao
centro da ilha e seu ponto culminante, resplandecia de alvura pelo seu píncaro
de três mil e sessenta e nove metros de elevação sobre o nível do Mar: e
dir-se-ia, assim tão reduzido e já a sumir-se no cetim do céu cerúleo, um lenço
branco que os carinhosos habitantes da ilha erguessem alto, no Espaço, a
acenar tristemente os seus adeuses saudosos às duas naves que partiam...
Mas, pela tarde, apenas desaparecera de todo o Pico das Neves, a
viagem, que fora até ali risonha e feliz, começara a transtornar-se. O
firmamento, claro e límpido como um fino e anilado cristal, enchera-se de
nuvens que tomavam cores negras e tristes, adensando-se em bulcões. Pouco a
pouco empalidecera, penumbrara-se o sol de ouro vivo, ocultando-se entre
cúmulos. O mar até então azul translúcido, liso e sem cristas ou escarcéus
bravios, enegrecera melancolicamente, erguendo-se em grandes vagas espumosas. Um
sudoeste entrara de soprar, em lufadas rijas. Já o barômetro descera
bruscamente, assustadoramente.
As duas quilhas — la Belle—
Boule e le Berceau — velejavam ao
mesmo rumo, a pequena distância uma da outra, a pouco mais de meia milha. O
vento intenseara ainda, inclinando-se ou chamando-se ao sul. Os balanços, a
bordo de cada lenho, já iam crescidos, fora do comum. Ao cerrar da noite, o sul
atingira enorme violência — e no mar e no céu tudo era sublevação e torvelinho.
Um espesso nevoeiro velava o ar, fechando o horizonte; as ondas invadiam,
cobriam, alagavam, varriam convés e tombadilho; a chuva despenhava-se
diluvialmente; os trovões estouravam em ribombos medonhos, contínuos; fuzis
rasgavam as nuvens, em multidão de fitas de fogo sulferinas que fugiam e se
apagavam instantaneamente, em clarões sinistros; descargas elétricas
sucediam-se ininterruptamente, como nas inimagináveis tempestades dos períodos
geológicos remotos e primitivos...
Apesar de acesos os faróis, de bordo da fragata não se avistava mais
a corveta, inteiramente oculta no seio da borrasca desfeita. O comandante da Belle-Poule, homem de quase sessenta
anos de idade, um dos mais ilustres capitães-de-mar-e-guerra da marinha
francesa de então, verdadeiro “lobo do mar”, resoluto e temerário, e que
conhecia de menino a maior parte das paragens marítimas do globo, tendo feito
como chefe duas viagens notáveis de circunavegação, chegara a declarar à
oficialidade, quase toda também de marinheiros experimentados e valorosos, que
jamais vira ciclone assim. E de pé sobre o tombadilho, sentia-se impotente e
vencido, como toda a marinhagem, pelo temporal, que lhe não permitia, no seu
furor nunca visto, a execução da mais pequena manobra: a sua inteligência,
perícia, ação e esforços náuticos convergiam unicamente, agora, em equilibrar o
governo da fragata, para evitar o naufrágio ou o soçobro iminentes, e manter a
postos e firmes os subordinados, desorientados e em total desânimo ante força
irresistível do marouço, arrebatando de vez em quando alguns dentre eles,
afogando-os no abismo ao largo, ou despedaçando-lhes os crânios contra os
mastros e bordas do próprio navio, apesar dos cabos de vaivém lançados de popa
à proa a que andavam todos agarrados, aos saltos e boléus horríveis...
À meia-noite o barômetro não tinha mais que descer: estava abaixo
dos últimos limites marcados em sua escala! O vento, crescendo progressivamente
e correndo da esquerda para a direita, conforme a lei dos ciclones no
hemisfério austral, chegara à suprema fúria. E a tempestade parava-se num
estranho, invencível cataclismo marinho.
“À meia-noite, — narra o distinto primeiro tenente da armada
francesa Félix Julien, que nessa ocasião era um dos oficiais da Belle-Poule — à meia-noite, não obstante
os mais enérgicos esforços, a fragata, desamparada, sem governo, sem velas,
deitava-se toda sobre o bordo da amura, com a mastreação despedaçada, o convés
invadido pelo mar furioso. Assim, em duas horas apenas, atingíamos o centro do
ciclone. Uma calma súbita, mas de curta duração, sucedia à primeira crise desta
sublevação atmosférica. Os ventos que nos tinham abandonado ao sul, repontaram
a oeste e ao norte com a rapidez do raio. Entrávamos, nesse instante, no
segundo segmento do círculo do tufão. Batida agora pela esquerda, a fragata inclinava-se
de novo, não podendo resistir à enorme pressão que a mantinha deitada a um
bordo. Como se vê, os ventos haviam seguido a lei dos ciclones no hemisfério
austral. Turbilhonavam da esquerda para a direita, como a espiral das zonas de
calma das regiões antárticas...”
No dia seguinte, ao despontar do sol, não havia da formidável
procela senão restos de vagalhões desmontados, mas que de hora a hora baixavam,
calmavam. A Belle-Poule, embora só em
mastros-reais e sem o pau-da-giba, com uma nova andaina de pano envergada e só
puxando em gáveas grandes, navegava serenamente em demanda de Porto Luís, em
Santa Maria de Madagascar. E a corveta le
Berceau?... Essa, coitada, não se
sabia dela — ficara perdida na imensa solidão oceânica. Mas nem o comandante da
fragata, nem ninguém da sua companha, supunha jamais que ela tivesse
naufragado, soçobrado em meio ao temporal; muito pelo contrário, julgavam-na
livre de perigo e a salvo, tal qual sucedera ao navio em que estavam. E com
bons vigias nos sextos-de-gávea e nos topes dos mastaréus, procuravam
descobri-la a todo o instante no vasto arco do horizonte, julgando-a afastada,
desgarrada, sem dúvida, mas unicamente por algumas milhas de mar...
Uma semana depois, a Belle-Poule
entrava em Porto Luís, ponto marcado para a reunião de todos os navios da
divisão naval francesa da Índia, onde se achava a nau capitânia tendo arvorado
o pavilhão do almirante. E o comandante, oficiais e marinheiros que vinham
triunfantes, se bem que maltratados da luta com o terrível ciclone,
experimentaram desagradável surpresa em não encontrar já ali fundeada, como
esperavam, a corveta le Berceau, muito
menor e mais veleira que a fragata. Mas não ficaram apreensivos, atribuindo a
demora dessa embarcação não só a algum desvio do caminho e a quaisquer avarias
consideráveis que lhe houvesse feito o tufão, como ainda a alguma arribada
inevitável à própria ilha da Reunião ou a qualquer outra das Mascarenhas.
Ao verem entrar a Belle-Poule,
o almirante Desfossé e demais pessoal do navio-chefe, que já sabiam da
borrasca, não somente pelo barômetro de bordo mas também pelos barcos de pesca
das costas de Madagascar, respiraram livremente, embora não vissem entrar
conjuntamente com ela a corveta le
Berceau, que devia segui-la de perto: e não se admiravam porque semelhante
fato é muito comum nas frotas ou esquadras em viagem, quer à vela quer a vapor,
pois que, ao menor acidente, os navios desgarram-se e atrasam-se uns dos
outros, sobretudo em más condições de vento e mar.
Apenas a Belle-Poule fundeara,
o seu comandante, conforme as ordenanças militares, correu a apresentar-se ao
almirante, entregando-lhe o relatório escrito de todo o cruzeiro que acabava de
fazer, contendo uma parte bastante desenvolvida e completa sobre a tormenta
apanhada, e reforçando-o e ampliando-o ainda com uma larga narração verbal a
respeito. O chefe Desfossé fez-se transportar imediatamente, em companhia do
próprio comandante, para bordo da fragata recém-vinda, verificando então por si
mesmo as enormes avarias que apresentava o navio e interrogando ainda, um por
um, oficiais e marinheiros sobre o grande ciclone. Enquanto ao desgarre de le Berceau era da opinião do comandante
e da marinhagem da Belle-Poule — que
a corveta, casco ainda novo e seguro, bem comandado e com boa oficialidade e
guarnição como estava, aguentara decerto a tempestade e devia, mais dias menos
dias, surgir no porto a são e salvo, lançando o seu retardamento ou demora à
conta das más condições de navegabilidade em que sem dúvida ficara sob o furor
das vagas e do vento, tanto como à hipótese, muitíssimo natural, de alguma
arribada a qualquer ponto próximo da latitude em que se achava, durante ou
depois do ciclone...
Esse era, para assim dizer, o pensamento “oficial” de todos na
divisão naval francesa; mas no coração e no espírito de cada um nascera desde
muito e se acentuava dia a dia, com a delongada ausência da corveta, o
pressentimento funerário e cruel de que le
Berceau e todas as vidas preciosas que nela se achavam tinham desaparecido
para sempre no fundo torvo das ondas.
Tão sinistra perspectiva trazia todos em profunda ansiedade, na
pequena cidade de Porto Luís — as guarnições dos navios de guerra franceses e
de outras, nações, como os marujos mercantes locais e de toda a parte, e a
população indígena em geral. Corria-se, por terra e por água, o litoral em
busca de notícias. Indagava-se sofregamente, angustiosamente de todos os
tripulantes dos navios que entravam, de pesca, costeiros ou de longo curso,
vindos de todos os rumos do Mar, se acaso não tinham visto a corveta le Berceau ou alguma jangada de
náufragos. E as respostas dos embarcadiços questionados, bem assim as dos
emissários mandados por terra e por água a todas as enseadas, cabos e baías
próximas eram sempre, desolada e desesperançadamente, estas: — Que não tinham
visto nada! que não sabiam de nada!...
Não obstante tantas pesquisas frustradas — como a Esperança não
morre nunca no coração humano senão com o derradeiro lampejo de vida — em a nau
capitânia, como nos demais navios da esquadra francesa, os vigias, nos
sextos-de-gávea e no tope alto dos mastaréus, esquadrinhavam, o dia inteiro,
com o olhar, os recortes da costa e o horizonte ao largo, a ver se porventura
surgia de repente, não já a corveta, em cuja existência ninguém mais acreditava,
mas algum batel ou batei, com náufragos...
Um mês decorreu em vão...
Mas uma tarde, quando menos se cuidava, a bordo da nau capitânia,
um dos vigias gritou alviçareiramente para baixo:
— Um navio desarvorado ao largo, em demanda de terra!...
Houve logo um imenso e justificado alvoroço em todos, no convés e
no tombadilho, à popa e à proa da nau, desde o almirante ao último grumete. E
um uníssono de funda expansão e júbilo irrompeu vivamente de todas as bocas:
— Le Berceau! Le Berceau!
Fez-se imediatamente sinal do navio avistado à Belle-Poule e aos demais barcos da
divisão francesa. E a mesma emoção de alegria explodiu subitamente em todos
eles...
Não era um sonho, narra ainda o primeiro tenente Félix Julien. No
céu límpido e puro o sol resplandecia gloriosamente: uma poeirada de ouro
ardente vibrava no horizonte. Todos os olhos marujos de mais forte acuidade,
projetados naquela direção, não fizeram mais que confirmar a primeira notícia
transmitida pelo gajeiro. Mas logo a emoção devia tornar-se mais pungente: não
era já um navio que nos aparecia, porém uma imensa jangada carregada de homens
e rebocada por botes sobre os quais flutuavam sinais de perigo e pedidos de
socorro. As imagens eram nítidas e fixas, as linhas perfeitamente desenhadas,
distintas. A bordo da capitânia, como nos outros navios, almirante,
comandantes, oficiais, marinheiros, todos, durante muitas horas, sob um golpe
de alucinação febril, puderam seguir com os seus próprios olhos os detalhes
desta indescritível cena marítima. O almirante Desfossé, comandante da nossa
estação naval da Índia, mandou imediatamente aprestar o primeiro vapor que
encontrou no porto e fê-lo sair a toda a força em socorro dos náufragos que o
Oceano, dir-se-ia, nos reenviava do fundo de seus abismos...
O dia começava a declinar e a noite, como sucede em geral nos
trópicos, tombava quase sem crepúsculo, quando o Arquimedes chegou ao fim da sua missão. Parou em meio dos destroços
flutuantes e lançou seus escaleres ao mar. Em torno, nas ondas, continuavam a
ver-se massas de homens agitando-se, os braços erguidos para o céu, a implorar
socorro. Ouvia-se como o ruído surdo e confuso de um grande número de vozes
misturadas ao bater dos remos na água... Ainda alguns segundos, e nós iríamos
abraçar irmãos arrancados a uma morte certa:
Illusions des nuits, vous jouiez-vous de nous?
“E os escaleres enterravam-se por entre os espessos ramos de
grandes árvores, arrancados pela tempestade às costas vizinhas e arrastadas com
toda a folhagem pela contracorrente oceânica que remontava ao norte, junto à
ilha de Santa Maria...”.
Não eram náufragos, não, infelizmente mas ramos de árvores
flutuantes, produzindo uma triste Miragem
Oceânica...
“Assim se esvaiu essa estranha visão, conclui o ilustre marinheiro
francês. Assim se dissipou a derradeira esperança que uma miragem enganadora
havia, por assim dizer, evocado do fundo azul do Oceano. Assim
desapareceram de novo, e para sempre, sob os nossos olhos, a infortunada Berceau e as trezentas vítimas engolidas
no seu bojo!...”
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